Fui a um encontro pró-Bitcoin na ilha privada de Richard Branson
Crédito: Hannes Grassegger

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Tecnologia

Fui a um encontro pró-Bitcoin na ilha privada de Richard Branson

Em algum lugar luxurioso do Caribe, homens de sunga e chinelos ensaiam como derrubar a economia global.

Hannes Grassegger, correspondente da revista alemã Das Magazin, foi convidado para o Blockchain Summit, na Ilha Necker, onde ele descobriu que a economia global está sendo revolucionada por caras de sunga e chinelo

Ao longe, sobre um cais vermelho, uma jovem acenava para nós. O vento colava seu macacão ao corpo. Ela acenava com a mão direita — a mão esquerda estava ocupada para manter seu chapéu no lugar. Aos trancos, a lancha se aproximou do cais e eu saltei para a terra firme.

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"Bem-vindo à Ilha Necker", sussurrou a mulher. "Meu nome é Kezzia". Ela se virou e pediu que eu a seguisse.

A sensação térmica era de 27 graus, a temperatura em que o corpo parece se fundir com o mundo ao redor. As águas cristalinas do Caribe estavam numa temperatura ligeiramente — e deliciosamente — inferior. Segundo o convite, deveríamos trajar "Esporte Fino", o que resolvi ao trajar uma camisa branca por cima da minha sunga.

Após uma jornada de 36 horas, eu havia chegado ao meu destino: a ilha que há 10 anos abriga a casa do bilionário inglês Sir Richard Branson. Kezzia me levou até um carrinho de golfe parado na areia. Não pude deixar de lembrar de um vídeo no qual uma das contadoras da Ilha Necker narra suas aventuras como prato humano em jantares de sushi erótico que ocorriam após o fim de seu expediente. Em outra entrevista, Branson conta a história de uma governanta que tentou proibir relacionamentos amorosos entre empregados e visitantes da ilha. "A regra durou apenas dois dias", ri ele.

Em Necker, não existe distinção entre trabalho e vida pessoal — pelo menos não para os funcionários. Quando Branson quer ficar sozinho, ele vai para a Ilha Mosquito, comprada exatamente para cumprir essa função. Apenas Larry Page, colega de kite-surfing de Branson e diretor-executivo do Google, pôde comprar um terreno na ilha.

Eu estava lá para um encontro que reuniria os empreendedores e anarco-capitalistas radicais que compõem a realeza do Bitcoin. A ideia surgiu durante um outro evento privado, quando os organizadores de uma competição de kite surf chamada MaiTai perguntaram a Branson, entre um drink e outro, se ele toparia reunir todas as grandes mentes por trás do Bitcoin em sua ilha. "É claro", ele respondeu. Eu não sabia muito bem o motivo daquele encontro, mas pelo que entendi, esses homens estavam se reunindo para planejar uma espécie de golpe. "Estamos ansiosos para recebê-lo no paraíso", dizia o convite do Blockchain Summit.

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Os convidados haviam sido selecionados cuidadosamente. No plano original, havia apenas uma mulher entre eles. Após uma chuva de críticas, os organizadores convidaram mais mulheres para o evento. Todos os participantes deveriam passar por uma longa e cansativa viagem, visto que a ilha fica no extremo leste das Ilhas Virgens Britânicas, a duas horas de voo da Jamaica. A taxa de inscrição custava milhares de dólares.

Eu já havia conhecido alguns dos convidados durante a odisséia rumo à ilha. Ao lado de um quiosque na praia, vestindo jeans e uma camiseta verde, estava Michael Zeldin, 64, um especialista em detecção de lavagem de dinheiro conhecido por suas aparições na CNN. Ex-delegado americano do G7, hoje ele atua como "Conselheiro Especial" de um escritório de advocacia que representa 17 dos 20 maiores bancos dos EUA.

A caminho do paraíso. Crédito: Hannes Grassegger

Ao seu lado, coberto apenas por uma sunga e segurando uma cerveja, estava Brock Pierce. Pierce, que afirma ter criado o termo "conteúdo produzido pelo usuário", ex-ator mirim e um magnata da Nova Economia aos 17 anos de idade. Embora americano, foi na Espanha que Brock construiu seu império de venda de moedas e armas digitais em jogos online, tornando-se uma das figuras mais proeminentes do mundo das criptomoedas. Enquanto bebíamos, Pierce me contou que, como fundador e sócio de sua própria sociedade de capital de risco, ele investe atualmente em 34 empresas.

