​Os Clubes de Informática para Crianças do Governo de Cuba
Crédito: David Osit para a Motherboard

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Tecnologia

​Os Clubes de Informática para Crianças do Governo de Cuba

As autoridades cubanas oferecem de servidores de Warcraft à séries americanas pirateadas.

Não acredito no que estou vendo.

Pastas e mais pastas cheias de vídeos com títulos como "As melhores quedas", "Fail na Prisão!" e "O Episódio Mais Sexy de Wheel of Fortune". Álbuns completos do Mumford and Sons e do Jason Derulo. Um filme tosco chamado Jurassic City. Episódios de 2 Broke Girls, Modern Family, CSI e Criminal Minds.

Estou sentado em um clube de infórmatica para crianças no centro de Havana, em Cuba, e na minha frente há um computador cheio de material pirata distribuído pelo próprio governo cubano.

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À minha esquerda, há um pré-adolescente jogando uma versão pirateada de Halo. À direita, outro garoto joga World of Warcraft no que parece ser – mas não é – a internet. Na sala ao lado, uma cara checa seu perfil na versão cubana do Facebook.

Uma pequena amostra das séries disponíveis no Mochila. Crédito: Jason Koebler

Existem exatos outros 603 "Joven Clubs" iguais a esse espalhados pelas pequenas e grandes cidades de Cuba, além de alguns "Ciberexpresos" móveis, que são velhos vagões de trens reformados e puxados por caminhões.

O exterior de todos os Joven Clubs ("Clube de Jovens") é pintado de um azul-claro muito convidativo. Já seus interiores lembram uma escola antiga, iluminada por lâmpadas fluorescentes e impessoais, com fileiras amontoadas de computadores. É raro encontrar um desses clubes em perfeitas condições. O próprio governo cubano estima que ao menos 25% de todo o equipamento desses clubes não funciona mais.

É nesses clubes que o governo cubano pode estar criando um futuro esquadrão cibernético. Ou talvez eles sirvam para doutrinar os jovens do país. Ou talvez eles só estejam ensinando essas crianças a usar um computador. A resposta só depende do interlocutor.

"Eles estão tentando treinar uma nova geração de cubanos revolucionários, que, tendo contato com o mundo da tecnologia, poderão ser utilizados no futuro como programadores do exército ou de alguma unidade de cibervigilância", afirma Jose Luiz Martinez, diretor de comunicação da Fundação à Favor dos Direitos Humanos em Cuba, uma organização com sede em Miami, nos Estados Unidos. "O governo não pensa apenas 'como nós vamos aplicar isso, mas sim como nós vamos aplicar isso em prol da nossa agenda?'"

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Esse objetivo aparece em um artigo publicado em uma das primeiras edições da Tino, uma revista bimestral publicada pela Joven Club e financiada pelo governo. Segundo o artigo, o objetivo dos Joven Clubs é "incentivar os jovens a aprender e compreender informações e a lidar com a tecnologia, com foco especial em temas atuais como política, cultura e problemas sociais."

"O resultado desse projeto terá efeito no … experiente grupo de homens que tem a confiança de Fidel Castro e cuja missão é executar grandes atos com honra e graça", continua o artigo.

Os Joven Clubs oferecem aulas sobre o Word, o Excel, e noções básicas de programação. Além da propaganda política, a Tino publica vários artigos informativos sobre temas complexos, como conserto de circuitos, desbloqueio de Androids ou até como instalar um servidor no seu computador. Durante minha passagen pelo Joven Club, não vi ninguém aprendendo essas coisas. Vi mesmo muitas crianças jogando.

Muitos concordam que um dos principais objetivos dos Joven Clubs é, além de treinamento vocacional, convencer os jovens cubanos de que eles não precisam usar a verdadeira internet; a intranet cubana seria tão boa quanto a rede mundial.

Crédito: David Osit para a Motherboard

Fora dos clubes de informática, os cubanos mais empreendedores usam diferentes métodos para conseguir acesso à mídia estrangeira. Muitos compram pen drives cheios de jogos pirateados, filmes e notícias, que são contrabandeados de Miami toda semana. Esse kit de contrabando é conhecido como paquete. Adolescentes utilizam roteadores importados ilegalmente para criar redes locais que rodam jogos e permitem a troca de arquivos.

