Por que fazendeiros americanos estão hackeando seus tratores

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Tecnologia

Por que fazendeiros americanos estão hackeando seus tratores

Um mergulho no mercado negro de softwares ucranianos modificados para transportes agrícolas.

Para driblar a rigidez de uma das maiores fabricantes de tratores dos Estados Unidos, agricultores de todos os cantos do país começaram a hackear suas máquinas com softwares da Europa Oriental vendidos em fóruns online exclusivos.

O hacking de tratores está crescendo em popularidade. Parte disso se deve ao fato de que a fabricante John Deere e outras empresas similares vêm proibindo modificações "não autorizadas" em suas máquinas agrícolas. Revoltados e com discurso afiado, agricultores se juntam numa verdadeira comunidade de troca de conhecimento hacker para customizar e melhorar suas máquinas e se libertar do controle e do sistema fechado das companhias.

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"Quando o trator quebra, não temos tempo para esperar um funcionário da concessionária vir arrumar", disse Danny Kluthe, um criador de porcos de Nebraska, à assembleia legislativa do estado no início do mês. "A maioria das máquinas mais novas precisa de um download para ser consertada."

O pior dos cenários — e um medo mencionado em quase todas minhas conversas com os agricultores — é que a John Deere possa inutilizar seus tratores de forma remota, deixando os fazendeiros à mercê da empresa.

"É comum ver técnicos usando softwares da John Deere crackeados comprados no mercado negro"

Um contrato de licença emitido pela John Deere e assinado por fazendeiros em outubro de 2016 proíbe qualquer reparo e modificação em seus equipamentos agrícolas. O documento também impede que produtores processem a empresa por motivos de "perda de safra, perda de credibilidade empresarial e perda do uso do equipamento resultantes do desempenho ou não-desempenho de qualquer aspecto de nosso software". O acordo se aplica a qualquer um que compre ou utilize um trator John Deere automatizado. Isso significa que apenas as concessionárias e oficinas autorizadas podem oferecer reparos aos modelos mais novos.

"Quando um fazendeiro compra um trator, ele tem o direito de fazer o que bem entender com ele", defende Kevin Kenney, agricultor e defensor da lei de direito-ao-conserto de Nebraska. "Você precisa substituir a transmissão do seu trator e leva ele para um mecânico independente — ele pode trocar a transmissão, mas você não vai conseguir tirar o trator da oficina. A John Deere cobra US$230 e mais US$130 a hora para que um técnico vá até você e conecte um cartão na entrada USB e autorize a nova peça."

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"É comum ver técnicos usando softwares da John Deere crackeados comprados no mercado negro", acrescenta.

Crédito: Cartec-Systems

Kenney e Kluthe defendem a criação de uma lei de direito-ao-conserto no estado de Nebraska, o que invalidaria o contrato de licença da John Deere (sete outros estados estão analisando projetos de lei semelhantes). Enquanto isso, os agricultores começaram a hackear suas próprias máquinas, já que até os consertos mais simples são impossibilitados graças ao software que controla os tratores. A John Deere se opõe radicalmente a esse projeto de lei.

"Se você procurar é fácil achar softwares falsificados", me contou um fazendeiro e mecânico de Nebraska que usa um software crackeado da John Deere. "Minha oficina não é das maiores, mas digamos que um cara precise consertar seu trator. A concessionária mais próxima fica a 65 quilômetros, mas a 2 quilômetros você encontra várias oficinas. A única forma de consertar esses tratores é infringindo a lei, que é o que prejudica o empreendedorismo e a produtividade dos agricultores."

Lancei-me na missão de encontrar um dos fóruns onde softwares piratas da John Deere são vendidos. Depois de achar um deles, não pude fazer muito antes de me cadastrar. Na sequência, recebi um email que me instruía a comprar uma peça de diagnóstico falsa por US$25 em um terceiro site. Em vez da peça, recebi um código para entrar no fórum.

Lá dentro, encontrei dezenas de tópicos criados por fazendeiros desesperados para consertar ou adaptar seus tratores. De acordo com os membros desses fóruns e os fazendeiros que são obrigados a usá-los, grande parte desses software é crackeada em países como a Polônia e Ucrânia e depois vendida para agricultores americanos.

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Segue uma lista do programas comercializados:

John Deere Service Advisor: Um programa de diagnóstico utilizado por técnicos da John Deere para recalibrar tratores e diagnosticar peças danificadas. "Ele programa cargas em diferentes controles. Ele pode também calibrar os injetores, a função turbo, a quilometragem e muito mais", afirma uma pessoa familiarizada com o software.

John Deere Payload files: Esses são os arquivos que programam partes específicas do veículo. Com eles, é possível costumizar e aperfeiçoar o desempenho do chassi, do motor e da cabine.

John Deere Electronic Data Link drivers: Esse software permite que um computador se comunique com o trator. "O EDL permite a comunicação entre um computador selecionado e os controles do trator", explicou minha fonte.

