O mito da minoria modelo

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O mito da minoria modelo

Ou por que precisamos discutir discriminação contra asiáticos.

Se você tem olhos puxados, aposto que já ouviu, pelo menos uma vez na vida, provérbios como: "abre o olho", "arigatô" (em situações aleatórias), "xing ling" (de maneira desdedonhosa) e, o mais manjado de todos, "você é sansei, nissei ou não sei?"

Além dessas brincadeiras (bullying, leia-se), asiáticos são alvos de outro tipo de discriminação. A ideia de que todo asiático é dócil, disciplinado, inteligente (o famoso "pra passar no vestibular, mate um japonês" dos tempos de colégio) e rico, quer dizer, que "venceu na vida" neste lado do mundo, faz parte do mito da "minoria modelo", uma expressão muito discutida nos Estados Unidos – e quase desconhecida no Brasil.

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A ideia de minoria modelo surgiu nos EUA, na década de 1960. Os orientais, que antes representavam um "perigo amarelo" no contexto da 2a Guerra Mundial, passaram a simbolizar imigrantes que incorporaram o sonho americano. Por muito tempo, a invenção da minoria modelo foi meramente marcada num artigo de 1966 do sociólogo William Petersen sobre o sucesso dos japoneses nos negócios norte-americanos, publicado na New York Times Magazine ( Sucess Story, Japanese American Style) – um erro estilo Wikipédia.

Na verdade, diz a historiadora Ellen D. Wu no premiado livro The Color of Sucess: Asian Americans and the Origins of the Model Minority (2015), o início da minoria modelo ironicamente data da 2a Guerra, época em que americanos liberais passaram a investigar quem eram esses imigrantes vindos do outro lado do mundo.

No século 19, aos olhos americanos, os orientais eram estrangeiros nojentos que comiam ratos e fumavam ópio. Assim, eram excluídos de todo tipo de participação cívica e precisavam lidar com segregação de casas e colégios, leis anti-miscigenação e linchamentos.

Já no século 20, após as tropas americanas se unirem às trincheiras do Eixo contra nazifascistas, a flagrante discriminação se tornou um risco diplomático, que poderia comprometer as ambições americanas de um dia se tornar uma potência mundial. Assim, no pós-guerra, os americanos (e alguns asiáticos e seus descendentes) paulatinamente lapidaram uma nova imagem: a minoria modelo, uma minoria étnica louvável, economicamente ativa, politicamente inofensiva – e não-negra.

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"Nas décadas de 1960 e 70, asiático-americanos foram os primeiros a criticar o mito da minoria modelo e suas implicações. Muitos dos integrantes desse movimento foram dar aulas e desenvolver pesquisas na linha de Estudos Asiático-Americanos", diz a historiadora da Universidade de Indiana. Mas, ao mesmo tempo, as histórias de sucesso de asiáticos ocuparam a imprensa americana, da Newsweek ao 60 Minutes. Nessas páginas amarelas foi firmado o estereótipo positivo do oriental dedicado, integrado, próspero e paradoxalmente passivo. Do tipo que vive pra trabalhar e não ousa reclamar da vida.

"O mito é pernicioso por duas razões principais. Primeiro, achata variações sociais, políticas, ideológicas etc. entre asiático-americanos, e assim esconde problemas reais como pobreza e imigração ilegal. Segundo, o estereótipo posiciona asiático-americanos como 'definitivamente não-negros', isto é, polariza asiático-americanos e afro-americanos. O argumento implícito no mito é que outras minorias, especialmente negros, são culturalmente débeis, logo eles são culpados pelos próprios problemas –e não a longa história de segregação, violência e discriminação racial", critica Wu. A lógica bizarra é: se os asiáticos batalharam e conseguiram sucesso, os negros não conseguem porque não querem. O que está em jogo é a tal meritocracia.

A disparidade de renda entre asiáticos é maior que entre brancos

  Nos EUA, milhares de pesquisas foram publicadas refutando a minoria modelo, em campos como economia, história e psicologia. Um recente estudo econômico do Center for American Progress, por exemplo, revelou que a desigualdade de renda entre asiático-americanos é maior que entre americanos brancos.

