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Os Sítios Arqueológicos Mais Antigos do Brasil Podem Fechar por Falta de Grana

O Parque Nacional Serra da Capivara, no Piauí, pode reescrever a história dos povos do continente americano. Isso se não acabar.
Uma das pinturas em Caldeirão dos Rodrigues, no Parque Nacional Serra da Capivara. Crédito: Fundham

A história da povoação da América é um imenso quebra-cabeça. Desde o século 19, os cientistas tentam juntar esqueletos, pinturas, artefatos e, de uns anos para cá, amostras de DNA para traçar a origem dos primeiros habitantes do continente. Durante muito tempo, a imagem que se formou dessas peças reforçava aquela teoria que você deve ter escutado de seu professor de geografia: os primeiros a pintar por aqui eram asiáticos que atravessaram o Estreito de Bering quando ele estava congelado há 15 mil anos.

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Nas últimas décadas, porém, várias novas peças foram descobertas. Algumas se tratavam de células com DNA de polinésios em tribos americanas, o que trouxe a suspeita de que povoados teriam vindo de barco da Oceania; outras eram artefatos tão antigos quanto a caminhada pelo Estreito de Bering espalhados por todo o continente. Tudo levava a crer que, no fim, veríamos um verdadeiro Carnaval, com levas de imigrantes atravessando o Oceano Pacífico em ocasiões diferentes e se reproduzindo em solo americano. Mas a História não é tão simples assim.

Ainda há valiosas pistas para serem analisadas. O Parque Nacional Serra da Capivara, localizado no Piauí, possui mais de 1.300 sítios arqueológicos de grande importância para a missão de entender a origem dos povos americanos. Lá, a antropóloga brasileira Niède Guidon, de 82 anos, encontrou evidências muito mais antigas do que as citadas, como pinturas rupestres de 29 mil anos, restos de fogueiras com mais de 48 mil anos e artefatos de pedra com até 100 mil anos.

A arqueóloga Niède Guidon está desde os anos 70 no Parque Nacional da Serra da Capivara. "Não vai ter ninguém tomando conta daqui." Crédito: Fundham

Segundo a pesquisadora, elas sugerem que o continente não teria sido povoado por asiáticos ou polinésios, e sim por africanos. Eles teriam vindo à América de barco, numa época em que o nível do mar era menor e os continentes eram mais próximos. Novas pesquisas no local seriam necessárias para confirmar a tese. O problema é que o parque pode estar com os dias contados. "Hoje esses sítios arqueológicos estão ameaçados", diz Niède, presidente da Fundação Museu do Homem Americano, que mantém e protege o parque em parceria com o governo federal.

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A questão, afirma a antropóloga, é que a grana está cada vez mais curta. Segundo ela, o governo federal nunca deu dinheiro fixo para Fundação, o financiamento que eles ganhavam de empresas secou e um aeroporto, que poderia trazer turistas para a região, está em construção desde a década de 90. Os cortes foram tantos que, dos mais de 200 funcionários, só sobraram 50. "Na hora que não pudermos pagar mais, teremos que tirar todos", diz.

Um ponta de flecha exposta no museu do Parque. Crédito: Fundham

No começo de julho, o governo do Piauí repassou a quantia de R$ 270 mil para a preservação do parque. O valor, que chegará a R$ 500 mil, deveria ter sido feito em 2014. "O prometido era doar R$ 50 mil por mês, mas os pagamentos foram se atrasando, e ainda faltam outras parcelas para quitar", diz Rosa Trakalo, coordenadora de projetos da Fundação. Ela destaca que, mesmo se esses pagamentos de US$ 50 mil fossem realizados em dia, não seriam suficientes. "Está longe de ser o suficiente. É mais um paliativo. Para nos manter, precisaríamos de pelo menos US$ 400 mil por mês", diz.

Outra dificuldade de gestão é que, quando o governo federal realiza uma doação esporádica — a última, de 2014, foi R$ 400 mil —, a verba se destina a um fim específico, como a manutenção de determinado sitío arqueológico. Não há possibilidade de usar a verba para pagar os funcionários, diz a Fundação.

Representantes do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, o órgão ambiental brasileiro, escreveram em comunicado ao Motherboard que "têm alocado as melhores condições possíveis para garantir a gestão do Parque Nacional da Serra da Capivara". No documento também sugerem duas medidas para aperfeiçoar a gestão: "elaborar um projeto e buscar captar recursos de doação para poder melhorar a implantação do Parque e mantê-lo; e desenvolver um projeto de concessão de serviços de visitação pública para que o setor privado possa explorar as atividades de visitação na região".

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Para Niède Guidon, que se dedica há mais de quatro décadas às pesquisas no Parque, o discurso é ineficaz. Em entrevista à Motherboard, a antropóloga explica o que está em jogo no parque e dá uma ideia sobre como os africanos teriam povoado a América.

Motherboard: Como surgiram os problemas financeiros do Parque?