Pierce, Zeldin e eu fomos convidados para o Blockchain Summit, um evento que planejava reunir "as mentes mais brilhantes do ramo da inovação digital" para "construir um novo futuro". Em poucas palavras, pessoas com muito dinheiro e poder haviam sido reunidas ali, numa ilha particular no meio do Caribe, para conspirar. O clímax do encontro seria o "Jantar de Encerramento do Blockchain Summit", um evento de networking descrito como um misto de "coquetel e sessão de alimentação de lêmures".

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O carrinho de golfe andou por alguns metros em um caminho de areia antes de parar na frente de uma casa de madeira de dois andares. "Os outros já estão almoçando", disse Kezzia. "Sugiro que você pegue uma bebida, dê uma volta na ilha e junte-se a nós".

"Preciso pagar a bebida?", perguntei.

Ela balançou a cabeça, rindo, e deslizou para longe.

Um lêmure pé-de-cana. Crédito: Hannes Grassegger

Do térreo, ouvi o burburinho dos outros convidados que almoçavam no segundo andar. O térreo da casa era um bar tropical, aberto para todos os lados. Uma TV enorme exibia uma partida de tênis. Reggae sacudia as caixas de sons. No bar principal, uma criatura marrom com cara de cachorro e corpo de macaco bebericava um drink abandonado. Presumi que aquele fosse um dos lêmures que Branson havia trazido de Madagascar num esforço para salvar a espécie. Além dos lêmures, Branson trouxe centenas de espécies em risco de extinção para a ilha: quase um "Grandes Sucessos" da natureza. O lêmure me encarou por um instante antes de voltar a beber seu drink.

Estava claro que Branson tinha duas coisas em mente ao construir aquele lugar: sexo e bebida. Sua villa, antes localizada em Bali, foi desmontada, despachada e reerguida no ponto mais alto da ilha. Um ofurô coroa o teto da casa, atrás da qual tremula a bandeira da Ilhas Virgens Britânicas, composta pela bandeira do Reino Unido sobre um fundo azul e a palavra Vigilate: "Esteja atento", em latim. Dali, é possível ver toda a ilha: a casa de praia, a quadra de tênis, os dois lagos, uma série de tendas e, ao longe, várias outras ilhas. Do lado de fora da casa há uma piscina de borda infinita voltada para o horizonte também infinito do Caribe.

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A Ilha de Necker já foi o refúgio da Princesa Diana; uma carta endereçada a Branson confirma seu amor pelo lugar. A ilha já recebeu eventos muito importantes, como na ocasião em que Branson reuniu políticos e empresários, entre eles Tony Blair e Larry Page, para salvar o mundo das mudanças climáticas. Em 1979, quando Branson, na época com 28 anos, comprou a ilha, o governo local ordenou a construção de um resort em Necker. Por US$65.000 diários, é possível alugar a ilha para até 29 convidados. Abaixo da casa, é possível ver os painéis solares que alimentam a ilha. Em um cais escondido, trabalhadores descarregavam um dos barcos que trazem, noite em dia, tudo que os convidados e funcionários da ilha precisam, incluindo filtro solar e um energético chamado "Pussy".

A piscina infinita. Crédito: Hannes Grassegger

Nossa atual obsessão com o progresso é comparável ao que ocorria no século 19, quando novas tecnologias como as ferrovias e o telefones mudaram o mundo e geraram riquezas nunca antes vistas. Assim como no século 19, o número de bilionários explodiu nos últimos anos. Hoje, os nossos Rockefellers são pessoas como Zuckerberg, Page, Gates, e, é claro, Branson. Atualmente, existem cerca de 1.800 bilionários no mundo (isso se contarmos em dólares, é claro). Nos últimos anos, suas fortunas cresceram tão rápido que eles começaram a procurar novas formas de gastar todo esse dinheiro. Coincidentemente, na mesma época surgia o Vale do Silício, uma pequena região cheia de empreendedores do ramo de tecnologia que precisavam de dinheiro — muito dinheiro — para levar seus projetos adiante.

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O objetivo desses empreendedores era inserir novas tecnologias em indústrias já existentes, monopolizando o mercado e ganhando ainda mais dinheiro. Essa prática é conhecida como "ruptura" — em outras palavras, o que o Airbnb fez com a indústria hoteleira, ou o Uber com os taxistas. Quanto maior o mercado, melhor o resultado. O Google criou o Google X, um laboratório cujo objetivo é testar as chamadas "moonshots", ideias tão megalomaníacas que qualquer um com juízo as consideraria absurdas — isto é, qualquer um que não estivesse disposto a investir alguns bilhões na sua realização.

