O longo caminho rumo à ciência das bad trips
Ilustração por Chris Kindred

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O longo caminho rumo à ciência das bad trips

Antes que as drogas psicodélicas sejam usadas em tratamentos psiquiátricos, é preciso desvendar os mistérios das viagens ruins.

Em 1968, Thomas Ungerleider e Duke Fisher, dois psiquiatras da Universidade da Califórnia em Los Angeles, nos EUA, viajaram até o subúrbio da cidade para testemunhar os rituais de uma seita focada no consumo do LSD. A dupla havia recentemente dado uma palestra sobre o que viria a ser conhecido como " bad trip", uma expressão genérica usada para designar possíveis complicações decorrentes do uso de substâncias psicodélicas, indo da ansiedade leve até surtos psicóticos e delírios persistentes.

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Enquanto os palestrantes respondiam as perguntas do público, um membro particularmente revoltado da plateia tentou ler um manifesto em defesa do consumo ilimitado de LSD. Ao fim do evento, o mesmo homem abordou os psiquiatras, insistindo que muitas pessoas tomavam LSD sem ter nenhuma reação adversa. Na verdade, o homem fazia parte de um grupo religioso que se denominava como "Os Discípulos" e que alegava consumir ácido toda semana sem grandes problemas.

Os pesquisadores ficaram intrigados. Após os Discípulos se certificarem de que eles não eram policiais, Ungerleider e Fisher foram autorizados a visitar a sede do grupo e observar o uso ritualístico do LSD. Nas palavras dos pesquisadores, no local eles encontraram:

… cerca de doze pessoas morando numa casa espaçosa, localizada em um terreno grande. Eles estavam arando a terra quando chegamos, e a decoração da casa era psicodélica. Nas paredes haviam imagens de Buda e Jesus. Toda quarta-feira, o grupo se reunia para um culto mais tradicional, focado em orações e meditação. Os rituais lisérgicos aconteciam nos finais de semana.

Ao observar e entrevistar os participantes desses "rituais de amor", os pesquisadores descobriram que muitos dos Discípulos eram ex-presidiários ou dependentes químicos que haviam adotado o LSD como forma de tratamento. Muitos desses indivíduos afirmavam ter encontrado Deus graças ao uso ritualístico do LSD. E o mais importante: nenhum havia sofrido qualquer reação adversa à droga.

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Essa afirmação chocou os psiquiatras. O que diferenciava esse grupo daqueles que haviam sido internados em hospitais psiquiátricos após ingerir a mesma substância? Em outras palavras, quais seriam os fatores que, juntos, resultariam numa bad trip?

"A complexidade dessa reação — que não pode ser prevista nem pelos melhores testes ou dados clínicos — significa que não compreenderemos as reações adversas ao LSD tão cedo".

Para responder essa pergunta, os pesquisadores iniciaram um estudo que comparava as reações de 25 Discípulos às de 25 pacientes que haviam sido hospitalizados em decorrência de reações adversas ao LSD, entre elas "alucinações… ansiedade que beirava ao pânico… depressão, muitas vezes associada a pensamentos suicidas ou tentativas de suicídio, e… confusão mental". Em 1968, a dupla publicou os resultados da pesquisa no Journal of American Psychiatry, marcando assim a primeira tentativa científica de identificar as causas da bad trip.

O estudo revelou não haver diferenças significativas entre os dois grupos em termos de gênero, raça, idade, educação formal ou "privação afetiva precoce". Quarenta e quatro por cento dos pacientes (comparado com apenas 24% dos Discípulos) possuía algum histórico de transtornos psiquiátricos, mas isso não foi considerado como fator decisivo para uma experiência psicodélica traumática. Dentre os membros do grupo religioso com um histórico de transtornos psicológicos, não houve relatos de experiências negativas com o LSD.

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"Não identificamos nenhum elemento histórico ou aspecto clínico recente particular a qualquer um dos grupos", concluíram os pesquisadores. Curiosamente, Ungerleider e Fisher foram uns dos primeiros a propor uma possível interação entre o LSD e "tendências esquizoides", uma hipótese que seria confirmada por pesquisas posteriores. No fim, os autores chegaram à conclusão de que "a complexidade dessa interação — que não pode ser prevista nem pelos melhores testes ou dados clínicos — significa que não compreenderemos as reações adversas ao LSD tão cedo".

