​O que a ciência diz sobre as experiências de quase morte?
Letícia, de 24 anos, teve uma EQM dois anos atrás. A ciência agora tenta explicar por que seu relato coincide com o de muitos outros. Crédito: Fabio Teixeira

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​O que a ciência diz sobre as experiências de quase morte?

Esquecidas na década de 70, pesquisas sobre os mistérios das EQMs enfim começaram a ser levadas a sério. Quebrar o preconceito da academia, porém, não é tarefa fácil.

Quando tinha 22 anos, Letícia Cristina Moreira de Barros passou por uma crise epiléptica que nunca vai esquecer. No período de uma hora e meia, a garota sofreu uma série de convulsões e teve que ser socorrida por uma equipe médica que a induziu ao coma. Para o procedimento dar certo, ela precisou de dez ampolas de um tranquilizante forte. Por rebote da medicação, seu coração não aguentou. Letícia teve duas paradas cardiorrespiratórias seguidas e morreu.

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Mesmo assim, sem que seu cérebro apresentasse atividade, ela se recorda dos gritos dos médicos — "afasta, afasta!" — e da dor que sentiu quando o desfibrilador a trouxe de volta à vida. Depois disso, encarou uma infecção geral grave do organismo causado por germes patogênicos e entrou em coma. Desacordada, ouviu dos seus falecidos avós uma súplica para aguentar os problemas e não deixar sua mãe sozinha. Letícia, naquele momento, estava passando por uma experiência quase-morte (EQM).

"O que mais me assustou foi a aparição dos meus avós", conta a designer gráfica, hoje com 24 anos. "Isso me deixou meio maluca depois que tudo aconteceu."

Além da experiência que teve durante as paradas cardiorrespiratórias, a jovem conta que também se sentia consciente no coma. Ao se recuperar, Letícia chegou a reconhecer médicos que só estiveram com ela durante o estado vegetativo. "O tempo todo foi como se eu tivesse ali mesmo, no hospital, só que acordada. Lembro com clareza de passar o dia olhando o relógio da parede para ver se davam 15 horas, que era a hora da visita", conta.

O evento fez Letícia mudar muito. Chegou a emagrecer 2,5 kg por semana. "Meu paladar mudou. Passei a odiar coisas que amava comer e comer alimentos que nunca gostei", diz. Assim como muitas pessoas que passaram por experiência de quase-morte, ela acredita que se tornou uma pessoa melhor e diz não temer a morte. "Não pela experiência em si, mas porque busco ser o melhor no meio que vivo. Em momento nenhum senti medo da morte e até hoje não sinto."

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Casos como o de Letícia intrigam médicos e cientistas há muitos anos. São muitos os relatos similares, inclusive de gente famosa como o ex-esportista brasileiro Lars Grael e a atriz americana Sharon Stone. A maioria das pessoas que passa por uma EQM, independentemente de nacionalidade, gênero, credo ou idade, descreve os eventos de forma parecida. Luz no fim do túnel, sensação de paz, diálogo com entes mortos e desprendimento do corpo físico. Não por acaso, o debate sobre vida após a morte — e sobre a própria morte — costuma acompanhar os relatos. "Muitos desses relatos apresentam uma perspectiva diferente da morte, como uma situação de calma e iluminação. No momento, relatam ter perdido o medo de morrer", diz Maria Julia Kovacs, professora livre docente do Instituto de Psicologia e coordenadora do Laboratório de Estudos Sobre a Morte da USP.

Com o lançamento da estranhíssima série OA pela Netflix, cuja trama gira em torno de um cientista-sequestrador que estuda pessoas que passaram por EQM num cativeiro para responder questões sobre o pós-morte, o debate informal por parte de leigos e curiosos aumentou. Muita gente passou a questionar: como explicar, de maneira científica, o que ocorre com essas pessoas? Há estudos reais sobre o tema?

O primeiro a pleitear o assunto, nem tanto tempo atrás, foi o médico norte-americano Raymond Moody Jr., autor da obra A Vida Depois da Vida, lançada em 1975 e considerada a Bíblia das EQMs. No trabalho, analisou 150 casos e chegou a reflexões pouco interessantes para os cientistas mais tradicionais por causa da carga espiritualista que carregava suas ideias. O efeito foi afastar cientistas do tema. Demorou para o assunto retornar à mesa de debate da ciência. Dos anos 70 aos anos 2000, o tema foi sumariamente dominado por análises mais místicas e esotéricas. Isso até o início do novo milênio, quando os olhos da classe se voltaram novamente ao tópico, em busca de respostas para as difíceis perguntas criadas pelo fenômeno. "De uma forma geral, a ciência virou as costas para o tema 15 anos atrás e agora publicações sobre o assunto estão voltando a ganhar espaço em revistas importantes. É uma mudança de atitude do mundo acadêmico e científico e isso é fantástico", afirma o Dr. Cícero Galli Coimbra, neurologista e professor da Unifesp.