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A mídia ocidental, antes censurada pelo governo, hoje se tornou tão comum e popular que o governo, em vez de prender aqueles que compram esses paquetes ou banir todos os videogames, se viu obrigado a competir com esses ardis capitalistas.

E os 604 Joven Clubs estão na linha de frente dessa batalha: no ano passado, o governo cubano criou a "Mochila", concorrente direto do paquete cheio de conteúdo pirateado — mas devidamente aprovado pelo governo — de todo o mundo, na tentativa de acabar com a popularidade do kit ilegal. A Mochila, que contém cerca de 350 GB de dados e só pode ser acessada nos Joven Clubs, é fruto de uma colaboração entre diferentes agências governamentais, incluindo o Ministério da Cultura e o Instituto Cubano de Rádio e Televisão.

"Esses clubes servem para dizer para a população: 'Ah, vocês querem acessar a internet e jogar videogames? Nós não ligamos, você podem acessar nossa Wikipedia Cubana, entrar em sites financiados pelo governo e usar nossas redes sociais. Baixem tudo o que vocês quiserem", disse Martinez. "Eles criam a ilusão de que essas pessoas estão conectadas a algo e esperam que isso seja o suficiente."

É por isso que os Joven Clubs parecem tão divertidos. É por isso que eles têm seus próprios torneios de World of Warcraft e é por isso que o governo cubano está pirateando e disseminando filmes, séries e músicas americanas — desde que eles sejam aprovados. (Será que os Mumford and Sons ou o Jason Derulo se sentem mal por serem um dos poucos artistas americanos considerados inofensivos pelo governo comunista?) É por isso que existe uma seção inteira de vídeos na Mochila que imitam os virais da internet e é por isso que o governo permite que qualquer um leia versões pirateadas de "revistas estrangeiras", desde que elas sejam sobre baseball, futebol ou levantamento de peso.

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Em uma entrevista a um jornal estatal no ano passado, Raul Vantroi Navarro Martinez, diretor do Joven Clubs, disse que a mochila "é um conceito cultural, um pacote que não divulga vulgaridade ou banalidade, mas sim conhecimento, sempre mantendo seu apelo essencial."

Os funcionários dos clubes são treinados para serem solícitos e acolhedores. O governo não tenta esconder a existência dos clubes. Os funcionários me receberam muito bem. Um deles estava muito empolgado com o fato de eu estar lá para copiar os dados da Mochila.

Em quinze minutos, uma recepcionista pegou meu passaporte e criou meu login e senha. Enquanto isso, eu me perguntava se ela me deixaria usar um daqueles computadores. Ao final da espera, ela me deu um nome de usuário (jkoebler) e uma senha (jkoebler). Isso me daria acesso à intranet cubana, que consiste em sites financiados pelo governo e servidores de jogos online. Paguei cerca de 25 centavos por duas horas num dos computadores. Outro funcionário me levou até os fundos do clube, onde ele me ensinou como baixar os arquivos da Mochila, centenas de gigas de dados pirateados disponíveis para o público.

Crédito: David Osit para a Motherboard

"Se o download estiver lento, é melhor esperar para usar o computador que aquele cara está usando", ele me disse, apontando para um equipamento mais novo. "Ele é o melhor para usar a Mochila. Pegue o que você quiser."

Apesar de toda a simpatia dos funcionários, eles não deixaram que meu fotógrafo me acompanhasse ou falasse comigo. Chegaram a pedir que ele deixasse o prédio por não estar registrado no sistema. Toda vez que eu chegava perto de alguém para puxar conversa, um funcionário se aproximava de mim e me guiava, de forma prestativa mas firme, até meu próprio computador. Câmeras de vigilância observavam cada um dos meus passos e suspeito que os próprios computadores contavam com algum tipo de software de monitoramento.

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Depois de fazer meu login, fiquei surpreso em ver cópias de jogos como Halo, World of Warcraft, DOTA, Warcraft III, Call of Duty e dezenas de outros no desktop do computador. Abri um navegador e tentei entrar no Google e em alguns outros sites, o que obviamente não deu certo, já que eu estava conectado à intranet cubana. Resolvi abrir uma nova aba e descobri que a página inicial daquele Joven Club era o servidor cubano de World of Warcraft, que conecta vários jogadores do país. O servidor é surpreendentemente sofisticado. Contem um local de venda onde os jogadores podem trocar seus itens pela moeda digital do jogo e um ranking dos melhores jogadores do que parece ser uma vibrante comunidade gamer.