A crise está chegando ao Vale — talvez pela primeira vez após o estouro da bolha da internet, ocorrido em 2001. Essa nova bolha não parece ser tão séria quanto a última, mas não há como ter certeza. De qualquer forma, quando aquelas vinte e poucas pessoas se reuniram na ilha, havia uma sensação de que precisávamos conquistar novos territórios — mais especificamente, as startups que estão revolucionando indústrias inteiras com avaliações multibilionárias e payoffs imensos. E é exatamente isso que Richard Branson planeja fazer. Com um patrimônio líquido de US$4.9 bilhões, Branson já investiu milhões em mais de uma dúzia de startups de todo o mundo, incluindo um investimento de US$30 milhões na Blockchain, um serviço de gerenciamento de bitcoins muito popular.

Em seu discurso inaugural, Branson convidou seus hóspedes a avaliar seus projetos em termos de "Escala de Efeito na Sociedade". O pequeno discurso foi encerrado com um número musical interpretado pela famosa violoncelista Zoë Keating, que passou o resto de sua estadia na Ilha Necker postando fotos das tartarugas gigantes de Branson em seu Instagram.

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Depois de passar pelo ofurô no telhado, atravessei alguns terraços até chegar em uma sala com o pé direito alto o suficiente para acomodar palmeiras. Um globo espelhado pairava sobre minha cabeça. Livros com títulos como Um Passeio Otimista Pelo Futuro e Um Experimento em Democracia Industrial repousavam sobre uma infinitude de sofás.

"Imagine presenciar o nascimento da internet. Essa é a dimensão do que estamos fazendo aqui".

No outro lado do bar, havia algumas fileiras de cadeiras de vime à frente de uma TV de tela plana que exibia as palavras "Blockchain Summit - A Visão". Naquela hora, soube que o tempo de todos os participantes daquele evento era curto e valiosíssimo. Pessoas como aquelas não se reúnem apenas para se divertir — exceto algumas exceções.

O fato de Branson ter escolhido morar naquela ilha também não era um acidente. Branson afirmou publicamente que o motivo de sua mudança teria sido sua saúde. Mas as Ilhas Virgens Britânicas — ou BVI, na sigla em inglês — onde Necker está localizada, são o paraíso fiscal mais famoso do mundo. Ao criar uma rede complexa de empresas situadas nas BVI, Branson é obrigado a pagar menos impostos em sua terra natal. Muitas crianças inglesas já ouviram falar da Ilha Necker; afinal, a ilha representa a ideia de que o indivíduo pode vencer o Estado.

Para mediar o encontro, os organizadores contrataram um dos escritores mais respeitados da área de tecnologia financeira, o colunista da Wall Street Journal Michael J. Casey. No ano passado, Casey publicou o livro The Age of Crypto-Currency, que tratava de moedas digitais como o bitcoin e a inovadora tecnologia do "blockchain".

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O blockchain, explica Casey, é um registro, uma enorme lista de transações, um livro razão digital que lista cada transferência de bitcoins realizada por meio de um sistema. Diferentemente do nosso atual sistema financeiro, no qual cada banco usa seu próprio registro centralizado para verificar a validade de suas transações, o blockchain descentraliza a verificação, criando assim um "livro razão compartilhado" disponível aos computadores conectados. Desse modo, o blockchain permite que cada usuário do sistema exerça as funções de um banco.

O blockchain não apenas impede a duplicação da moeda digital: em teoria, diz Casey, a tecnologia poderia substituir empresas, firmas de advocacia e agências cuja principal função é coordenar fundos. Nos últimos tempos, a comunidade Bitcoin foi dividida por um debate quanto ao futuro do blockchain e sua capacidade de continuar crescendo tão rápida e acessivelmente. Mas não discutiríamos isso na conferência: na ilha, o clima era mais otimista.

Hora da tirolesa. Crédito: Hannes Grassegger

Embaixo de um guarda-sol na praia, encontrei um grupo de homens de 30 e poucos anos. Todos eles eram branquelos e meio barrigudos; todos usavam shorts. Um gigante barbudo chamado Oliver Luckett ouvia rap em uma caixa de som oval muito utilizada por adolescentes em espaços públicos. Luckett conta que comprou um Rolls Royce por US$10.000 no Craigslist para em seguida queimá-lo com um lança-chamas no clipe do tal rapper. Como todos os participantes do clipe já tinham milhares de seguidores, o vídeo acabou viralizando. "Uma barganha, concorda?", perguntou Luckett. Os outros concordaram. (A empresa de Luckett, a Audience, já comandou a parte digital da campanha de Obama. Antes disso, ele trabalhou para a Disney. No império digital, Luckett é o Ministro da Propaganda).

