Os Perigos da Fosfoetanolamina, a 'Pílula da Cura do Câncer'
Crédito: Marcos Santos/ USP Imagens

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Os Perigos da Fosfoetanolamina, a 'Pílula da Cura do Câncer'

A história da ciência mostra que o maior problema não é a falta de provas sobre a eficácia da "fosfo"; é desconhecermos se não se trata de um veneno.

Você deve ter ouvido, nos últimos dias, sobre a questão da fosfoetanolamina sintética (ou "fosfo", para os íntimos), uma molécula promovida por um ex-professor de química da USP de São Carlos, Gilberto Orivaldo Chierice, como uma cura para o câncer e abraçada, sem provas concretas de segurança e eficácia, como tábua de salvação por inúmeros doentes e suas famílias.

Catapultada às manchetes depois que a USP se viu obrigada pela Justiça a continuar a produzi-la e a distribuí-la, a "fosfo" foi alvo de debates na Câmara Federal no fim de outubro. Agora, no início de novembro, a Academia Brasileira de Ciências (ABC) emitiu nota que sugere muita moderação no entusiasmo em relação ao seu potencial uso médico.

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Na semana passada, ficamos sabendo que a mesma ordem judicial que forçou a USP a produzir a substância fez a universidade ser autuada pelo Conselho Regional de Farmácia por fabricar medicamento em condições irregulares e inadequadas. Nem Kafka teria sonhado com algo assim: ilegalidade causada por ordem da Justiça.

Gilberto Orivaldo Chierice em pronunciamento no Senado. Crédito: Geraldo Magela/Agência Senado

Ao mesmo tempo em que autoridades federais falam em realizar testes às pressas para atender ao "clamor da população" pela droga, divulga-se que advogados promovem ações coletivas para que seus clientes, mediante o pagamento de módicas taxas de adesão, também tenham acesso gratuito a ela. E pelo menos um deputado estadual, Marlon Santos, do PDT, já se movimenta para que a "fosfo" seja produzida em seu estado, o Rio Grande do Sul.

O grande problema nisso tudo é que ninguém sabe se a "fosfo" realmente funciona. Pior: ninguém sabe se ela não é veneno. O princípio de que o que distingue remédio de veneno é a dosagem remonta, pelo menos, ao alquimista Paracelso, do século 16, e continua igualmente válido no 21. E a dose correta só pode ser determinada após testes que costumam levar anos. Tudo o que o "clamor da população" pede não passa de miragem perigosa.

Tanto a nota da ABC quanto os críticos da liberação da droga por via judicial e da exploração política do tema repetem, sempre, as mesmas objeções: a validação de um medicamento para consumo humano é um processo complexo e arriscado; a "fosfo", embora já tenha sido estudada por cientistas, na verdade sequer passou pelos mais preliminares dos testes mais rigorosos; no caso da busca de tratamentos para o câncer, apenas cerca de 5% das drogas que chegam a ser aprovadas para testes em humanos se mostram, de fato, seguras e eficazes para o uso em seres humanos.

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Repetindo: apenas cerca de 5% dos candidatos a medicamento considerados bons o suficiente para serem testados em humanos – estágio em que a "molécula milagrosa" de São Carlos sequer atingiu – acabam se revelando úteis para os pacientes (claro, a utilidade para manipuladores e espertalhões é outra história.)

O "outro lado" – as pessoas que lutam pela liberação da molécula para o uso em pacientes de câncer para ontem, a qualquer preço – tem mais a força da emoção que a dos argumentos a seu favor. São emoções poderosas, que não devem ser desprezadas. Trata-se de amor, inconformismo e desespero. O fato delas serem exploradas por demagogos e outras figuras inescrupulosas é lamentável. Mas, se é difícil responder a gente movida por amor ou desespero, talvez seja possível fazer algo a respeito do inconformismo.

Uma vez convencidos da verdade de um fato e investidos emocionalmente nela, tendemos a procurar mais evidências para confirmá-la e a desqualificar as provas contrárias.

Pessoas não se conformam com a exigência de testes. Por quê? Quem diz que a "fosfo" funciona não é um professor, um cientista? E não temos o testemunho de todas aquelas pessoas que se curaram? Uma última esperança, ainda que falsa, não é melhor que esperança nenhuma?

Essas são perguntas que remetem a uma questão ainda mais fundamental: alegar que uma substância ou conduta pode curar doenças ou aliviar sofrimentos é de uma responsabilidade tremenda. O que dá a alguém o direito, a prerrogativa moral e ética, de fazer isso? De prometer socorro aos desesperados? O que distingue seriedade de charlatanismo? Para a lei, são documentos e diplomas. Mas esses documentos e diplomas são apenas marcas e emblemas de uma outra coisa. Para descobrir que coisa é essa, precisamos fazer uma visita ao século 18. Mais precisamente, ao verão de 1793.

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Naquela ano, a Filadélfia, a então capital da jovem república dos Estados Unidos da América, era dizimada por uma epidemia de febre amarela. Boa parte da população fugiu em meio ao pânico, mas um pequeno grupo de profissionais da saúde permaneceu na cidade para atender aos que já estavam doentes ou não tinham para onde ir. Entre esses doutores abnegados estava Benjamin Rush (1745-1813), um dos signatários da Declaração de Independência dos EUA, pai da pátria e o médico mais respeitado do país.

Na época, o tratamento para febre amarela consistia em pouco mais do que banhos frios para tentar reduzir a temperatura do paciente, sangrias e alguns medicamentos inócuos. Desesperado diante da impotência da medicina para ajudar os que sofriam, Rush passou a procurar alternativas e enfim encontrou um tratado obscuro, escrito meio século antes, que recomendava o uso de violentos purgantes para limpar as vísceras dos pacientes dos "miasmas pútridos" que, supunha-se, causavam a doença.