O servidor de World of Warcraft do Joven Club Crédito: Jason Koebler

O servidor de WoW do Joven Club tem suas próprias regras oficiais: "Não use hacks — essa é a regra mais básica e que não precisa de maiores explicações"; e "Acima de tudo, não venda sua conta — se você for pego fazendo essa transação, você será banido do servidor para sempre."

Eu não tinha tempo ou a paciência necessária para jogar WoW, então abri a Mochila e comecei a tirar prints do que tinha lá dentro — além do conteúdo que eu já mencionei, havia milhares de livros, muitos deles com conteúdo revolucionário (a obra completa de Leon Trotsky, a obra completa do herói cubano Jose Marti, que liderou a luta cubana por independência no final do século XIX, além de livros do Fidel Castro e do Che Guevara). Na seção de publicações internacionais, vi cópias da revista americana Fitness USA, e das revistas espanholas de futebol AS e da Sport. Peguei alguns dos vídeos virais, a maioria deles vindo de um programa canadense chamado Just for Laughs: Gags, e saí do servidor no momento em que o espaço do meu pen drive acabou.

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Mas será que os cubanos estão ou não respondendo à essa iniciativa? Henry Constantin Ferreiro, um ativista que vive em uma cidade cubana chamada Camaguey, me disse que ninguém baixa coisas da Mochila e que os frequentadores dos Joven Clubs representam uma parcela irrisória da população.

"Temos nossas próprias redes internas, e as pessoas sabem que o que eles oferecem nos Joven Clubs não é real", disse. "Ninguém que saiba da existência do Facebook quer usar a versão cubana do site. Além disso, os programas e arquivos do paquete são muitos mais interessantes do que o conteúdo da Mochila. O povo vê esses clubes como uma tentativa de controlar o que todos veem."

Não é possível acessar à internet. Crédito: Jason Koebler

Fidel Alejandro Rodriguez, um professor da Universidade de Havana, me disse que apesar da Mochila e de outros projetos do Joven Club terem sido um fiasco, ele não acredita que se trate de uma tentativa de controlar o povo cubano.

"É preciso compreender que a estrutura do Estado não é tão coesa e, portanto, existem instituições que fazem basicamente o que querem. Nesse caso, esse grupo percebeu que o paquete era popular e resolveu criar um concorrente: a Mochila", disse. "De certa forma, a Mochila é uma boa ideia porque ela disponibiliza filmes antigos e outros materiais que não existem no paquete."

"Mas, ao mesmo tempo, o Estado está competindo contra uma ameaça criativa que só surgiu por causa de seu próprio ataque às formas de distribuição consideradas capitalistas", acrescentou.

Todos concordam que, se isso é uma batalha, a Mochila está perdendo.

"Aqueles que produzem e distribuem o paquete são muito eficientes porque esse é o trabalho deles e por isso eles não trabalham tão devagar quanto o governo", escreveu Isabel Perez, uma professora da Universidade de Havana, em uma análise da movimentação de arquivos em Cuba. "A criação da Mochila teve um impacto mínimo na sociedade. Os mecanismos de socialização e de distribuição não foram eficientes, e a Mochila acabou se revelando uma proposta com muitos desafios internos."

À medida que a demanda pela verdadeira internet cresce, os Joven Clubs, que existem desde 1987, sofrem o risco de desaparecer. No começo do ano, o país lançou um plano de cinco anos que clama pela expansão do acesso à internet banda-larga (porcentagem atual de casas com acesso à banda-larga: 0%). Até 2016, os Joven Clubs irão ser transformados, teoricamente, em cafés com acesso à internet global (que será controlada e monitorada, pelo menos de início). De qualquer forma, é óbvio que conforme a cultura capitalista se infiltra na sociedade cubana, o status quo perde seu poder.

"Tudo está ligado à política. A internet abre pequenas brechas de informação que desestabilizam o país, o que cria a sensação de que 'a fortaleza está sob ataque', e a primeira reação do governo é se defender e tentar controlar o comportamento do povo", disse Rodriguez. "Mas isso não funciona tão bem quanto antes. As pessoas querem e precisam disso. Isso precisa acontecer. Isso vai acontecer."

Tradução: Ananda Pieratti