Chegamos, pois, a um impasse: para que as drogas psicodélicas saiam dos laboratórios e entrem nos consultórios, precisamos investir em pesquisas que desvendem os mistérios da famosa bad trip.

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O estudo das drogas psicodélicas está passando por um renascimento. Recentes estudos sobre drogas como o LSD, o MDMA e a psilocibina (encontrada em cogumelos alucinógenos) indicam um possível uso terapêutico dessas substâncias. Pesquisas sugerem que substâncias psicodélicas podem diminuir o risco de suicídio, auxiliar no processo de luto, controlar o vício em narcóticos e aliviar a dor causada pela cefaleia também conhecida como "dor de cabeça suicida".

Qualidades à parte, as substâncias psicodélicas não são perfeitas. Meio século após o estudo revolucionário de Ungerleider e Fisher, ainda estamos longe de ter qualquer compreensão empírica sobre as reações adversas a psicotrópicos. Graças ao caráter subjetivo dos efeitos dessas substâncias, é praticamente impossível prever se — ou quando — alguém terá uma bad trip. Por isso, hoje os pesquisadores estão mais preocupados em prevenir essas experiências negativas e atenuar seus efeitos do que em prevê-las.

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Quando o assunto é evitar bad trips, profissionais de saúde mental e psiconautas sugerem uma abordagem que pode ser resumida em duas palavras: "cabeça" e "local". Popularizado por Timothy Leary, falecido professor de psicologia de Harvard e defensor do LSD, a ideia por trás do mantra "cabeça e local" é que, caso você esteja preparado psicologicamente para ter uma experiência psicodélica e esteja em um local confortável, a probabilidade de ter uma experiência traumática ou difícil torna-se significativamente menor.

Para aumentar suas chances de ter uma boa experiência psicodélica, é preciso alcançar um bom equilíbrio mental antes de ingerir a substância em questão. Além disso, estar em um local confortável e cheio de rostos familiares é uma forma de garantir que sua viagem psicodélica não acabe com, digamos, você vagando sozinho pelas ruas de Nova Iorque.

Mais dicas valiosas: no vídeo acima, Terence McKenna, falecido etnobotânico, psiconauta e defensor do consumo responsável de drogas psicodélicas, diz que cantar é uma boa forma de neutralizar os primeiros efeitos de uma bad trip . Ele também recomenda dar um ou dois tragos em um baseado bolado previamente.

Embora esses conselhos sejam uma das bases da comunidade psiconauta, uma política de redução de danos voltada para as drogas psicodélicas só começou a ser esboçada nos anos 70. Um dos primeiros artigos sobre o tema, publicado na edição de julho de 1970 do Journal of the American Medical Association, tratava do "controle de 'bad trips' em um público consumidor cada vez maior".

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Os autores do artigo defendiam que a "terapia racional" poderia ser uma forma de evitar comportamentos perigosos entre pessoas sob a influência de drogas psicodélicas. A defesa do diálogo em detrimento da aplicação forçada de tranquilizantes em pacientes em crise era uma postura extremamente progressista para a época, quando muitos psiquiatras não hesitavam em usar calmantes para interromper uma bad trip.

No mesmo ano, o governo americano aprovou o Decreto Abrangente da Prevenção e Controle do Abuso de Drogas. O decreto classificava grande parte das substâncias psicodélicas como Tipo 1, classificação que incluía substâncias viciantes e sem valor medicinal perante a lei. Mas apesar do combate a essas substâncias, o uso de drogas psicodélicas não diminuiu — e tampouco as bad trips.

Em 1977, William Abruzzi, um médico de Nova Iorque, publicou um artigo intitulado "5000 Bad Trips" no International Journal of Addiction no qual ele narrava sua experiência auxiliando milhares de desconhecidos a lidar com psicodelias traumáticas. Na época, Abruzzi já tinha uma experiência considerável com bad trips. Em 1969, ele havia convocado 81 médicos assistentes, clínicos e enfermeiros para atuar no Festival de Woodstock, onde eles atenderam "25 casos de reações adversas a drogas psicodélicas por hora".