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Segundo a pesquisa, as famílias brancas mais ricas tinham mais de US$ 1,26 milhão cada entre 2010 e 2013, enquanto as famílias brancas mais pobres tinham menos de US$ 10.468, isto é, uma diferença de 120 vezes. Por outro lado, as famílias asiático-americanas mais ricas tinham mais de US$ 1,44 milhão, mas as mais pobres tinham menos de US$ 9.319, uma diferença de 168 vezes. Mas é difícil reconhecer a disparidade socioeconômica entre asiático-americanos, descendentes de mais de 40 países, que são ofuscados pela mitologia da minoria modelo.

Enquanto certos descendentes de japoneses, chineses e coreanos conquistaram colarinhos brancos em universidades estreladas e startups afortunadas, quase 40% de refugiados vietnamitas e descendentes do Camboja, Hmong e Laos dependem de assistência social. Descendentes de vietnamitas e cambojanos estão entre os mais pobres nos EUA –12,8% viviam abaixo da linha da pobreza em 2011. Outro exemplo é de imigrantes coreanos que, apesar da formação acadêmica alta, não conseguem bons trabalhos por não dominarem o inglês, e acabam abrindo mercadinhos onde labutam 20 horas por dia. E, atualmente, asiáticos representam 12% dos imigrantes sem documentação no país.

Na Universidade da Geórgia, a socióloga Rosalind Chou publicou o livro The Myth of the Model Minority: Asian Americans Facing Racism (2008), que contraria a ideia de que a maioria dos asiático-americanos são simplesmente imunes ao racismo. Embasado em entrevistas feitas em escolas e empresas espalhadas pelo país, o estudo mostra diversas experiências de discriminação racial (similares às passadas por muçulmanos) e brincadeiras "brandas" como dizer que a californiana UCLA corresponde à "universidade dos caucasianos perdidos entre asiáticos" (University of Caucasians Lost Among Asians).

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"Na perspectiva da sociologia, isso reflete a própria definição de racismo, quer dizer, uma diferenciação a partir da raça que endossa o controle institucionalizado pelos brancos. No passado, fomos alvos de leis explícitas de exclusão e participação civil. Agora, somos alvos de agressões e até crimes de ódio. Não há outra palavra, é racismo", afirma Chou.

Acontece que, como asiático-americanos são considerados "tranquilos" e não respondem a conflitos, eles se tornam alvo fácil para insultos, assédios e agressões – 33% dos estudantes asiático-americanos desistem do colegial, o índice mais alto no país. Depressão, insônia e isolamento entram no diagnóstico psicológico. Segundo estudo de 2007 da American Psychological Association, suicídio é a segunda principal causa de morte para asiático-americanos entre 15 e 34 anos.

Há universidades com setores especialmente dedicados a ajudar alunos asiáticos vítimas de incidentes de preconceito. Mas, no livro The Racial Middle: Latinos and Asian Americans Living Beyond the Racial Divide (2008), a socióloga Eileen O'Brien destaca que muitos asiático-americanos não reportam incidentes, diferentemente dos milhares de casos de discriminação delatados por afro-americanos. O estudo mostra como, ao contrário dos negros, que têm uma longa história de ativismo, asiático-americanos muitas vezes não se posicionam contra discriminação. A imagem idealizada de tranquilo (psicologicamente) e favorável (economicamente) faz das pressões sobre asiáticos um preconceito velado, que é varrido pra debaixo do tapete.

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No Brasil, o preconceito é tido como mimimi… mito

Nos EUA, onde asiático-americanos representam cerca de 5% da população, o mito da minoria modelo é discutido na mídia e nas universidades. No Brasil, apenas 1% da população se declara amarela –mas, segundo o IBGE, nos últimos dez anos (2000 a 2010), o número de brasileiros de ascendência asiática cresceu 177%, somando 2 milhões. Cá entre nós, a questão não é sequer discutida, talvez por parecer "mimimi".

Mas o mito também é presente no país. O único estudo publicado, de autoria do sociólogo Caynnã Santos, atualmente na Universidade de Coimbra, indica que as peças publicitárias também retratam orientais a partir de uma visão idealizada, reiterando o estereótipo de trabalhadores afeitos aos campos da ciência e tecnologia, intelectualmente talentosos e voltado para os negócios, traços-chaves da minoria modelo.