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Num banco de areia ao longe, vi um catamarã boiando ao lado de doze pessoas bebendo nas águas rasas. Talvez Branson estivesse entre eles. "Quer ver uma coisa?", perguntou um dos caras da praia. Ele me levou até uma cabana cheia de pranchas de surf, velas de veleiros e snorkels. Na parede repousava uma foto de Branson, sorrindo para a câmera, seu cabelo balançando ao vento. Ele está em cima de uma prancha de surf, segurando uma vela de kitesurf enquanto uma modelo nua o abraça.

Marc, um holandês na casa dos 50, resolve andar de standup paddle, e eu decido acompanhá-lo. Marc investe em startups. Ele veio para a ilha direto de Vancouver, Canadá. "Por que você veio?", pergunto. O instrutor de standup paddle coloca a prancha em uma parte mais calma da água.

"O Bitcoin está se tornando cada vez mais importante", diz Marc enquanto tenta se equilibrar na prancha. "É só ver quem está aqui — o presidente da Samsung, o diretor de estratégia da Ernst & Young. Você sabia que Larry Summers, o economista favorito do Obama, está apostando num banco de Bitcoin? E o fundador da Visa também?"

De volta ao bar tropical, dei de cara com Michael J. Casey. Ele parecia um repórter de guerra americano clássico, daqueles que carregavam microfones gigantes para todos os lados — exceto pelo fato dele ser australiano. Pedimos dois analgésicos, um drink de coco maravilhoso e começamos a conversar.

"Desde a crise de 2008", diz Casey, "o sistema financeiro está completamente quebrado. O governo tentou disfarçar imprimindo mais dinheiro, mas a moeda é apenas um produto, e agora nós temos um excesso dela. É só ver o que tá acontecendo na Suíça. Taxas de juros negativas. Eles estão pagando para dar dinheiro para outras pessoas. É claro que as pessoas estão buscando outros investimentos, como casas e etc. Mas o que eles vão usar como moeda?", disse, balançando a cabeça.

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"O principal problema da crise financeira é que tudo estava conectado", continuou. "Centralização. O pior é que depois da crise as coisas só pioraram. Para completar, toda a economia internacional depende de dois bancos centrais. Você chama isso de estabilidade? O Bitcoin é a melhor alternativa para esse sistema financeiro falido."

Antes do tão esperado coquetel, caminhei do bar tropical para a casa de Branson com Luckett e um outro australiano. O australiano nos levou até seu quarto, reservado pela bagatela de US$2.000. Ele havia conseguido um bom preço — normalmente, é preciso alugar a ilha inteira. Por esse preço, o australiano concordou em dividir o quarto com o futurista Marshall Thurber. Na varanda, Casey filmava o pôr do sol.

"Vivemos em tempos muito empolgantes", disse ele. "Imagine presenciar o nascimento da internet. Essa é a dimensão do que estamos fazendo aqui."

Registrando o pôr do sol. Crédito: Hannes Grassegger

Os primeiros convidados haviam chegado no dia anterior, mas ninguém sabia muito bem qual era o cronograma do evento. De volta à sala das palmeiras, Casey se sentou ao lado de um cara gordo e careca que vestia uma camisa polo cor de vinho. Ele estava contando a história de como escreveu a constituição peruana. Aquele era Hernando de Soto, conselheiro de diversos chefes de estado e bastião do capitalismo de mercado na América Latina. Segundo ele, o capitalismo pode combater todos os males do mundo, incluindo o terrorismo.

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Quando de Soto tem uma dúvida sobre a Rússia, diz Casey, ele liga para o próprio Putin — e o Putin atende. Bill Clinton já chamou Soto de "o maior economista vivo". Para garantir que Hernando chegasse ao evento a tempo, o primeiro-ministro das Ilhas Virgens lhe mandou um visto especial por fax. De Soto tem braços assustadoramente fortes e peludos que se movem como pinças de caranguejo. Naquela manhã, o peruano havia preparado os participantes do encontro para sua missão: instituir o verdadeiro capitalismo. O que significa que, segundo ele, o verdadeiro capitalismo ainda não existe.

A pobreza, de acordo com a teoria que fez de Soto famoso, não é fruto da exploração, mas sim da exclusão. Em outras palavras, os desfavorecidos não participam do capitalismo por não ter nada para negociar. Moradores de favelas, por exemplo, constroem barracos que nunca serão legalmente seus, visto que a lei não reconhece a legalidade dessas moradias. Se eles tivessem algum documento oficial, algum tipo de escritura ou título, o barraco valeria algo. Assim, essas pessoas poderiam vender seus barracos ou hipotecá-los para abrir um negócio. Logo, para tirar as pessoas da pobreza, é preciso ligar os bens aos indivíduos. É preciso que eles tenham direito à propriedade.