Nos anos seguintes, Abruzzi continuou a frequentar shows de rock para cuidar de doidões em crise, experiência que daria origem a seu famoso artigo. Nele, Abruzzi defende a presença de centros de atendimento em festivais de música e prevê os programas de redução de danos que viriam a se tornar parte essencial de festivais contemporâneos como o Burning Man, o Lightning in a Bottle e o Coachella.

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A retomada desses programas de redução de danos foi encabeçada pela Associação Multidisciplinar de Estudos Psicodélicos, que, por meio do Projeto Zendo, criou espaços — normalmente tendas — onde frequentadores de festivais que estão tendo uma bad trip podem relaxar ou receber assistência médica.

Esse interesse renovado na redução de danos vêm atraindo pesquisadores de diversas instituições, muitos dos quais estão envolvidos em estudos sobre substâncias psicodélicas. Na vanguarda dos estudos psicodélicos está a Universidade John Hopkins, que nos últimos anos vêm conduzindo pesquisas sobre o uso terapêutico da psilocibina, o componente psicoativo dos cogumelos alucinógenos.

Na última MAPS Psychedelic Science, uma conferência de temática psicodélica que acontece em São Francisco, Darrick May, um psiquiatra de Hopkins especializado em medicina do vício, apresentou os resultados do maior estudo sobre bad trips já conduzido. Nesse estudo, 2000 voluntários completaram um questionário extensivo sobre reações negativas à psilocibina. Assim como Abruzzi, May já passou dias trabalhando na área de redução de danos de festivais como o Burning Man, além de ter conduzido cerca de 40 experiências sobre a psilocibina no hospital universitário de John Hopkins.

"Acredito que essas experiências negativas acontecem, de certa forma, ao acaso".

Segundo May, o estudo concluiu que experiências psicodélicas anteriores não aumentam a probabilidade de ter uma experiência psicodélica negativa. Por outro lado, segundo o estudo, pessoas mais jovens tendem a ter experiências mais negativas com a psilocibina. May aponta, no entanto, que essa observação "deve levar em conta a ideia de que quanto mais difícil a experiência, mais positivo seu resultado". Em outras palavras, experiências negativas são interpretadas retroativamente como uma oportunidade de crescimento pessoal.

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Além disso, a equipe responsável pela pesquisa descobriu que pessoas que relataram ter buscado ajuda de profissionais de saúde mental após o consumo de cogumelos tinham o dobro da probabilidade de ter buscado algum tratamento psicológico antes dessa experiência. Mas isso não significa que exista uma relação entre bad trips e transtornos psiquiátricos preexistentes. Na verdade, essas pessoas podem ser apenas mais acostumadas a buscar ajuda profissional, ou simplesmente ter dinheiro suficiente para fazê-lo.

"Acredito que essas experiências negativas acontecem, de certa forma, ao acaso", disse May durante a conferência MAPS. Embora o estudo sobre a psilocibina não tenha identificado nenhum fator como decisivo na incidência de bad trips, ele estabeleceu uma boa base para outras pesquisas sobre esse fenômeno. "Agora temos uma ferramenta psicométrica que pode ser utilizada para analisar diferentes aspectos dessas experiências, de forma que agora podemos melhor estudar a experiência em si", acrescentou May. "Para que haja uma padronização entre estudos psicodélicos, é necessário que essa ferramenta seja adotada em todas pesquisas sobre o tema".

Mesmo com tantas pesquisas, ainda não se sabe o que causa as bad trips. Alguns pesquisadores estão menos preocupados com a causa dessas experiências negativas e mais focados em controlar seus efeitos, um processo conhecido como integração.

No final de 2015, o Center for Optimal Living, uma instituição nova-iorquina, lançou um Programa de Educação Psicodélica e Tratamento Continuado após uma série de psicólogos e especialistas em redução de danos apontarem a necessidade de um local voltado para o tratamento de experiências psicodélicas negativas. Segundo Ingmar Gorman, um de seus criadores, o programa tem sido um sucesso.

