FYI.

This story is over 5 years old.

Tecnologia

A Nova Geração de Pais Antitecnologia

Como os pais de uma sociedade tão conectada fazem para afastar os pequenos das telas?
Júlia ainda não sabe nem o que é Galinha Pintadinha. Crédito: Guilherme Santana/VICE

Quando eu era criança, odiava restaurantes. É, eu era aquela garotinha chata que chora horrores e não deixa ninguém em volta comer tranquilo. Naquela época não existia tablet, então meus pais tinham que rebolar para me fazer sentar direito e comer o mínimo que era colocado no prato. Era uma missão difícil que envolvia garçonetes com giz de cera e meu pai criando diálogos com as batatas fritas da mesa.

Publicidade

Hoje o problema da criança chorona e hiperativa em lugares públicos é resolvido com uma tela. Você já deve ter visto, no shopping ou até no metrô, a cena de pais que tentam acalmar suas crianças com os gráficos luminosos de Angry Birds ou Peppa Pig via tablet ou smartphone. Não precisa ser nenhum gênio teórico para saber que esse truque pode, no futuro, trazer algumas consequências.

Existe uma penca de estudo por aí que afirma que o cérebro das crianças pode se danificar quando exposto a muito tempo na tela. A recomendação da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) é não expor as crianças a aparatos tecnológicos antes dos dois anos. A partir dessa idade, o recomendável é apresentar alguns dispositivos a elas, mas não de forma rotineira. "O uso do tablet para distrair as crianças é um grande equívoco", me disse o pediatra neurologista Christian Müller, da SBP. "Mesmo que distraídas inicialmente, quando você o retira, pode ocorrer uma piora comportamental do que se não o tivesse utilizado."

"Não é a tecnologia em si, é sobre o uso que se faz dela"

Apesar dos médicos recomendarem um contato leve e progressivo com a tecnologia, não é o que rola na prática. De acordo com a psicóloga Laís Fontenelli, do Instituto Alana, dados do IBOPE apontam que as crianças brasileiras são as que mais assistem à televisão no mundo: passam mais de cinco horas e meia por dia em frente às telas. Da TV, os pequenos migram para a internet e, cada vez mais, são absorvidos pelo ambiente virtual. "Não significa que as crianças sejam o que se chama de nativas digitais, que elas estão aptas à compreensão total da comunicação inserida na mídia", afirma Laís.

Publicidade

Para a psicóloga, é quase impossível uma criança de um grande centro urbano crescer sem acesso a algum eletrônico. Ainda assim, existe uma corrente de pais que tentam evitar o máximo possível o contato de seus filhos com a tecnologia. Fomos atrás de alguns deles para entender como é criar crianças longe de avatares, explosões gráficas, gadgets, internet e tudo que nos enfeitiça.

"Baby, não quero minha filha para o futuro, quero ela percebendo a nossa sociedade agora."

Júlia, de dois anos e três meses. Crédito: Guilherme Santana/VICE

Fernanda e José Guilherme são os pais da Júlia, de dois anos e três meses. Eles me contaram que a filha tem acesso quase nulo à tecnologia. "Ela não pega um celular e quer mexer, ela entende que não é coisa de criança. É 'do papai' e 'da mamãe', coisa de adulto." Se a relação dela com o celular já é distante, com a televisão é mais ainda.

Quando os visitei, José Guilherme me disse que a telinha que fica no quarto dele e da mulher nem funciona. "Não tem TV a cabo aqui e nem pega canal aberto, o que a gente faz é ligar o computador nela vez ou outra para ver filme", conta.

A Fernanda me contou que observa o desenvolvimento natural do intelecto da filha. "Quando as coisas acontecem naturalmente, acontecem com mais eficácia", ela aposta. "Acho importante respeitar o tempo dela, porque o mal da nossa sociedade é que todo mundo é ansioso, é tudo feito pensando no futuro", ela critica.

Ela e o pai da Júlia querem que ela desfrute o presente. "Não aguento chegar em site de escola e ler que estão preparando minha filha para o futuro. Baby, não quero minha filha para o futuro, quero ela percebendo a nossa sociedade agora."

Publicidade

Crédito: Guilherme Santana/VICE

Mesmo sem escola e com apenas dois anos, a Júlia já sabe contar até 10. "Não é uma coisa decorada, não é imposta. Por que ela sabe contar? Ela toma homeopatia e são 10 bolinhas, então a gente conta junta. Essa matemática está na vida, ela não precisa estar na escola para aprender isso", diz a mãe.

