Seu terapeuta deveria ler seu perfil no Twitter?
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Seu terapeuta deveria ler seu perfil no Twitter?

Estudos mostram que muitos psicólogos buscam informações de pacientes nas redes sociais. Isso ajuda no processo ou é uma quebra de confiança?

Em janeiro, pesquisadores da Universidade Sigmund Freud, na Áustria, publicaram um estudo no qual perguntaram a terapeutas, psicólogos e psiquiatras se buscavam informações sobre seus pacientes online. Os resultados foram contraditórios. Quase 40% disseram que haviam feito pesquisas do tipo, mas o restante negou e, neste grupo, muitos questionaram se seria apropriado fazê-lo. Alguns expressaram desconfiança quanto à credibilidade básica da fonte, mas a maioria enxergou a possibilidade como violação grave da relação de confiança entre paciente e terapeuta.

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"Imagino que a questão surja para muitas pessoas do ramo", diz a Dra. Mayura Deshpande, presidente do Comitê de Prática e Ética Profissional da Faculdade Real de Psiquiatria do Reino Unido. Ela observou que, embora não haja regulamentos que impeçam o psiquiatra de procurar os pacientes online, ela acredita se tratar de uma invasão de privacidade.

"Nosso trabalho não é produzir um dossiê sobre a pessoa, mas, sim, trabalhar com a informação que a pessoa oferece"

O que torna a questão tão complicada, segundo os estudos limitados e comentários disponíveis, é a natureza dos serviços de saúde mental: uma relação profissional que tem como base informações pessoais e confiança.

"Ouvimos detalhes muito pessoais sobre os relacionamentos das pessoas, infância, família, coisas que você não precisaria investigar caso quebrassem uma perna", disse a Dra. Alice Ashby, consultora em psiquiatria e autora principal de um artigo recente para a publicação acadêmica British Journal of Psychiatry Bulletin, sobre ética em busca e monitoramento online de pacientes.

"Em termos éticos, não gosto da ideia de procurar informações sem consentimento; soa como uma violação de limites", acrescentou. "Dito isso, não podemos deixar a discussão morrer."

Os profissionais de saúde mental mergulham no debate com certo atraso. Se nossos chefes ou professores devem ter acesso a informações online ou devem nossa monitorar a nossa presença nas redes sociais é um debate que já está em curso há mais de uma década. O único outro estudo sobre psiquiatras e terapeutas foi realizado por um grupo de Harvard: uma pesquisa informal com "dezenas" de colegas que revelou que "a maioria dos psiquiatras" já havia procurado informações online. Os pesquisadores recomendaram novos estudos e mesas-redondas. Isso foi em 2010.

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Mas será que cabe a eles? Há quem defenda que a internet é apenas mais um recurso para se estudar um quadro pessoal. Do outro lado, argumentam que tudo que não vier diretamente da relação terapeuta-paciente não é muito útil e que respeitar os limites de um paciente está acima de tudo — "os pacientes precisam estar no controle do que dizem", afirmou um dos participantes do estudo austríaco.

"Quando se trata de saúde mental, as expectativas são ainda mais importantes, de certa forma"

Ashby e seus coautores acreditam que as informações encontradas na internet podem ser úteis como uma espécie de "história colateral". Eles imaginam que as alegações potencialmente fantasiosas de um paciente poderiam ser cotejadas com um registro online; também dizer que "escolhas cotidianas perigosas", como o uso de drogas ou álcool em excesso, poderiam ser monitoradas por meio das redes sociais. Contudo, embora essas informações possam ser úteis para o trabalho dos terapeutas e possam até inteirar diagnósticos, eles acreditam que devem informar o paciente antes de procurá-lo online. "Estamos convictos de que só devemos investigar as pessoas na rede se tiverem capacidade de consentir, e se consentirem", disse Ashby.