Na maioria dos países, isso é uma missão quase impossível. Nesse momento da conversa, de Soto abre uma pasta: dentro dela, vemos os mais de trinta requerimentos necessários para abrir uma empresa no Peru. Nas suas palavras, uma "blockchain física" que leva centenas de dias para ser processada. Se esse processo fosse otimizado, a pobreza mundial desapareceria, e o verdadeiro capitalismo floresceria. Todo mundo ficou boquiaberto.

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Ao lado de de Soto estava Brian Forde, um homem silencioso que era, até pouco tempo, conselheiro de tecnologia de Obama. Hoje ele lidera a Iniciativa de Moedas Digitais do Laboratório de Mídia do Instituto de Tecnologia de Massachussetts, nos Estados Unidos, além de viajar pelo mundo convencendo governantes e empresas a adotarem o blockchain.

Ao chegar ao jantar, somos recepcionados por centenas de flamingos barulhentos. O fogo estava aceso, os chefs cuidavam do buffet e uma mesa longa e branca nos esperava. Tirando os funcionários, quase ninguém seguia o código de vestimenta, descrito no convite como "Uma Noite em Branco". A maioria dos convidados vestia shorts — ternos são as amarras da sociedade, e como tais, muito limitadores. De repente, uma barbatana de tubarão emerge do mar abaixo do buffet. Um dos convidados ri e joga um osso de galinha na água. "Economize Água, Beba Champagne", diz sua camiseta.

Os flamingos. Crédito: Hannes Grassegger

À minha frente estava Paul Brody, um esbelto executivo de São Francisco de cabelo curto e grisalho. Ele contava alegremente, com sua voz anasalada, como havia sido derrotado por Branson numa partida de tênis às sete da manhã do mesmo dia. "Muito impressionante para alguém de 65 anos!", diz ele.

Brody já havia testado todos os personal trainers da ilha. Perguntei quanto ele estava pagando para estar aqui. "Hmm", disse, com expressão de quem calculava. "Minha empresa pagou uma taxa de US$36.000 por três dias, mais o voo, mais a estadia aqui na ilha, que dá US$8.000, mais a taxa de participação… Ao todo, uns US$50,000."

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"Nenhum governo seria capaz de controlar o Bitcoin"

Brody é uma figura relativamente importante no Vale do Silício. Seu marido negociou a compra do Instagram pelo Facebook. Brody, por sua vez, já comandou 6.000 funcionários na IBM, onde seu principal foco era a Internet das Coisas. Hoje, no entanto, ele é o "Líder de Estratégia" da Ernst & Young. Em certo ponto da conversa, começamos a falar sobre ciclismo. "Eu amo pedalar!", diz Brody. "Eu pedalava bastante até ser atropelado. Depois disso, jurei para mim mesmo que só subiria numa bicicleta de novo quando todos os carros fossem autônomos." Nosso colega de mesa concordou entusiasticamente: "Humanos são falhos. Temos que tirá-los da equação."

Ao lado de Brody estava Jeff Garzik, um dos maiores empresários do ramo do Bitcoin. Atualmente ele está procurando investidores dispostos a financiar a criação de mini-satélites para uma rede Bitcoin especial. "Nenhum governo seria capaz de controlar o Bitcoin", disse.

Mais tarde, encontrei um grupo de pessoas deitadas num sofá e compartilhando um cigarro eletrônico cheio de maconha líquida. Um deles, funcionário de Branson, me contou que a ilha tem 120 funcionários — em média três para cada convidado. Ele me conta que ganha US$1.200 por mês — o mesmo que Brody ganha em uma hora.

***

Por volta das nove da manhã do dia seguinte, o café da manhã é servido: bacon, ovos, tomates, croissants e suco de couve detox; barras de granola e garrafas de champagne com um rótulo dourado que diz "Propriedade de Sir Richard Branson". Frente à tigela de cereais, esbarrei com o próprio Branson.

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"Oi!", disse ele, sorrindo amigavelmente. Bronzeado e vestindo uma camiseta cinza e sunga, Branson tem uma juba dourada de surfista que chega à altura de sua boca, cheia de dentes enormes e emoldurada por um cavanhaque escuro. Depois de nosso esbarrão, ele pega um copo de suco e sai andando com seu cereal. Segui ele até uma varanda com uma longa mesa de madeira, grande suficiente para acomodar seus 30 hóspedes.