Mas então o que a Júlia faz o dia todo? "A gente ouve bastante música", conta o pai. E ela brinca muito. A garotinha tem um teclado em um canto da sala e um violãozinho proporcional ao seu tamanho. Por não ver televisão, ela não tem contato com publicidade, fato que, segundo o José Guilherme, faz com que ela não seja "uma criança que pede coisas". Os pais me contaram que ela só pede comida. "Mas ela nunca comeu bala, só doce que a gente faz em casa. Se a gente vai no supermercado e tem aquelas embalagens coloridas pra criança, ela nem pira, nunca pede", conta o pai.

Júlia ganhou de aniversário um brinquedo da Galinha Pintadinha, mas não faz ideia do que que é. A Fernanda faz brinquedos artesanais, então a filha acompanha todo o processo de feitura do brinquedo. "Ela me vê fazendo brinquedos e adora acompanhar o processo. Quando alguém dá um brinquedo pronto pra ela, ela não liga", conta a mãe.

Crédito: Guilherme Santana/VICE

O que a Júlia gosta mesmo é de brinquedos de cozinha porque sempre vê o pai cozinhando. "Panelinha, comidinha, não é porque é 'coisa de menina', é porque ela gosta de comer, por isso ela gosta de brincar com esses utensílios."

Publicidade

O afastamento da publicidade fez com que os pais também se reeducassem. "A gente não é muito consumista", diz a Fernanda. "Você acaba se livrando junto porque não tem interferência de comercial", conta o José Guilherme.

A criação que o casal escolheu é, de certa forma, uma oposição ao que vivenciaram. A Fernanda me disse que teve uma infância bem consumista. "Eu era da TV, da mamadeira com Coca-cola, dessa turma. Tenho vários problemas gástricos. Penso que tive uma alimentação escrota a vida inteira e que devo fazer diferente", ela conta.

Os pais de Júlia flertam com a pedagogia Waldorf para criar a filha. Segundo a pedagoga Andreia Magliano, do Instituto Alana, essa pedagogia (assim como a Montessori) faz um resgate do humano, da conexão da criança com a natureza, de uma formação além da intelectual. "Por elas terem uma abordagem mais voltada para o humano, para as conexões entre as pessoas, raramente se utilizam de tecnologias porque acreditam que é na conexão humana que se faz a educação", explica a pedagoga.

Para Andreia, o importante não é necessariamente a idade com que a criança vai entrar em contato com a tecnologia, mas a forma. "Não é a tecnologia em si, é sobre o uso que se faz dela, sobretudo porque o grande problema do uso da tecnologia é o consumo de informação passivo", diz. "Existem usos da tecnologia em que a criança é produtora de culturas."

"A forma como eu conduzo as coisas com ele são as que deram errado comigo e eu não quero repetir."

Publicidade

Kenzo, três anos. Crédito: Felipe Larozza/VICE

A mesma preocupação com a alimentação existe na casa do Kenzo, de três anos. Até hoje ele não sabe o que é um fast-food, nunca tomou refrigerante e quase tudo o que come é orgânico. A mãe dele, Bárbara, tem um blog sobre alimentação saudável e é bem caxias com relação a isso. Como não podia deixar de ser, ela mantém rédeas curtas na hora de ver televisão. "Vejo pelo meu exemplo, tenho dificuldades de concentração, lembro na minha infância de estudar com a TV ligada. A forma como eu conduzo as coisas com ele, inclusive a alimentação, são as que deram errado comigo e eu não quero repetir."

Por enquanto, os resultados têm sido bem positivos. O Kenzo é um menino bastante atlético, nunca fica doente e é agitado na medida em que todas as crianças são. Ele brinca muito. O tempo todo em que estive por perto ele inventava uma nova brincadeira. Até yoga pendurado na parede ele mostrou que sabe fazer.

A família tem só uma televisão, que fica na sala, em cima do cantinho dos brinquedos do Kenzo. Ela se esforça para enrolar o filho quando ele pede para ver alguma coisa na telinha.

Crédito: Felipe Larozza/VICE

"Mamãe, coloca o filme do Snoopy?", ele pediu enquanto conversávamos na sala.

"Você mostrou seu boneco do Woodstock?", ela respondeu.

Kenzo então saiu pela casa e, durante a busca pelo brinquedo, esqueceu que queria ver TV.

"Vou esticando, só ligo mesmo quando preciso fazer alguma coisa", ela conta. Kenzo costuma pedir para ver televisão quando chega da escola, mas, segundo Bárbara, o menino acaba dormindo assim que ela liga o aparelho. Ela não vê necessidade de expô-lo a alguns conteúdos. "Sei que tem vários recursos legais, mas eu tento estimular a criatividade dele, deixar ele sozinho, não direcionar as brincadeiras dele", ela fala.