Os autores também temem que, mesmo com o consentimento, esse tipo de monitoramento passe a ser visto como paternalista, especialmente entre pessoas cuja "legitimidade do discurso costuma ser questionada". Também é uma questão de poder. Mesmo se o paciente permitir a busca ou o monitoramento online, ele pode se sentir coagido. Depois, pode ainda se sentir desconfortável por saber que tudo que posta nas redes será visto pelo psiquiatra.

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A Dra. Deshpande, que admite pertencer à velha guarda, diria que a maneira mais fácil de evitar todos esses conflitos é não consultar a internet, em primeiro lugar. "Nosso trabalho não é produzir uma espécie dossiê sobre a pessoa mas, sim, trabalhar com a informação que a pessoa oferece", disse ela. Ela é extremamente cautelosa com o uso da internet e pesquisas em redes sociais para confirmar as declarações de alguém.

"Quem procura um psiquiatra traz consigo um determinado volume de informações, ou revela um determinado volume de informações; é importante aceitar isso e trabalhar com isso", disse ela. "É difícil justificar informações pessoais que não são intencionalmente dirigidas ao médico."

A ideia de intenção também é importante. Um dos participantes do estudo austríaco alegou que "qualquer um que libere seus dados pessoais na internet implicitamente autoriza o acesso a eles".

Apps vigilantes

A Samaritans, uma instituição de caridade focada em saúde mental, situada no Reino Unido, lançou um app chamado Radar em 2014. O Radar monitorava os feeds do Twitter e enviava alertas aos usuários quando alguém que seguiam usava termos-chave que indicavam intenções de suicídio. A ideia era aproveitar a escala e intimidade das redes sociais para se conectar com pessoas vulneráveis; na prática, todo mundo achou assustador. Os tuítes podem estar em domínio público, mas ninguém quer um serviço aberto de vigilância de suicidas. O aplicativo foi suspenso uma semana após o lançamento.

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"As pessoas têm um senso de privacidade em espaços que consideramos públicos", disse Paul Bernal, pesquisador em privacidade online e palestrante de Direito da Universidade de East Anglia, no Reino Unido. Ele observou que, embora "senso" não signifique "direito", é importante mesmo assim.

"Quando se trata de saúde mental, as expectativas são ainda mais importantes, — o ideal é poder confiar nas pessoas que lidam conosco, poder crer que entendem nossas expectativas éticas e preocupações com privacidade", disse ele.

Em outras palavras, se os profissionais de saúde mental não esclarecerem essas expectativas, arriscam violar os limites que sequer conhecem direito. Todos os estudos existentes clamam por mais pesquisas sobre a frequência com que psiquiatras e terapeutas monitoram seus pacientes online, mas pode ser mais útil para eles compreender o que os analisadosacham da privacidade na internet e como se sentiriam se tivessem sua presença online monitorada. Ashby comentou que recebeu carta branca para realizar um estudo dois anos atrás, mas mudou de emprego antes de começar.

Ela também acredita que entender melhor a maneira como os pacientes usam a internet e as redes sociais faria bem para a profissão em geral. "Creio que é importante fazer perguntas às pessoas sobre suas interações sociais na internet, da mesma forma que perguntamos sobre seus relacionamentos na vida real. E acho que não ensinamos isso, necessariamente."

Ashby está certa: não há muita orientação disponível para profissionais de saúde mental sobre o uso da internet, seja em termos éticos ou sob qualquer outra perspectiva. Isso pode mudar em breve. Os autores do estudo do British Journal of Psychiatry alegam que "o tópico precisa ser deliberado com urgência", e a Dra. Deshpande disse que tem escutado os colegas discutirem — e ela promete colocar a internet em pauta na próxima reunião do comitê de ética.

Perguntei a Christiane Eichenberg, autora principal do estudo austríaco, por que demoraram tanto para abordar a questão da privacidade online. "É um fenômeno comum a todos os estudos que focam na nossa profissão — há certa resistência em destacar aspectos negativos", disse ela.

Todavia, como todos os problemas trazidos à terapia, não será resolvido sem muita conversa antes.

Tradução: Stephanie Fernandes