O Parque Nacional Serra da Capivara é um parque federal, só que sempre fomos nós que pagamos todos os funcionários. Nos últimos dois anos, por causa de problemas financeiros, tivemos que despedir dois terços deles. O parque é muito grande, tem um número imenso de sítios arqueológicos que precisam ser protegidos, por ser um patrimônio da humanidade. Mas estão correndo risco.

"Temos 942 sítios com pinturas. É uma concentração como não existe em nenhum outro lugar do mundo."

O que exatamente está em risco?

Tem toda uma parte ligada ao meio ambiente. O parque fica numa região de caatinga, mas possui restos de bioma da Mata Atlântica e da Floresta Amazônica. E também tem a parte arqueológica. Temos 942 sítios com pinturas. É uma concentração como não existe em nenhum outro lugar do mundo. São pinturas extremamente belas, algumas datadas de até 28 mil anos. Elas mostram cenas da vida de todo dia, cenas de rituais, cenas de sexo, parto, caça. É a vida deles que está contada nessas paredes. Tudo isso deveria ser um grande atrativo pros turistas. Mas nós recebemos apenas 25 mil visitantes por ano. Patrimônios da humanidade costumam receber milhões de turistas.

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E por que vocês não recebem tantos turistas?

É muito difícil de chegar aqui. O aeroporto mais próximo fica a mais de 300 quilômetros. Existe um projeto de construir um aeroporto internacional aqui, iniciado em 1997, e até hoje ele não está pronto. O governo prometeu que ele ia ficar pronto este ano, mas todo ano eles anunciam e depois fica pro ano que vem. Precisa saber onde foi parar esse dinheiro. Se tivéssemos o aeroporto, e se em Brasília tivesse alguém com algum conhecimento, este parque seria um atrativo único.

Como suas pesquisas aí no parque ajudam a derrubar aquela velha teoria de que a povoação da América aconteceu unicamente pelo Estreito de Bering?

Acontece que essa teoria dos americanos é muito antiga, dos anos 1950, e não tem mais nenhum sentido. O número de descobertas foi multiplicado. Hoje se sabe que a América foi povoada por várias levas de imigrantes. Existem datações mais antigas que a data que se estipula para a travessia do Estreito de Bering no Chile, no Uruguai e até na América do Norte. Aqui no Parque encontramos artefatos de pedra lascada datados de até 98 mil anos. Além disso, os esqueletos mais antigos encontrados aqui foram analisados pelo professor Walter Neves, da USP e outros antropólogos, e todos concordaram que eles têm características mais ligadas aos africanos.

E como os africanos teriam chegado à América tão cedo?

Há 130 mil anos, a África passou por um período de seca muito grande, que originou os desertos. As pessoas saíam ao mar para procurar comida, peixe. E numa tempestade os ventos e as correntes acabaram os trazendo para cá. Os nossos achados são prova disso.

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Mas existem alguns pesquisadores que questionam se esses achados seriam artefatos humanos. Eles dizem que, na verdade, se trata de geofatos, produzidos aleatoriamente pela natureza. O que tem a dizer?

Não há a menor dúvida de que são artefatos. Todo esse material foi estudado por especialistas, como o professor Eric Boeda, da França. Tudo isso foi analisado e hoje se encontra no Museu. Basta vir aqui e ver, tá?

Os caçadores se divertem dando tiros nas pinturas. Se não tiver uma proteção, isso tudo vai acabar.

Com o corte de verbas, esses artefatos estão ameaçados?

Não. Os artefatos que temos resultam de escavações, e são mantidos nas reservas técnicas do Museu. O que fica ameaçado são os sítios arqueológicos que estão lá no parque. Eles são abertos. Em alguns, inclusive, os caçadores se divertem dando tiros nas pinturas. Se não tiver uma proteção, isso tudo vai acabar.

E de onde surgiu o problema de verba?

O governo federal nunca deu um orçamento fixo para que pudéssemos pagar os funcionários. Conseguíamos fazer isso com doações. A Petrobrás fazia grandes doações, mas agora diminuiu. Também tínhamos dinheiro de compensação ambiental: firmas que degradavam o meio ambiente eram obrigadas a pagar uma porcentagem para instituições como a nossa. Mas, por volta de 2010, o governo federal criou o Fundo da Compensação Ambiental e as companhias são obrigadas a mandar o dinheiro para Brasília. Depois que virou dinheiro federal, ele sumiu.

Essa situação ameaça fechar o parque?

Se fecha ou não, isso é o governo que decide. Temos funcionários para cuidar da manutenção da infraestrutura e da arte rupestre, da parte arqueológica. Na hora que não puder pagar mais, tiramos os funcionários. Mas, antes de a gente chegar aqui, esse parque já passou mais de 10 anos sem ninguém cuidando, isso é muito comum. É o que se chama Parque no Papel. Ele é criado mas não tem funcionários e nunca é protegido.

Então o patrimônio arquelógico do parque pode estar ameaçado pela falta de dinheiro?

Pode, sim, senhor. Ele não vai ter nenhuma proteção, nem manutenção. Não vai ter ninguém tomando conta daqui.