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Por que tanta gente sofre calada com suas hemorroidas?

Quem tem cu, tem medo.
Crédito: WildRabbitsBurrow/ETSY

Passando por uma vitrine cheia de quinquilharias engraçadinhas ( fun design, dizem), não pude deixar de notar uma almofada fofa no formato de donut pink com fitas de feltro imitando granulados coloridos. Lembrei imediatamente do Tio Júlio e sua almofada azul de rosquinha de fins da década de 1980 – e seu silêncio sepulcral sobre a escolha de um assento tão peculiar.

Só tempos depois descobri que Tio Júlio, assim como cerca de 50% dos adultos de mais de 50 anos mundo afora, tinha hemorroidas, isto é, dilatações de veias do ânus. No Brasil, estima-se que o índice esteja entre 5% e 12% da população, mas o número não é exato já que um bom punhado de pacientes hesita em procurar um médico.

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Apesar do alto índice de ocorrência da doença e dos avanços de técnicas cirúrgicas para tratá-la, hemorroida ainda é um tabu atualmente – como bem definiu um amigo achacado por esta incômoda inflamação, "é melhor ser flagrado vendo filme pornô na internet do que procurando informações de saúde sobre hemorroidas". Mas há demanda: no site oficial do Dr. Drauzio Varella, médico pop star e colunista da Folha, por exemplo, o assunto sempre está entre os cinco tópicos mais visitados do mês. Nos últimos tempos também pipocam blogs, de autores anônimos, que compartilham depoimentos detalhados e diários pós-operatórios.

Na verdade, todo mundo tem hemorroida, incluindo você e eu. Hemorroidas são vasos sanguíneos que protegem os músculos do esfíncter anal (que abrem e fecham o orifício que inspira os mais diversos insultos). "A função é fechar o ânus totalmente. Em palavras simples: serve para impedir que qualquer coisa escape dali", define o médico Carlos Mateus Rotta. O problema é a inflamação (interna ou externa) da hemorroida, que incha e forma nódulos fibrosos, prurido e protuberâncias nos recônditos mais íntimos do corpo humano. Fato: não é bonito.

A principal causa para a doença hemorroidária é a hereditariedade, mas sedentarismo, intestino preso, gravidez, esforço excessivo, diarreia crônica, desbundes alimentares e alcóolicos agravam a situação. Entretanto, o tabu das hemorroidas acaba abrindo brechas para diversos mitos.

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Sexo anal influencia? Mito. (Mas a penetração pode provocar fissuras).

É sintoma de câncer? Mito. (Mas o sangramento é um sintoma similar encontrado nos casos de câncer anal e retal).

Pimenta atrapalha? Não é a causa da doença, mas a agrava, sim.

E papel higiênico? Também provoca irritação e comichões nos coxins.

"Nunca neguei minha hemorroida. Mas, no fundo, sabia que todo mundo ria, às minhas costas, quando eu levava travesseiro para o trabalho. Pimenta no dos outros é refresco"

"Lembre-se: banheiro não é biblioteca", diz Drauzio Varella no seu site. De fato, ficar sentado no trono por muito tempo, folheando revistas ou zapeando o smartphone, implica um esforço que pode afetar veias já fragilizadas.

Muitos adiam a consulta médica, por preconceito, temor, timidez ou um mix dos três motivos. O atraso pode trazer complicações à doença hemorroidária que pode evoluir a graus mais avançados, tornando quase inevitável a necessidade de um procedimento cirúrgico. Além disso, a falta de avaliação médica pode esconder o diagnóstico de outras condições graves, como câncer.

O designer fluminense RS, 39, sofreu 19 anos com suas hemorroidas inflamadas. "A dor é ardida, aguda e latejante, lembra uma picada de abelha lá dentro", descreve. "Nunca neguei minha hemorroida. Mas, no fundo, sabia que todo mundo ria, às minhas costas, quando eu levava travesseiro para o trabalho. Pimenta no dos outros é refresco", diz RS, que decidiu enfrentar uma cirurgia para remover as nefastas veias em 2015. A sensação, segundo RS, foi "aliviar uma melancia" no delicado (e doloroso) pós-operatório.

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"Doença hemorroidária é tabu por diferentes razões, da ignorância à homofobia. Na realidade, este tabu para o diagnóstico tem relação direta com a sociedade machista que vivemos, relacionado ao toque retal", considera o proctologista paulistano Paulo Branco. "Ninguém gosta de ir ao médico, muito menos ao médico especializado no ânus", afirma.

Branco conta que muitos pacientes pedem para não identificar a doença nos atestados médicos para empresas. "Doutor, por favor, coloque qualquer outra doença, mas não hemorroida, porque quando retornar ao trabalho sei que terei de enfrentar aquela cornetagem e gozações", relata.

Segundo Branco, a doença hemorroidária é uma das enfermidades mais antigas na história da humanidade, relatada inclusive por Hipócrates, pai da medicina. "À primeira vista", diz, "trata-se de uma doença simples, corriqueira nos consultórios, mas escondidas pelas vestes. O paciente esconde do médico e do vizinho, até o aparecimento de um sintoma importante como o sangramento vermelho vivo".

Nos casos mais simples, o tratamento é clínico, com pomadas anestésicas e supositórios para abrandar a dor. Segundo especialistas, vale também seguir uma dieta rica em fibras e frutas frescas. Nos casos mais graves é indicada a temida intervenção cirúrgica.

Nos anais da medicina moderna, data de 1937 a cirurgia "clássica" para a doença hemorroidária. A técnica, que ainda é a mais realizada no mundo todo, oferece melhores resultados, mas a dor pós-operatória é cruel (o que alimenta o medo de muitos pacientes).

Na década de 1980 foi desenvolvida outra técnica com um grampeador, que ficou conhecido como Procedimento para Prolapso Hemorroidário (PPH). O novo método avançou um pouco no controle da dor, mas foi acompanhado por outras complicações cirúrgicas.

A partir de um estudo de 1995 foi desenvolvida a técnica Desarterialização Hemorroidária Transanal (THD), nos anos 2000, que diminuiu consideravelmente a dor e as complicações – mas que envolve uma "recidiva" (termo técnico para recaída, atingindo outras veias) de 8 a 16%. Em contrapartida, após a cirurgia "clássica", a chance de a doença hemorroidária voltar está na casa dos 3%.

Segundo Rotta, é preciso considerar condições físicas do paciente e, sim, custos cirúrgicos a depender das instalações hospitalares. "Não há cirurgia perfeita. É preciso analisar caso a caso", afirma.

Enquanto não há despedida definitiva para essas malquistas fissuras anais, muitos pacientes esperam sentados – preferencialmente, nas suas almofadas especiais.