Publicidade

O Kenzo passa a tarde toda na escola. Um dos alertas que os pais ouviam por criar o menino a rédeas curtas é "você vai ver quando ele entrar na escola". Pensando nisso, eles escolheram uma escola Montessoriana para o filho. Lá não é permitido o uso de dispositivos tecnológicos e a alimentação também é bastante regrada.

Crédito: Felipe Larozza/VICE

Ele já era criado sob essa pedagogia em casa (o quartinho dele é montessoriano e ele até come em uma mesinha proporcional ao seu tamanho) porque a Bárbara foi alfabetizada em uma escola Montessori. "Os materiais de estudo deles não são voltados para a tecnologia, é zero mesmo", diz a mãe.

O Ricardo, marido da Bárbara, trabalha como analista de sistemas e ela tem um blog, então vive com o tablet ou o celular na mão escrevendo, mas "ele sabe que é nosso, não é uma coisa ele usa, mas ele vê, então é parte dele naturalmente". Para ela, é difícil vetar totalmente, mas "o máximo que eu posso, eu evito".

Para a psicológa Laís, o casal está no caminho certo. Segundo ela, é importante que os pais observem seus próprios comportamentos dentro das redes. De que adianta dizer ao seu filho que ele não pode ficar horas na televisão ou no computador quando nós, adultos, não desconectamos um minuto sequer do smartphone?

"Até os três anos quero que ela tenha atividades de vivência prática e ajude nas tarefas de casa."

Ludmila, um ano e três meses. Crédito: Guilherme Santana/VICE

Assim como os pais do Kenzo, os pais da Ludmilla também fizeram um quarto montessoriano para a filha. Ela tem um ano e três meses e tudo no quarto é acessível à altura dela: a cama, as prateleiras com os livros e os brinquedos e o espelho. A única coisa em casa que não está ao alcance da filha é a TV.

Publicidade

Ludmila não vê nada de televisão. Isso começou mais por um instinto maternal. "Acho que, no fundo, eu sabia que não era uma coisa boa. Acabei vendo artigos de neurociência que falavam dos malefícios da TV, a ciência diz que não tem necessidade, então até os três anos eu quero que ela tenha atividades de vivência prática, ajude nas tarefas de casa", conta a mãe.

Virgínia Facundo é doutora em ciência de alimentos pela Universidade de São Paulo e toda decisão relativa à educação da filha é baseada em evidência científica. O casamento da ciência com a pedagogia montessoriana foi sorte. "Quando comecei estudar Montessori, vi que tinha similaridade com os estudos de neurociência", conta a mãe.

A mãe já ensinou a Ludmila a organizar seus brinquedos e, agora, a Ludmila tem "mania de guardar". "Não sei até quando vou conseguir segurar, um dia ela vai ter acesso a jogos em tablet, desenhos na televisão, só que com muita parcimônia, vai ter um limite", ela promete.

Crédito: Guilherme Santana/VICE

Ludmila é pequenininha, mas já frequenta uma escola construtivista e tem amplo acesso a brinquedos pedagógicos. O que ela mais gosta é um cavalo com pinos de encaixar. A Virgínia também busca estimular o lado cultural da filha com atividades musicais e artísticas. "Prefiro que o tempo dela seja recheado desse tipo de estímulo", opina a mãe.

Desde que ela começou a comprar os brinquedos pedagógicos para a pequena, percebeu que a concentração da Ludmila mudou. "Nunca comprei brinquedos que brincam sozinhos, mas com esses novos brinquedos, percebi que ela mudou. Esse tipo de brinquedo estimula a criatividade, o ato de brincar. Confesso que me surpreendi, vi que funcionava na prática."

Perguntei para a Virgínia qual é o segredo para criar um filho. "Parece ser tão difícil, mas é só observar a criança, ter bom senso. Se ela quer fazer tal coisa, é porque ela tem necessidade disso", conta Virgínia.

Vejo que muita gente acha, pelo senso comum, que criar os filhos para o mundo é oferecer todo o acesso possível. Claro que é legal ter um celular moderno e um tablet que faz tudo, mas pelo visto, tudo tem seu tempo e o legal mesmo é saber interagir com as pessoas. Como a pedagoga me disse numa das entrevistas, os pais precisam instruir as crianças a usar a tecnologia da forma correta do mesmo modo que as ensinam a não aceitar doces na rua. É uma coisa básica. E será cada vez mais presente.

Ainda não tenho filhos, mas acho que vou guardar os pequenos segredos desses pais. Quem sabe uma hora coloco em prática.