Decryptor Tuning, um engenheiro que conheci em um dos fóruns, me contou que eles disponibilizam programas que são "em sua maioria softwares gratuitos, mas que precisam ser licenciados".

Crédito: AlienTechU

"Se as coisas melhorassem, [empresas como a John Deere] seriam obrigadas a distribuir gratuitamente os mesmos softwares vendidos pelos vendedores ilegais", afirmaram minhas fontes. "Eles também deviam desbloquear o sistema. Eles fazem isso para nos obrigar a usar o serviço deles, que é 100% monopolizado."

Nos fóruns também é possível encontrar (para venda ou download gratuito) geradores de chaves de licença, modificadores de velocidade máxima e cabos de engenharia reversa que permitem conectar tratores a um computador. Esses programas também são vendidos em vários sites europeus, e é possível ver demos desses softwares em ação no YouTube.

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À primeira vista, a venda desse tipo de software pirateado parece ilegal. Mas em 2015 a Biblioteca do Congresso Americano isentou veículos terrestres, o que inclui tratores, da Lei dos Direitos Autorais do Milênio Digital. A medida legaliza a modificação de "programas de computador que controlam o funcionamento de veículos terrestres motorizados como automóveis de uso próprio, veículos motorizados comerciais ou veículos agrícolas mecanizados quando a modificação for necessária para diagnosticar, consertar ou modificar de forma legal o funcionamento do veículo".

Isso significa que, desde que os veículos se atenham ao padrão de emissão de CO2, a alteração desses programas é legal. No entanto, não está claro se a isenção abrange o download de programas crackeados.

"O que a gente vai fazer? Jogar nossos tratores no lixo?"

Não é de se surpreender, então, que a John Deere tenha começado a exigir que seus clientes assinassem contratos de licença por volta da época em que a isenção entrou em vigor. Dessa forma, a violação do acordo seria considerado uma quebra de contrato e não uma violação de direitos autorais, o que significa que a fabricante seria obrigada a processar seus clientes caso quisesse cumprir os termos do seu contrato. Questionei a John Deere sobre a ascensão desse mercado negro de softwares, mas a empresa se limitou a responder que seus clientes não enfrentam nenhuma dificuldade no que se refere ao reparo de seus tratores.

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"Quando um cliente compra um produto John Deere, ele ou ela vira proprietário/a desse produto", afirmou a empresa. "E como dono/a, ele ou ela tem a liberdade de consertar ou fazer a manutenção desse produto. Os clientes também têm a liberdade de, por meio de manuais operacionais e outros recursos, executar atividades operacionais, de manutenção, de serviço e de diagnóstico a fim de consertar e conservar seu produto."

"A modificação de software aumenta o risco de problemas de funcionamento", continuou a empresa. "Portanto, permitir que indivíduos não-qualificados alterem o software desses equipamentos pode prejudicar seu desempenho, resultando em máquinas que não mais se adequam à regulamentação ambiental e de segurança da indústria."

Gay Gordon-Byrne, diretora-executiva da Repair.org, uma organização comercial que defende a projeto de lei do direito-ao-conserto, me disse que o comunicado da John Deere é "merda pura", acrescentando que "muitos de nossos membros tentaram comprar os diagnósticos mencionados [pela John Deere] e foram rejeitados".

"Eles exigem que seus clientes assinem um Contrato de Licença de Usuário Final que proíbe todas as atividades que, segundo eles, seriam permitidas", disse ela. "A John Deere é uma empresa tirânica que assumiu o papel de proprietário desses equipamentos, mesmo tendo sido recompensada completa e justamente por seus produtos. Suas alegações sobre o controle desses equipamentos pós-compra são inconsistentes com todos os aspectos da propriedade legal destes, incluindo a contabilidade, tributação e transferência de produtos para o mercado secundário."

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Resumindo: a John Deere vendeu tratores para milhares de fazendeiros, mas usou softwares para controlar todos os aspectos de sua utilização após a venda. Kluthe, por exemplo, usa estrume de porco para alimentar seu trator, o que exigiu uma série de adaptações mecânicas que muito provavelmente violam as condições de serviço da John Deere.

"Eu pego o estrume e processo ele em um digestor anaeróbico, depois comprimo o metano", conta ele. "Minha caminhonete Chevy a diesel é movida com 80% de metano, e meu trator com 90% de metano. Os dois funcionam perfeitamente. Me orgulho muito do meu trabalho."

Os agricultores temem que a John Deere seja comprada por outra empresa ou que ela deixe de oferecer serviços de manutenção para seus tratores. Assim, eles decidiram tomar a dianteira e assumir o controle desses softwares.

"E se daqui 20 anos a John Deere lançar outros tratores e se recusar a consertar os antigos?", disse o fazendeiro que usa o software ucraniano. "O que a gente vai fazer? Jogar nossos tratores no lixo?"

Tradução: Ananda Pieratti