“O que se tornou a internet é tudo, menos um território livre”
Crédito: Larissa Zaidan

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Tecnologia

“O que se tornou a internet é tudo, menos um território livre”

De passagem pelo Brasil, a hackfeminista mexicana Lili_Anaz fala sobre como agir de modo crítico em uma sociedade vigiada.

Brasil e México são países latino americanos que compartilham algumas características em comum. Ambos possuem territórios extensos, economias emergentes e número alarmante de casos de violência contra a mulher.

Nos últimos anos o Brasil chegou a figurar entre os cinco países com o maior número de feminicídios. A situação não foi menos grave no México. Segundo o jornal El País, foram mais de sete mil mulheres assassinadas entre 2012 e 2017. Em resposta a esses quadros de violência foram desenvolvidas campanhas que ecoaram em ambos os países. Uma das mais conhecidas se deu no ambiente digital. Enquanto no Brasil circulou a hashtag #MeuPrimeiroAssedio, nas redes sociais mexicanas tivemos #MiPrimerAcoso.

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A hackfeminista mexicana Liliana Zaragoza Cano, de 33 anos, crê que o momento latino-americano é propício para desenvolver estratégias de resistência. Ela é uma das integrantes do coletivo Laboratorio de Interconectividades e esteve de passagem pelo Brasil para a Cryptorave, evento que promove o esclarecimento sobre criptografia e privacidade, no último final de semana em São Paulo. Ela argumenta que tecnologias digitais seriam apenas um meio de operar. Os elementos mais fundamentais, diz, são a preservação da memória e dos afetos.

Com essa aposta, ela desenvolve projetos que misturam arte e tecnologia, como o Mirada Sostenidas, projeto artístico transmídia que lembra e dialoga com vítimas de tortura sexual cometida por agentes do governo mexicano, caso denunciado no final de 2016 na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Mas o que mais podemos fazer? No que consiste a resistência em uma sociedade amplamente vigiada? Ela conversou com Motherboard para responder essas e outras perguntas.

Motherboard: Você trabalha com a memória como uma forma de resistência. Você pode me contar um pouco mais sobre este trabalho?

Lili_anaz: Veja, semana passado completou onze anos de um fato histórico brutal contra as pessoas no México. É o caso de Atenco que foi uma repressão ordenada pelo governo do Estado do México, na época governado pelo hoje presidente Enrique Peña Nieto. Foi uma ordem de repressão para passar uma mensagem de desmobilização e pânico contra pessoas que estavam se manifestando em apoio a Frente do Povo em Defesa da Terra. Esta ordem implicou em tortura sexual e presos políticos.

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E justamente por causa do tema da memória, é muito simbólico para mim estar aqui em meio de um momento político muito forte no Brasil, que quase não se fala no México. Não se fala nos massacres contra os índios Gamela que acabam de ocorrer nesses dias, não chega até nós as informações que estão se passando com presos políticos. Me doí muito o fato que compartilhemos problemas como o racismo, que continua sendo algo aqui no Brasil e no México. E especialmente que estamos aqui para falar de possibilidades, para que não tenhamos que viver com medo.

As informações do México também não chegam ao Brasil. Por que isso?

No México o que temos visto nesses últimos anos de guerra contra o narcotráfico é uma ditadura que está tentando acabar com os encontros. Temos realidades diferentes, não é possível dizer sob nenhuma perspectiva que são iguais, mas são similares. Tenho a impressão que, em relação ao terrorismo de Estado, são parecidas.

Ou seja, é isso o que nos move agora para esta festa (Cryptorave), e acho importante que seja uma festa para que não percamos as energias para tentar fazer com que as coisas sejam de outra maneira. Não quero pensar que os temas de vigilância, de espionagem, de todas estas formas de controle nos coloque em uma paranoia cada vez maior.

E como podemos usar a tecnologia para melhorar esse cenário de vigilância e paranoia?

Claro que pensar segurança, autodefesa digital e outras tecnologias é importante, mas é mais ainda entender o que estamos querendo gerar. A palavra autodefesa implica em gerar espaços mais seguros, onde as redes sejam de confiança. Você pode pensar em como cuidar do seu espaço íntimo, sua privacidade, seu anonimato, mas isso tem que estar em profunda relação com o que você está gerando em seu entorno, família, amigos… Não apenas o grupo com o qual tenho afinidade. Normalmente as redes mais fortes são heterogêneas, e não homogêneas.

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Você falou da formação de redes espaços seguros. Como formar e fomentá-los?