O blockchain iria, em suma, trazer o capitalismo para a era da internet

Eu estava começando a entender que a vida de um bilionário é como um reality show. De Soto, Forde, Casey e Luckett sentavam ao redor de Branson, todos eles tentando vender projetos e planos com o mínimo de frases possíveis. Isso é o que chamamos de "proposta de elevador": 90 segundos para convencer um investidor importante a apoiar seu projeto. Branson, com um patrimônio líquido de cinco bilhões de dólares e um interesse por projetos inovadores, é uma oportunidade imperdível. Um fabricante de elevadores já sugeriu que Branson instalasse um elevador na ilha só para esse tipo de propostas.

Branson ouvia as propostas com calma enquanto comia seu cereal e bebericava café. De vez em quando ele fazia alguma pergunta numa voz gentil. Sua gagueira, normalmente bem acentuada, estava sob controle. Ao tentar voltar para o buffet, Branson não consegue andar mais de alguns metros sem ser parado, seja para ouvir uma nova ideia ou para pousar para uma foto que será postada imediatamente, aumentando, assim, a fama da pessoa ao seu lado.

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Almoçando com Richard. Crédito: Hannes Grassegger

Por volta das dez da manhã, o maior evento do dia teve início. Os 35 convidados, entre eles sete mulheres, se reuniram ao redor de uma TV no hall principal. Alguns deles já haviam preparado pequenas apresentações. Brody, o ás do empresariado, me explica que no futuro tudo será conectado.

"Toda torradeira terá um chip como esse", diz ele, mostrando seu iPhone. "Esse chip tem mais capacidade de processamento do que o primeiro iPhone", acrescenta, entusiasmado. "Esse aparelho poderia se conectar à internet. E o que acontece quando as coisas se conectam à internet? Nós registramos seu uso, avaliamos seu desempenho, tentamos aperfeiçoá-las. Foi o que aconteceu com os exercícios, graças às pulseiras Fitbit, que contam nossos passos. Ou com apartamentos, que alugamos no Airbnb quando viajamos, ou com os carros, que alugamos quando não os usamos."

"Há potencial inexplorado em todas as áreas", continuou Brody. Se houvesse um método de categorizar esse potencial e investir nele, o mercado se tornaria "enorme, inacreditável". A tecnologia blockchain, diz ele, é a ferramenta necessária para administrar a "internet de valor", onde "tudo" seria negociável. De Soto ficou interessado.

O blockchain iria, em suma, trazer o capitalismo para a era da internet. Tentativas semelhantes já falharam, em grande parte graças à facilidade de divulgação de informações na internet. A internet é um reino de opulência; e é por isso que o conteúdo digital, como músicas, imagens e textos, é quase sempre gratuito — ou extremamente sigiloso. A capacidade do blockchain de descentralizar cada pedaço de código eliminaria completamente a possibilidade de copiar uma música, por exemplo, já que cada cópia digital seria registrada. Uma revista digital criada num sistema de blockchain teria cópias únicas, assim como uma revista física. Ela poderia, assim, ser comprada e vendida como qualquer objeto físico.

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Em seguida, um cientista da computação de cabelo longo chamado Patrick Deegan apresentou um dos usos práticos do sistema blockchain. Deegan afirma ter utilizado o sistema para criar passaportes digitais que permitem que os usuários registrem seus bens. Durante sua apresentação, Deegan cita o conceito de "contratos inteligentes": acordos digitais que se autentificam automaticamente, assim como carros alugados que não funcionam caso o pagamento não tenha sido efetuado. Esse sistema não precisaria de uma equipe de apoio. Deegan está confiante. Ao que tudo indica, o blockchain poderia automatizar a burocracia. Ele pode substituir milhões de trabalhadores. Nos últimos tempos, diz ele, os bancos mais poderosos do mundo se uniram para formar um grupo chamado R3, cujo objetivo é testar ideias como essas.

Tudo isso, diz a maioria dos palestrantes, servirá ao bem comum. Um dos convidados citou o arquiteto Buckminster Fuller, um dos ídolos da galera do Vale do Silício. Ele distribui a bíblia de Fuller, Spaceship Earth, dizendo como "Bucky" continuou a espalhar sua mensagem durante seus últimas dias de vida: "O futuro da humanidade depende de nossa integridade pessoal". Em seguida, apresentou um sistema de avaliação para humanos no qual todos seriam constantemente avaliados. O sistema funcionaria como o Uber, onde clientes avaliam motoristas e motoristas avaliam clientes; mas ampliado para a vida inteira e disponível publicamente.