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Letícia, de 24 anos, teve uma EQM dois anos atrás e mudou de gostos e de vida. Crédito: Fabio Teixeira

Ainda assim, o especialista julga que a mudança de postura segue incompleta. "Como qualquer atividade humana, a ciência é repleta de preconceitos. Na verdade, um dos setores mais preconceituosos que existe, porque exclui a possibilidade de vida após a morte de início, o que ajuda a não explicar um evento como a EQM da forma que realmente é", completa o neurologista.

De 2013 a 2016, mais de 16 mil resultados aparecem no Google Acadêmico quando a pesquisa é "experiência quase-morte" ou, em inglês, "near-death experience". Para Coimbra, no entanto, muitos desses trabalhos buscam "explicações mirabolantes" para sustentar o que cientistas de "pensamento materialista" acreditam. "Ou você encara como o próprio fenômeno sugere, ou encara com preconceito científico. A ciência precisa olhar as EQMs de uma maneira menos preconceituosa."

Assim como o neurologista, o psiquiatra e ex-professor da USP Franklin Antonio Ribeiro também acredita que essas pesquisas falham por tratarem o assunto de maneira reducionista. "Da mesma forma que o estômago produz o ácido clorídrico, a comunidade científica materialista e positivista acredita que o cérebro produz o pensamento", afirma Ribeiro, que considera que a interação entre cérebro e mente precisa ser reavaliada. "Essa consciência que sai de um corpo morto, vê e analisa situações com clareza, precisa continuar sendo estudada", diz.

Entre as teorias que têm buscado explicar como pessoas sem atividade cerebral relatam essas vivências complexas e reais, algumas têm se destacado. Susan Blackmore, psicóloga inglesa, defende que a visão do túnel nada mais é do que falta de oxigenação no cérebro, já que as células responsáveis pela visão central estão em maior quantidade no corpo humano do que as células da visão periférica. Outra tese aponta que a experiência extracorporal (aquilo de deixar o próprio corpo) está relacionada a um distúrbio em uma região do cérebro chamada giro angular, localizada no lobo parietal. Supostamente, essa área é responsável pela orientação espacial, que faz as pessoas perceberem onde o corpo acaba e o mundo começa. Quando a região é lesionada pela falta de oxigenação, o paciente tem impressão de estar fora do corpo.

"Essa consciência que sai de um corpo morto, vê e analisa situações com clareza, precisa continuar sendo estudada"

Segundo Dr. Franklin, que frequenta congressos sobre o tema anualmente, ainda existem outras teorias em voga no meio. Há neurocientistas que defendem que as EQMs são memórias do nascimento revividas — ou vividas, visto que ninguém tem vastas recordações do dia que chegou ao mundo. Para o especialista, a tese se contradiz, no entanto, quando deixam de lado as pessoas que sofreram experiências e nasceram de cesárea. O túnel, ou o parto vaginal, de acordo com a teoria, deixaria de existir, portanto.

Alguns cientistas também tentam explicar o fenômeno a partir da hipóxia, estado de baixo teor de oxigênio nos tecidos orgânicos. Para esses pesquisadores, a falta de oxigênio é capaz de gerar algumas das características das experiências quase-morte. Contudo, na visão do neurologista, a hipóxia causa alterações assustadoras e situações de terror e medo nos indivíduos. "Totalmente diferente da sensação de paz registrada pela grande maioria das pessoas que passaram por EQMs", diz o especialista.

Além disso, há outras teorias como a do excesso de dióxido de carbono ou excesso de glutamina, que também barram nos pressentimentos ruins e a do acúmulo de endorfina, que gera uma sensação de extrema paz por horas — e não segundos, como a das EQMs. "Teorias facilmente contestáveis", afirma Ribeiro, que acredita que a explicação deve ir além da obviedade e do reducionismo da ciência. "Eles não devem fechar as janelas para o que não compreendem. Não são Deus. Devem assumir que não sabem e pesquisar."