Para mim tecnologia não é um computador ou um celular ou um dispositivo técnico, mecânico. Posso entender tecnologia de muitas formas. Gosto de pensar nas mais simples, as que acredito nos permitirem aprender mais. Encaro tecnologia como uma forma de resolver problemas criativamente e o que tiramos desse processo. A partir desse ponto de vista, uma tecnologia extremamente eficiente são os afetos, por exemplo.

Obviamente que há dispositivos que facilitam a nossa capacidade de nos comunicar e nos organizar, mas não me concentraria apenas nas máquinas. Mais importante que isso é refletir: como construímos um olhar mais crítico sobre essas "próteses" (celulares, computadores etc.) para que tenhamos consciência não apenas no uso, mas também na intervenção e ser mais do que meros usuários passivos?

Amo profundamente a internet. Mas ela é um território geopolítico em disputa e terrivelmente violento. O que não é diferente do que acontece fora dela. Para mim, é importante habitar a internet sem dicotomizar o real e não real, o físico e o não físico. Embora essa dicotomia não exista, ela está muito arraigada. Então como vamos intervir nessas tecnologias se nós não nos perguntamos sobre as infraestruturas que as sustentam? Se não nos perguntamos sobre o que mais podemos fazer do que apenas sobreviver?

Crédito: Larissa Zaidan

E o que podemos fazer?

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Podemos gerar consciência crítica com as tecnologias que mediam a nossa noção de mundo e, com isso, mudar como nos comunicamos, como nos organizamos. Este é um primeiro nível de complexidade.

Estou tomando esta decisões criticamente? Não quero ser apenas um usuário crítico. Se estou falando da rede como um território, como quero habitá-lo? Está é a analogia constante: o território da internet, o território do meu corpo, e aqui convergem muitas das questões feministas. O que comentei sobre Atenco foi a utilização do corpo das mulheres como arma de guerra para enviar uma mensagem para o resto da população. Foi isso o que aconteceu no México.

E é o que acontece nesses espaços. Como estamos entendendo esse território que também está cheio de misoginia? As infraestruturas que sustentam a internet são misóginas. O que se tornou a internet é tudo, menos um território livre.

Queremos que seja livre e na medida do possível queremos intervir nesse território. E não apenas habitá-lo, mas também defendê-lo. Para isso é necessário conhecê-lo. E como conhecer estas posições na internet? Participando.

Você diz que a internet não é livre. Como você a define?

Quando falo que a infraestrutura da internet se tornou um território misógino, quero dizer que ela reflete o sistema em que vivemos: misógino, heteropatriarcal, capitalista, neoliberal. A internet é o mesmo. Ela é um reflexo do que é o mundo.

Os feminismos, e digo no plural por serem movimentos bastante diversos, me permitiram pensar processos de forma mais profunda, mesmo que seja algo incômodo. É um caos necessário.

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Quando um Estado te diz que vamos ter uma cidade inteligente e automatizada, onde tudo é seguro e isso significa que vai poder pensar menos e incomodar-se menos, onde significa ser controlado de uma maneira mais cômoda, isso me parece um tipo de morte.

Há uma palavra que aliada a isso me parece perigosa: igualdade. Muitos governos a usam no lugar de "equidade". Pensando em igualdade estamos falando de palavras que querem dizer outras coisas. Falando em igualdade, estamos falando do igual, do mesmo.

Quando falam de reformas em direitos humanos para igualdade, essa igualdade se coloca em oposição ao "diverso". Vemos isso acontecendo no México, não se fala de algo que integre e sim algo que homogeniza. E em um país onde há, por exemplo, mais de 60 línguas indígenas, além do espanhol, e toda a diversidade e fragmentação dentro de um território, como falar de igualdade e não captar todas essas sutilezas?

Me parece que esta lógica de bem estar social centralizado não dá chance para que ocorra outras manifestações.

E como agir para melhorar essa infraestrutura da internet?

Acredito que, se vamos repensar as infraestruturas, não devemos nos limitar apenas a repensar ou não uma tecnologia apenas. Temos que repensar por quais estruturas estamos passando para retomar nossas vidas. Para mim essa é a luta. É por isso é difícil concentrar-me apenas em determinados dispositivos.

Vejo que existe um medo em voltar às subjetividades e a reflexão, como um medo de abrir mão de todo esse conhecimento para voltar a um vazio. Flores Magón foi um militante anarquista mexicano assassinado em 1922 que fala sobre o abismo. Em uma carta pública ele escreveu: "O abismo não nos detém, a água é mais bela em queda".

