Seringas Inteligentes e Autodestrutivas Podem Salvar Milhões de Vidas
O fabricante de seringas inteligentes, Mark Koska, na Tanzânia.

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Tecnologia

Seringas Inteligentes e Autodestrutivas Podem Salvar Milhões de Vidas

A adoção da tecnologia que impede o reúso do equipamento médico é uma questão urgente de saúde nos países subdesenvolvidos.

Em dezembro de 2014, Yem Chrin, um médico cambojano sem licença, foi condenado por assassinato. Ao usar uma mesma seringa em vários pacientes, ele infectou com HIV mais de 270 pessoas de dois a 82 anos numa remota comunidade na província de Battambang, a quarta maior cidade do país asiático.

Embora muitos casos como esse não ganhem tanta repercussão, reutilizar seringas é uma forma séria e comum de transmitir HIV e outras doenças. Um relatório de 2014 da Organização Mundial de Saúde estimou que a reutilização de seringas em contextos médicos infectou em 2010 um total de 33.800 pessoas com HIV, 315 mil com o vírus da hepatite C e 1,7 milhões com o da hepatite B.

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Segundo Lisa Hedman, gerente de projetos na OMS, o problema é maior em países onde os recursos são limitados. "Havia uma crença arraigada de que se podia usar a mesma seringa em membros da mesma família sem problemas", ela me disse. "Trazer pessoas saudáveis a um estabelecimento com o intuito de lhes dar injeção para ajudá-las e mandá-las para casa com uma doença é algo terrível."

Em fevereiro de 2015 a OMS lançou uma política que pedia a todas as nações que passassem a usar as seringas inteligentes até 2020. Esses artefatos médicos têm tal nome porque possuem tecnologias que impedem de reutilizá-las. A mais comum é um clipe de metal que não deixa o êmbolo ser puxado de volta depois do uso, mas há também outros modelos que quebram o êmbolo se alguém tentar utilizar o instrumento pela segunda vez. A substituição das seringas antigas pelas inteligentes, dizem os agentes de saúde, pode ajudar a salvar milhões de vidas.

Seringas convencionais.Crédito: Marc Koska

Marc Koska, fundador da empresa Star Syringe e inventor da seringa A1 Auto-Disable — que quebra depois de um único uso e na qual vem trabalhando nos últimos 31 anos —, acredita que a política mundial pressionará os produtores de seringas para que comecem a produzir seringas inteligentes.

"A política global da OMS foi um grande passo adiante, pois agora somos capazes de dizer aos produtores: 'em primeiro lugar, você é obrigado a fazer isso; em segundo, você tem que fazer isso ou parecerá que você é negativo; e em terceiro lugar, você tem que fazer isso porque esse é o único produto que os doadores internacionais financiam", me disse Koska pelo telefone.

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"A maioria dos trabalhadores no sistema de saúde que usa as seringas são pessoas muito decentes, mas o sistema as força a reutilizá-las."

A seringa inteligente de Koska tem duas partes especificamente desenvolvidas. Um pequeno mecanismo de válvula é moldado na parte frontal do êmbolo e um dispositivo semelhante a um anel é colocado dentro da parede do cilindro. Uma vez que uma injeção é administrada, os dois se juntam e qualquer força excessiva faz com que o êmbolo se parta em dois.Isso, claro, previne a reutilização da seringa.

De acordo com Koska e outros especialistas com quem conversei, a reutilização não é comum só por causa da falta de noção de médicos e população, mas também devido a fatores externos, como governança, infraestrutura e corrupção. "A maioria dos trabalhadores no sistema de saúde que reutiliza as seringas são pessoas muito decentes, mas o sistema a força a reutilizá-las", diz Koska. "Se a remessa é destruída no caminho e você está a 1.000 quilômetros do galpão, e você está no Sudão ou no Congo, o que fazer se só tem 12 seringas para 200 pacientes? A escolha deles é muito limitada."

Mark Koska na Índia. Crédito: Marc Koska

Hedman também apontou a discrepância entre fornecimento e demanda como fator determinante para a reutilização das seringas.

"Há muita argumentação típica de Velho Oeste em que se diz 'certamente as pessoas deveriam estar dispostas a pagar por uma seringa se estão dispostas a pagar para colocar crédito em seus celulares'", disse Hedman. "Mas na verdade essa não é a questão. Os custos de transporte e armazenamento para seringas costumam ser imensos."

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De acordo com Hedman, até agora o Egito, a Índia e Uganda expressaram grande interesse em realizar o quanto antes a troca para seringas inteligentes. "A hepatite C se espalhou no Egito por causa da reutilização de seringa há muitos anos. Uma vez que você cria uma disseminação desse tipo, é muito difícil voltar a reduzir o número de contaminados", disse.

Para refrear a disseminação do vírus da hepatite C no Egito, o país com maior porcentagem de casos no mundo, os líderes da nação estão mobilizando a indústria para que comecem a produzir as seringas inteligentes por meio de ações publicitárias.

Crédito: Marc Koska

Koska foca suas seringas inteligentes para países em desenvolvimento. Em 2006, ele fundou uma empresa beneficente, a SafePoint Trust, que sensibiliza paquistaneses e indianos quanto a práticas de imunização. Apesar de perceber um crescimento na demanda de sua seringa autoneutralizável desde que a política da OMS foi implementada, em fevereiro de 2015, ele explicou que a oferta atual não conseguiria satisfazê-la.

"Atualmente não estão sendo fabricadas seringas inteligentes suficientes. Isso será uma revolução na produção — veremos seringas normais sendo substituídas por outras que se autoneutralizam", disse.

Koska é uma de muitas pessoas e empresas que têm trabalhado em tecnologia descartável. Ele vem afinando várias alterações da K1 Auto-Disable nas últimas décadas. Ele explicou que o objetivo nunca foi começar o processo de produção do zero, mas trabalhar com o que já existe por aí.

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"A transição do produto foi um tanto simples — o objetivo era produzir as seringas K1 no maquinário já existente, para a mesma utilização e pelo mesmo preço de uma seringa comum", disse Koska.

Crédito: Marc Koska

Mas isso significava competir ombro a ombro com modelos de negócios antagônicos e com empresas maiores que resistiram às mudanças.

"Uma das maiores curvas de aprendizado para mim foi entender que as seringas são um chamariz. Elas são fabricadas como se fossem uma commodity, enviada para o mundo como uma portadora da marca para o produtor", disse Koska. "Os produtores sempre querem ter boas vendas de seringas com um bom branding, porque isso lhes permite ter uma parcela do mercado onde podem vender outros produtos, que têm uma margem muito maior."

Para Koska, que no início do ano foi para Roka — a comunidade remota na província de Battambang onde mais de 270 pessoas foram infectadas com o vírus do HIV —, a missão é simples.

"O que estamos fazendo ao tornar essas seringas autoneutralizáveis é aumentar a consciência a respeito dos problemas da reutilização e outras práticas", disse. "Mas também estamos aumentado a conscientização de trabalhadores da área de saúde e do público para que continuem pedindo produtos melhores."

Tradução: Julia Barreiro