Ser "minoria modelo" pode parecer um elogio, um estereótipo positivo, mas é um fardo para os descendentes asiáticos que não se encaixam nos padrões. "Autores têm pontuado o estereótipo como fator que aumenta a vulnerabilidade dos orientais, uma vez que indivíduos que não condizem com tal imagem 'ideal' passam a se sentir pressionados socialmente a moldarem suas personalidades e suas formas de interação com o mundo, de modo a corresponderem às expectativas sociais. De fato, devido a tais pressões, determinados indivíduos vivenciam depressão e diversos outros distúrbios", diz Santos.

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O canal Yo Ban Boo mostra com humor os estereótipos asiáticos dentro da cabeça dos brasileiros. Crédito: YouTube

Para o historiador Rogério Dezem, autor do estudo Matizes do Amarelo (2005), no Brasil ainda há um pouco de preconceito por parte de não-nikkeis, um misto de falta de informação e curiosidade sobre o "exótico". "Muitos brasileiros não sabem diferenciar um japonês de um chinês e um coreano. Para muitos, 'é tudo japonês'. Ou, como em Cuba, 'são todos chinos'", critica Dezem, desde 2010 professor-visitante na Universidade de Osaka, no Japão.

Por razões históricas, não há uma discussão mais forte sobre a discriminação contra asiáticos no Brasil, como há contra negros e indígenas. De fato, não dá pra comparar: os nativos e os negros foram subordinados por séculos, carregando uma história de opressão e extermínio.

Mas a questão não é comparar, ou competir com outras minorias. "É uma busca de identidade", define Leonardo Hwan, do canal Yo Ban Boo no YouTube, que pretende descontruir a forma como o asiático é retratado na mídia.

"No Brasil, dizem que é 'mimimi' reclamar de discriminação. Mas o cara olha para o asiático e diz: 'você é branco'. Não, não somos. Somos amarelos", diz o cineasta, que fundou o canal com a atriz Beatriz Diaféria e o amigo Kiko Morente, após descobrir num painel da Rio Content Market que "amarelos, indígenas e outros" têm apenas 3,5% de representatividade no cinema. "Precisamos discutir essas questões. E, daqui uns dez anos, ver o absurdo que foi uma novela vestir um cara branco de japonês", diz Hwan, referindo-se a Sol Nascente, uma trama sobre imigração japonesa inteiramente protagonizada por atores brancos.

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Nos últimos tempos foram fundadas páginas no Facebook por jovens descendentes de imigrantes (japoneses e taiwaneses, por exemplo) para discutir o preconceito que suas famílias sofreram (e ainda sofrem) no país. Além do Yo Ban Boo, vieram páginas como Perigo Amarelo, Outra Coluna, Lótus PWR e Asiáticos pela Diversidade.

Perigo Amarelo nasceu da necessidade de discutir identidade asiática no Brasil, muito inspirado no livro O Perigo Amarelo: Imagens do Mito, Realidade do Preconceito (2008), da historiadora Marcia Yumi Takeuchi. Voltada para jovens, "a página quer dar visibilidade às 'micro-agressões' vividas por asiáticos no Brasil", diz Fábio Ando Filho, bacharel em relações internacionais e educador do Núcleo de Consciência Negra da Universidade de São Paulo.

O movimento ainda engatinha, inclusive na escolha das palavras de militância. Perigo Amarelo propõe "resistência asiática e solidariedade antirracista" – um diálogo novo, e não uma disputa, com outras minorias.

Postagem educativa sobre minoria modelo na página Lotus Power no Facebook. Crédito: Reprodução

"Já tivemos alguns atritos com os movimentos negro e indígena por conta do termo 'racismo'. Nossa militância é recente, então ainda não está claro o vocabulário que devemos usar. Mas, de qualquer forma, nosso objetivo é a solidariedade antirracista, e não roubar o protagonismo de quem, de fato, mais sofre com o racismo no país", afirma Gabriela Shimabuko, estudante de ciências sociais e integrante da página. (Nos EUA, asiático-americanos e negros se aproximaram na campanha #BlackLivesMatter, apoiada pelo #ModelMinorityMutiny, por exemplo).

No Brasil, a falta de discussão política (e de literatura científica) sobre minoria modelo reflete a falta de discussão sobre identidade e representatividade dos asiáticos e seus descendentes. Um bom timing para acompanhar movimentos novos, de olhos bem abertos.