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Estive trabalhando por alguns anos em um coletivo chamado Astrovandalistas e um dos trabalhos que desenvolvemos se chamava justamente O Abismo. Ele partia da reflexão era como nos narramos a partir de outro lugar, como estamos narrando a nossa luta.

E como o hacking entra nisso?

Para mim o hacking tem muito mais a ver com uma possibilidade de experimentar de gerar espaços de experimentação de poder intervir nas coisas que estamos dizendo e poder falar de uma outra forma. Como subverter as linguagens, como subverter as relações. Hacking tem muito mais a ver com essa intervenção que é extremamente política, no sentido de posicionamento. Um compromisso com o que se quer transformar.

Entendo que a ética hacker, na forma como entendo, engloba esse cuidado com o que é importante, com processos de autonomia. Pode ser uma figura mais poética da palavra, mas vai muito além do que apenas buscar uma vulnerabilidade de um sistema e atacá-lo. Isso seria muito mais um cracker.

Vejo no hacking uma possibilidade de criação, que tem a ver com processos artísticos e outras formas de experienciar linguagem. E não apenas com programação.

Mas isso não é também uma forma de encontrar uma brecha no sistema e explorá-la?

Falando de sistemas, sim. A imagem padrão que se faz de um hacker é que ele é alguém se dedica a tornar explorar sistemas, um atacante a um sistema informático. Esta é a imagem. Uma pessoa, quase sempre homem, suspeito, que vai buscar a forma de quebrar a segurança dessa estrutura digital que sustenta países ou empresas.

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Para mim é claro que o(a) hacker tem um papel muito importante, mas não no sentido de buscar uma vulnerabilidade no sistema. Mas algo como encontrar as fissuras que existem e partir daí. Tem uma canção do Leonard Cohen que diz algo sobre isso "t here is a crack in everything/ that's how the light gets in" (existe um rachadura em tudo, é assim que a luz entra, tradução livre). Para mim este é um elemento hacker.

Pelo fato de haver fissuras, há outros caminhos. Mas eu não diria me aproveitar de uma vulnerabilidade. Eu diria já que as coisas estão assim. Temos a possibilidade de fazer com que elas sejam feitas de outras maneiras. Outros fluxos são possíveis. Fluxos colaborativos.

E quanto ao ciberfeminismo. Existe uma diferença em relação ao hackfeminismo?

Sim. Os ciberfeminismos partem do questionamento de como fomentar essas redes de mobilização via internet. Existe toda uma história do ciberfeminismo dos anos 1990 que começou com o VNS Matrix e alguns outros projetos incríveis que brincavam com ficção científica, elementos poéticos, linguagens de programação. Ou seja, exploração pura.

Tanto que temos um manifesto do que é o Ciberfeminismo. Mas, nesse contexto, estamos falando de um país específico, a Austrália. Os ciberfeminismos nos Estados Unidos tiveram mais a ver com performances, arte política e entender as diversidades dos feminismos e buscar visibilizar por meio da internet.

Na América Latina, esses movimentos são extremamente políticos e apareceram de pouco mais de cinco anos para cá. E tem mais a ver com a geração de estratégias para sobreviver na internet. Para nos poder narrar ou dar visibilidade de outras maneiras na internet.

Ciberfeminismo diz respeito a essas variantes de ativismos de mulheres que tem uma relação com o que de alguma forma entendemos por tecnologia e feitos a partir da internet. Aqui tem mais a ver com segurança digital e não algo tão artístico comos esses movimentos vemos em outros países, que mesclavam arte e tecnologia.

Mas vejo que existem projetos muito variados, pois a arte está voltando a ter um espaço importante nessas maneiras de narrar, mas é toda uma maneira de visibilizar e trabalhar com estas maneiras de narrar. Melhor dizendo: é, acima de tudo, uma maneira de visibilizar e de trabalhar um espaço que não foi pensado para nós, ainda que tenhamos participado da construção da infraestrutura da internet.

Um exemplo destes projetos seria o Safer nudes , certo?

Sim. Acho incrível essa proposta das companheiras da Coding Rights que estão trabalhando no sentido de voltar a brincar com as linguagens. Usar diferentes ferramentas para narrar um assunto que nos está fazendo convergir na América Latina: "como combater a violência online?". Essa é uma de muitas lutas que implicam redes online ou redes autônomas. Como mitigar a violência online? Que estratégias temos para poder habitar de maneiras mais livres a internet? Essa deve ser nossa busca.

Atualizado em 12/05.