​Para Entender a Treta em que o Uber Se Meteu, Olhe para Nova York nos Anos 1930
Nova York um tempinho atrás. Crédito: Wikimedia Commons

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​Para Entender a Treta em que o Uber Se Meteu, Olhe para Nova York nos Anos 1930

O Uber não é o futuro.

A crise no Brasil não é tão terrível quanto a que os Estados Unidos enfrentaram logo após o crash da bolsa de 1929, é certo. Mas para entender por que é tão complicado simplesmente liberar o Uber para rodar no Brasil (e em qualquer país do mundo), é bom dar um rolê por Nova York nos anos 30.

Naquela época, havia mais táxis em Nova York do que hoje. A equação muita gente sem emprego + fábricas precisando desovar a produção de carros + máfia precisando de entregadores de contrabando entupiu as ruas da Grande Maçã de carros amarelos. Grandes montadoras, como GM e Ford, forneciam os carros e lucravam pagando miséria para os motoristas.

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Sem regulação, a cidade chegou a ter 30 mil táxis circulando. Logo, motoristas tinham que trabalhar 16 horas por dia para conseguir o suficiente para comer: a concorrência desenfreada fez o preço da "bandeirada" cair e os congestionamentos ficaram insuportáveis.

Em 1934, dois mil taxistas que trabalhavam para as frotas das grandes empresas, revoltados, fizeram uma grande greve por melhores condições de trabalho. Os taxistas que eram donos dos próprios carros, que não tinham nada com isso, foram alvo da ira dos motoristas das frotas, e tiveram os vidros quebrados pelos manifestantes. Para piorar, o prefeito à época foi acusado de receber dinheiro dos lobistas das grandes empresas de táxi. Foram anos de caos.

Frota americana do Uber. Crédito: Instagram/ Uber

Até que, em 1937, o novo prefeito Fiorello La Guardia implementou o sistema de medallions, algo como o alvará (ou autonomia ou permissão, dependendo da cidade brasileira) que temos hoje. A ideia: reduzir o número de táxis disponíveis e limitá-los a cerca de 14 mil. Isso garantiria corridas para todos os taxistas a um preço digno e ao mesmo tempo limitaria os carros, desafogando o trânsito. Para dar um golpe na máfia, ele limitaria a 60% as licenças de táxi para empresas, enquanto 40% ficaria com os indivíduos. O custo da licença era relativamente baixo (10 dólares), então ser taxista era uma boa forma de ser microempreendedor, especialmente para os imigrantes.

O que aconteceu nos anos 1930 foi trazido de volta à tona nas últimas semanas em Nova York, quando a cidade discutia regular o Uber e serviços semelhantes de transporte individual pago, como o Lyft. O prefeito da cidade, Bill de Blasio, sujeito tão ou mais à esquerda que o atual prefeito de São Paulo Fernando Haddad em termos de políticas públicas, acenava para algo semelhante ao que foi feito por LaGuardia. Seu desejo era licenciar os carros de serviços de motorista particular, como o Uber, e limitar o seu número.

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Os argumentos de De Blasio também são parecidos: de 2010 para cá, no período em que o Uber e similares tiveram expansão, o trânsito tem piorado em Manhattan. Ninguém sabe exatamente a extensão da culpa dos carros pretos, mas a estatística mais aceita é que eles reduziram a velocidade na região mais movimentada da cidade em cerca de 7%.

Da mesma forma, um excesso de motoristas usando o Uber contribui para que eles recebam menos e tenham menos demanda por corridas. De acordo com a própria companhia, menos de um quarto dos motoristas do Uber em Nova York hoje trabalha 35 horas por semana ou mais (51% trabalha apenas 15 horas ou menos). Em outras palavras, não é um trabalho, no sentido clássico, ou como os taxistas encaram. Entre em fóruns de motoristas e as reclamações de quem "ganha menos que um chapeiro" são abundantes.