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Para a maioria dos convidados,a ideia de Bucky não parecia tão empolgante. As reações da platéia variaram, e um aplauso amigável preencheu a sala.

Para finalizar, Luckett — o cara que queimou o Rolls Royce — argumentou que o desenvolvimento da internet e do blockchain não é apenas espiritualmente correto, mas sim natural. A natureza, segundo ele, também se divide em redes. Para provar seu argumento, Luckett exibiu imagens de redes de fungos ao lado de representações gráficas de redes sociais. Dessa vez os aplausos foram mais enérgicos. Durante uma breve pausa, os participantes se reuniram numa das varandas para tirar uma foto em 3D. Quando o drone fotógrafo surgiu, em meio ao céu azul, todos levantaram seus braços em comemoração.

Nos preparando para a selfie. Crédito: Hannes Grassegger

Durante o almoço, servido na piscina, o clima era de euforia. Enquanto eu mergulhava, uma jovem empurrou um barquinho cheio de drinks na minha direção. "Batida de saquê?" Em seguida fui atingido por um mini-caiaque cheio de sushi. Um chef famoso servia os convidados vestindo apenas uma sunga. Do pool bar coberto por folhas de palmeiras, ouço a música "Dream on Chrome", da dupla de eletro-pop Ratatat.

"Quando tudo funcionar através do blockchain… eu vou poder demitir metade da minha equipe. Advogados, tabeliões, banqueiros — o trabalho deles será feito automaticamente pelo blockchain".

De volta ao bar, bebi uma água de coco com um banqueiro de investimentos de cabelo loiro e arrepiado. Ele estava chapado.

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"Ótimo, cara!", diz ele. "Meu negócio lucra muito com a China. É complicado pra caramba, têm um monte de regras, transparências e limites. O custo de monitoração é absurdo… Mas eu acho que a eficiência vai aumentar drasticamente".

"Como?", perguntei.

"Quando tudo funcionar através do blockchain… Eu vou poder demitir metade da minha equipe", diz ele, satisfeito. "Advogados, tabeliões, banqueiros — o trabalho deles será feito automaticamente pelo blockchain." Nesse momento uma mulher com um vestido justo e um chapéu gigante chama sua atenção. Os convidados da festa haviam chegado.

O peixe, que estava excelente, deve ter vindo de longe, visto que um vírus misterioso contaminou todos os peixes da área. Começo a conversar com um homem na casa dos 30 anos. Ele está no ramo de venda de bitcoins e divide seu tempo entre Londres e Paris. Seus olhos brilhavam.

"O governo tem setores enormes que só servem para administrar bens e executar contratos", disse o homem. "Não estou falando apenas dos bancos centrais, mas também das agências de passaporte, dos cartórios e dos registros públicos de imóveis. Tudo isso se tornará obsoleto." Enquanto um investidor de risco mergulhava ao nosso lado, seu Blackberry ainda em mãos, o homem sussurrou, num tom conspiratório: "C'est une revolution."

Saímos da piscina, onde encontramos com um jovem árabe. "Salaam", disse ele, sorrindo.

"Ele é dos Emirados Árabes", explicou meu novo amigo enquanto caminhávamos em direção à praia. "Ele pode ser o primeiro grande investidor de blockchain do país. Talvez ele fique mais rico que Branson. De qualquer forma, Branson o proibiu de trazer seus guarda-costas para a ilha."

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Ao chegar na praia, peguei um snorkel. Nadei colado ao fundo do mar, passando ao lado de uma criatura circular. O animal tinha cerca de meio metro de diâmetro, e seu corpo pulsava lentamente. A água estava cheia de peixes enormes e bizarros.

***

Por volta das sete da noite, conheci Tina Hui, dona de um site sobre Bitcoin. Ela posta novas informações sobre o mercado de moedas digitais dia e noite — mesmo enquanto se maqueia.

"Eu não posso estar desarrumada, afinal, estou sempre online", falou. Tina foi uma das mulheres adicionadas à lista de convidados após o surgimento de críticas em relação à predominância masculina do evento. As outras convidadas incluíam uma engenheira espacial que trabalha na fábrica de naves espaciais de Branson, uma advogada famosa e Elizabeth Rossiello, presidente executiva da BitPesa, uma empresa de Nairóbi que oferece serviços de troca entre bitcoins e moedas africanas.