Laboratório do Instituto de Química da USP, onde a "fosfo" era produzida. Crédito: Marcos Santos/ USP Imagens

Rush decidiu testar a ideia num paciente às portas da morte, um homem que aparentemente não tinha mais nada a perder, e lhe aplicou o purgante mais forte disponível nos Estados Unidos: uma mistura de raiz de jalapão (Ipomoea purga) com um pó químico chamado calomel, que contém o metal mercúrio.

O moribundo reviveu, e Rush decidiu aplicar sua nova cura a outros pacientes, associando-a a sangrias extensas, e esses também se recuperaram. Os sobreviventes passaram a dar testemunhos entusiásticos a respeito do remédio de Rush, e ele se tornou um herói popular. Incapaz de atender a todos que o procuravam, o médico publicou sua receita para que outros pudessem administrá-la. Em suas memórias da epidemia, Rush critica os médicos que se recusaram a adotar sua cura.

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O problema dessa história, que talvez já tenha ficado óbvio para muitos leitores, é que o tratamento de Benjamin Rush era, por tudo que se sabe hoje em dia, um absurdo, uma atrocidade: o mercúrio é um veneno terrível quando ingerido, sangrias enfraquecem ainda mais o paciente, purgativos e diuréticos só fazem aumentar a desidratação de quem já sofre com febre. Ainda assim, Rush emergiu da epidemia de 1793 como um mito da saúde pública, um santo curandeiro, o adorado salvador de uma legião de pacientes agradecidos.

A verdade é que os pacientes "salvos" por ele provavelmente já estavam prestes a se recuperar sozinhos – mesmo o "moribundo" do primeiro caso – e sobreviveram apesar do calomel, do jalapão e das sangrias, e não graças a eles. E, dos que ele não salvou, muitos talvez tivessem sobrevivido se deixados por conta própria. A gratidão dos sobreviventes vinha de uma interpretação falsa quanto à causa da cura. O fato de o tratamento ser penoso só aumentava o alívio ao final da doença.

Mais do que nomes, títulos ou manifestações sinceras, são os números e as evidências físicas que decidem a verdade científica.

O problema com essa explicação é que ela não dá conta de como Rush poderia ter se enganado tanto: se seu tratamento era prejudicial, ele deve ter visto muitos mais pacientes morrerem do que se salvarem em suas mãos. Como um médico consciencioso como ele teria deixado passar algo assim?

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A questão vai fundo numa característica bem documentada da psicologia humana, o viés de confirmação: uma vez convencidos da verdade de um fato e investidos emocionalmente nessa verdade, tendemos a procurar cada vez mais evidências para confirmá-la e a desqualificar todas as provas em contrário. No caso de Rush, é provável que ele tivesse uma desculpa certa para cada paciente perdido: fui chamado quando já era tarde; não seguiram minhas instruções ao pé da letra; nenhum remédio funciona 100% do tempo, afinal.

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Os testes a que a "fosfo" não foi submetida, clínicos e pré-clínicos, longe de serem uma cruel exigência burocrática, são a única linha de defesa contra erros como os de Rush, causados não por malícia, mas por excesso de entusiasmo, boas intenções e, por que não dizer, vaidade. Sob muitos aspectos, o médico Rush da Filadélfia poderia muito bem ser um antecedente histórico, uma prefiguração do químico Chierice de São Carlos.

Chierice é um respeitado ex-professor de uma grande universidade. Rush era o melhor médico da capital de seu país. Mas grandes homens também erram, e não é por outro motivo que um dos princípios fundamentais da ciência é a expressão latina nullius in verba: "Não aceite a palavra de ninguém como prova". Mais do que nomes, títulos ou manifestações sinceras, são os números e as evidências físicas que decidem a verdade científica.

Rush, ao menos, tinha a desculpa de viver numa época em que testes clínicos ainda não tinham sido desenvolvidos. O que muitos consideram o primeiro desses testes só havia sido realizado em 1747, pelo britânico James Lind, a bordo de um navio. Lind separou um grupo de 12 marinheiros afligidos com escorbuto, todos mais ou menos no mesmo estágio da doença, em seis duplas, garantindo que cada um recebesse a mesma dieta dos demais, e deu um remédio diferente a cada dupla. A que havia recebido limões e laranjas – que, hoje sabemos, são fontes de vitamina C, cuja deficiência causa o escorbuto – se recuperaram.

O teste de Lind entrou para a história por ser um modelo, ainda que rudimentar, de prova em condições controladas (mesma dieta, mesmo estágio do escorbuto), o que lhe permitiu isolar, da melhor maneira possível, a verdadeira causa da cura. Mas o processo ainda seria bastante aperfeiçoado nos séculos seguintes, com a adoção de amostras aleatórias e procedimentos duplo-cegos, até chegar aos protocolos que hoje permitem chamar uma substância de remédio. De qualquer forma, o procedimento britânico de 1747 é infinitamente superior ao americano de 1793 – e ao brasileiro de 2015! – que consistia em simplesmente distribuir o tratamento ao léu e colecionar os elogios, ignorando as mortes.

Se for possível dar uma resposta às urgências do amor e do desespero, será: nenhuma ilusão tem o poder de salvar a pessoa amada. E falsas esperanças nada fazem contra a causa real do desespero. Pior: como a história do remédio-veneno de Rush mostra, muitas vezes sufocam e matam as esperanças reais.