No Brasil há várias histórias de motoristas particulares felizes com o Uber — a assessoria de imprensa deles é eficaz em propagar esses causos. Mas começam a aparecer depoimentos como este feito à Trombone Media, em que um motorista que trabalha no Rio de Janeiro para o Uber, comenta:

O mercado deu uma caída, até mesmo com o Uber. Quando eu entrei havia poucos carros, hoje tem muito mais carro do que quando eu entrei. Aí, lógico, também deu uma caída no faturamento. A demanda é maior, mas o número de carros também aumentou muito.

Será que estamos caminhando para isso a repetição de Nova York nos anos 30? Em março, o número de Ubers passou o de táxis na cidade: 14.088 contra 13.587 carros amarelos. O problema do Uber, ou qualquer prejuízo que ele traga, não é de responsabilidade exlusiva do Uber, Mas da indústria do táxi. O que precisa ser repensado é toda a política de transporte da cidade, como se discute hoje em Nova York. Não há por que ser diferente do Brasil. Vejamos os problemas.

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Um dos protestos nos Estados Unidos no começo do ano. Crédito: Wikimedia Commons

O número de táxis é o mesmo há décadas, em Nova York, e tem crescido pouco em várias cidades do mundo. As licenças foram congeladas e, como sabemos até aqui, isso foi bom para não aumentar o congestionamento e para atender o lobby dos próprios detentores de táxis, que não queriam ganhar menos. Por melhor que fosse a intenção, esse sistema trouxe dois problemas claros em qualquer lugar do mundo.

O primeiro é que uma quantidade não-desprezível de taxistas age como se tivesse um privilégio, uma estabilidade funcional: rejeita corridas curtas, só aceita dinheiro quando ninguém mais anda com dinheiro na carteira, pega aquele caminho etc. A maior parte das minhas experiências com táxi no Brasil foi boa, mas todo mundo tem histórias parecidas. (A minha melhor: um taxista que andou com o taxímetro adulterado me deu uma nota falsa de troco depois que reclamei do preço.)

Mas o problema não é só dos passageiros. Os taxistas precisam pagar uma fortuna pelo privilégio de rodar. Uma placa de táxi no Brasil pode custar mais de R$ 100 mil. Em Nova York, a licença chega a US$ 1 milhão. Nos EUA ou no Brasil (como o economista Paulo Springer demonstrou recentemente), é comum aos donos de táxi cobrarem 2 ou 3 mil por mês, dependendo do ponto, para outros motoristas rodarem. É um investimento que pode ser melhor que qualquer imóvel.

Agora, imagina se você tivesse sua kombi na rua, pagasse uma grana mensal para a prefeitura (mais luvas para os fiscais) e de repente uma rede de food trucks gringa aparecesse com um serviço incrível, sem ter que pagar nada? Talvez você ficasse puto.

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Mas, bom, o que importa é que o Uber mais ou menos "resolve" esses dois problemas. É importante ter em mente que o Uber é "disruptivo" em outros países do mundo porque coisas como EasyTaxi e 99taxis ainda não tinham chegado. Um estudo da University of California's Transportation (UCTC) entre passageiros mostrou que a grande vantagem do Uber é, para 35%, a "facilidade de pagamento". Em segundo, menor tempo de espera, 30%. Isso você tem em qualquer serviço de táxi por aplicativo. As outras vantagens que o Uber dá é a certeza de uma melhor rota e a conservação do carro. Mas o último é temporário. Quem rodou em UberX (o mais barato) em cidades onde o app está estabelecido há mais tempo sabe que o serviço não é significativamente melhor.

Nos EUA e no Brasil, possuir um táxi é um investimento que pode ser melhor que um imóvel

Se você tem uma experiência ruim com um taxista, há pouco a se fazer, mesmo no caso dos apps. No Uber, é mais fácil o motorista ser suspenso e, com menos de 4 estrelas por um certo período, ele deixa de rodar. Passageiros podem ser suspensos também pelo Uber, bom que se diga.