Isso é ótimo para a reputação da moeda; o Bitcoin nunca será adotado pelas massas caso continue a ser visto como uma moeda utilizada por criminosos na internet. Por motivos semelhantes, na mesma manhã um cavalheiro com cabelos cuidadosamente penteados e uma camisa de linho pêssego — e ex-funcionário do Departamento de Justiça — havia sugerido a cooperação entre "agências do governo". Em outras palavras, um cessar-fogo muito estratégico.

Na praia. Crédito: Hannes Grassegger

Chegamos ao bar tropical bem na hora. O chef havia preparado uma refeição marroquina, talvez em homenagem aos convidados árabes. A mesa tinha formato de U. Naquele momento, havia por volta de setenta convidados na ilha. De onde eu estava, pude ver Michael Zeldin e várias mulheres. A praia estava iluminada por tochas, e nossas taças estavam cheias de vinho rosé da Nova Zelândia. À minha frente estava Ted Rogers, que parece um capitão de time de remo. Rogers é presidente da Xapo, uma carteira de Bitcoin. Larry Summers, ex-candidato à presidência da Reserva Federal dos EUA, trabalha atualmente para a empresa.

Os investidores do Bitcoin devem sair de suas ilhas paradisíacas, disse Rogers, e entrar em países "limpos". A Xapo tem uma sede na Argentina e outra na Suíça. "A Suíça pode virar o país do Bitcoin", diz ele. Segundo Rogers, a cultura de privacidade e o estado mínimo do país são perfeitos para esse tipo de investimento. "Para completar, os legisladores de lá são muito razoáveis. Eles estão sempre abertos ao diálogo." Ele estava me contando que há uma importante comunidade pró-Bitcoin na cidade suíça de Zug quando Branson apareceu.

Zug, uma pequena cidade de 30.000 habitantes, já foi um paraíso fiscal. Graças à sua política de livre mercado, a cidade se tornou um dos principais destinos dos fãs das criptomoedas. Entretanto, a cidade é tão entediante que a Xapo transferiu sua sede para Zurique, a cidade mais movimentada do país. Em janeiro, Wences Casares, presidente executivo da Xapo, se juntou à diretoria da Paypal.

Existem dois tipos de bilionários: o que enriquece graças ao sistema e o que, assim como Branson, lucra com sua destruição.

O som do violoncelo preenchia a quadra de tênis enquanto os convidados deitavam em almofadas posicionadas em um semi-círculo. Branson estava sentado, tal como o monarca que é, acima de nós, num sofá ao lado do sheik. Zoë Keating, a violoncelista, sai do palco. De Soto se levanta. Sua apresentação é a próxima. Por um breve momento, Branson fica sozinho.

"Senhor", digo. Ele se curva em minha direção. "Você foi produtor dos Sex Pistols."

Ele acena suavemente, rindo um pouco. No Jubileu de Prata da Rainha Elizabeth II, ocorrido em 1977, Branson alugou o barco onde a banda de punk zombou da monarca. A polícia acabou envolvida, é claro, e a mídia estava lá, filmando tudo. O escândalo colocou a música no topo das paradas, o que fez Branson ganhar muito dinheiro. Existem dois tipos de bilionários: o que enriquece graças ao sistema e o que, como Branson, lucra com sua destruição.

"Sua motivações são as mesmas daquela época?", perguntei. "Você continua contra o Estado e os bancos?"

"É claro. Você entendeu", ri ele, levantando a mão para um high five.

"Capital!" grita de Soto. Ele cerra os punhos, observando atentamente a multidão. "É um termo que se refere à cabeça de César nas moedas romanas. Ele vem do termo latino caput — cabeça." Sua voz era forte e até a violoncelista parou para ouvi-lo. "A cabeça representa o poder", e Soto levanta seu punho, "e essa cabeça é você".

Naquele momento, Branson parece um garoto assistindo ao primeiro voo de seu aeroplano. De Soto aponta para a platéia e diz: "Você é parte da criação de um novo capital".

"Sim!", grita Branson de seu divã. "Sim!", repete, agora aplaudindo. Seus convidados se juntam a ele, e os aplausos inundam a ilha.

A festa de encerramento é um fracasso.

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Hannes Grassegger é um economista que mora em Zurique, capital financeira da Suíça. Grassegger fugiu do mercado financeiro para cobrir notícias relacionadas à vida digital (ou Digitales Leben, como dizem os suíços). Ele é o autor de Das Kapital bin Ich (Eu Sou o Capital), um artigo publicado aqui na Motherboard que ensina como mandar a NSA às favas — e ainda ganhar uma graninha às custas dela. Siga Grassegger no Twitter no perfil @HNSGR. Esse artigo foi publicado originalmente em alemão na Das Magazin.