Antes, o Estado tinha (ou tem e devem continuar tendo, para os taxistas) o monopólio de concessão de permissões. Mas, convenhamos — e estou longe de ser um libertário — o excesso de burocracia e licenças é absurdo.

O Estado só tem a checagem de antecedentes e a vistoria. O Uber tem mais que isso e ainda acrescenta um bom sistema de notas dadas pelos usuários. Ou seja: é melhor e mais barato, para oferecer a segurança de que o passageiro está entrando no carro de alguém honesto.

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Ou seja: o Uber de fato não deveria receber as mesmas regulações que um táxi porque ele não é um táxi — é um sistema superior em quase todos os níveis. O táxi que precisa ter as mesmas regulações que o Uber. Mas ambos precisam ter uma regulação diferente do que existe aí. Isso pode deixar os atuais taxistas indignados porque perderam o privilégio. Mas, ei, minha mãe tirou a linha telefônica de casa do testamento quando as teles foram privatizadas e ninguém morreu. Vai dar tudo certo.

É preciso que a transição seja lenta e estudada. Em Nova York, o prefeito De Blasio resolveu não aplicar sanções ao Uber e ficar "os próximos 4 meses observando e fazendo estudos". Uma regulação virá depois, sem dúvida. É possível esperar não apenas um limite no número de carros, mas também um "imposto de congestionamento": se o destino for da 96th para baixo (algo análogo ao Centro expandido de São Paulo), há a intenção de se cobrar uma pequena taxa sobre corridas de táxi e Uber. O imposto seria como a CPMF original e teria destino certo: melhorar a oferta de transporte público.

No Brasil há um monte de "progressistas", gente de esquerda, a favor do Uber, o que dá uma noção de quão insatisfeitos estamos com o táxi. No resto do mundo, a causa do Uber é a causa "do mercado". É a ausência de regulações, de direitos trabalhistas, e a força dos preços flutuantes determinados por algoritmos, lobby (uma empresa de US$ 50 bilhões é maior que qualquer cooperativa de taxistas, por mais que sempre se apresente como o Davi, usando e-mails dos seus usuários para pressionar legisladores).

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O que acho importante ter em mente é que o Uber não é o futuro. Quer dizer: ele pode ser parte, uma parte legal, mas ele não deve ser o futuro da mobilidade.

Para a grande missão do Uber se realizar, para mudar como as pessoas se locomovem e dar uma opção de trabalho interessante aos motoristas, é preciso, antes de tudo, que as pessoas deixem seus carros em casa — aumentando significativamente a demanda. Mas é esse o futuro dos transportes que as cidades querem? Em San Francisco, onde há bem mais carros pretos (22 mil) e uma renda mais alta, o trânsito na área central está piorando. Na mesma pesquisa citada da UCTC, 43% das pessoas que usam Uber e Lyft disseram que, se não fosse o serviço, eles teriam usado transporte público, andado ou pegado a bicicleta.

O Uber não deveria receber as mesmas regulações que um táxi porque ele não é um táxi — é um sistema superior em quase todos os níveis

Se o número de Ubers e afins puder crescer indefinidamente e o resto continuar constante, poderemos ter uma situação parecida com a de Nova York dos anos 30. E a lógica urbanística, que nas últimas décadas tem lentamente deixado de privilegiar o carro, pode ser revertida.

Como disse o articulista Anil Dash outro dia no The Message, do Medium, se quiséssemos um Uber "do futuro", que agradasse a empresa, a cidade e os passageiros em igual medida, deveríamos:

1. Fazer com que todos os carros fossem elétricos.

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2. Aumentar a acessibilidade para também os que não têm smartphones

3. Criar estações onde as pessoas pudessem compartilhar a carona

4. Usar carros inteligentes que pudessem se conectar uns aos outros

5. Diminuir os custos, usando, por exemplo, publicidade dentro dos carros

6. Aumentar a capacidade dos carros

7. Para não atrapalhar o trânsito, colocar todo esse sistema embaixo da terra.

Não parece um futuro mais incrível? Dizem que é realizável.