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Duas vezes por mês, o centro oferece sessões de integração psicodélica que recebem em média de 10 a 15 visitantes, embora Gorman já tenha presenciado sessões com até 45 participantes. Durante estas sessões, os visitantes trabalham em conjunto com profissionais e outros participantes a fim de superar suas experiências traumáticas em um ambiente seguro e confidencial. Segundo Gorman, muitos dos frequentadores dos encontros apresentaram efeitos adversos após cerimônias de ayahuasca má conduzidas. No entanto, ele também afirma que muitos participantes frequentam os encontros para apoiar uns aos outros e para aprender mais sobre a redução de danos pós-uso de substâncias psicodélicas.

Crédito: Adam Dachis/Flickr

John*, um dos membros do grupo, começou a frequentar os encontros no meio do ano passado. Após testemunhar os ataques terroristas de 11 de setembro, John começou a sofrer de cefaleias em salvas. Essas crises debilitantes ocorriam frequentemente mas de forma aleatória, durando cerca de uma hora e chegando a acontecer várias vezes em um único dia. Elas costumavam terminar com John na emergência de um hospital, onde médicos o enchiam de analgésicos que pouco aliviavam suas dores.

Segundo ele, a dor é "como se Freddy Krueger esquentasse a lâmina do dedo do meio e a enfiasse no meu olho esquerdo".

Alguns anos atrás, John soube de um estudo da Universidade de Harvard sobre pessoas que sofriam de cefaleias em salvas e estavam sendo tratadas com doses de psilocibina. Embora ele nunca tivesse tomado nenhuma droga psicodélica, estava disposto a testar qualquer coisa que pudesse apaziguar suas dores excruciantes. Após a dificuldade inicial de encontrar algum revendedor de psilocibina, John finalmente conseguiu comprar a droga e fazer o famoso chá de cogumelo. Para sua surpresa, suas dores de cabeça acabaram.

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Nos últimos dois anos, John vem tomando doses moderadas de psilocibina de meses em meses. Nesse meio tempo, John teve apenas uma crise de cefaleia, ocorrida após ele passar três meses sem conseguir comprar cogumelos. Embora John tenha começado a frequentar os encontros no centro para saber mais sobre substâncias psicodélicas, recentemente, após sua primeira bad trip, ele afirma ter também encontrado nessas sessões um alento terapêutico.

"Esses encontros me permitiram olhar para mim mesmo e pensar sobre como coisas como o 11 de setembro mudaram minha vida", conta John. "Ainda estou trabalhando a parte da integração, mas o que eu gosto nesses encontros é que eles tem uma abordagem científica. Ninguém vai falar para você procurar um xamã que vai resolver todos seus problemas. Tudo falado aqui tem uma base científica".

Segundo Gorman, o Center for Optimal Living ainda não realizou nenhum estudo sobre seus visitantes, mas ele afirma que a próxima etapa do programa é investir em pesquisas que podem vir a contribuir para o tratamento de seus pacientes.

"Damos prioridade à abordagem empírica, e por isso valorizamos pesquisas", disse Gorman por email. "Estamos começando a consultar outros estudos, mas estamos sendo cuidadosos com nossa coleta de dados porque não queremos conduzir um projeto que exponha nossos clientes".

Bad trips são um assunto delicado, não apenas por causa do tabu que cerca o uso de substâncias psicodélicas, mas também devido à ideia de que a bad trip seria uma externalização de um trauma profundo. Embora essa ideia tenha como origem a popularização da psicanálise em meados do século passado, ela está começando a ser corroborada por estudos clínicos: um dos usos mais promissores de substâncias psicodélicas foi descrito, por exemplo, em testes sobre o uso de MDMA no tratamento de veteranos de guerra com estresse pós-traumático. Por sua vez, pesquisadores da Universidade John Hopkins descobriram que a psilocibina é particulamente eficaz em controlar o medo da morte em pacientes com doenças terminais.

De qualquer forma, esses testes estão adicionando provas empíricas à crença mística de que o que muitos veem como uma bad trip pode não ser uma experiência tão ruim.

Experiências psicodélicas como a dissolução do ego, que podem ser assustadoras para aqueles que não estão preparados, são comprovadamente uma das formas mais eficientes de lidar com eventos traumáticos. É por isso que psiconautas e pesquisadores como Darrick May abandonaram o termo " bad trip" dando preferência a termos como "experiência difícil" ou "desafiadora". Como muitos estudos acadêmicos e inúmeros testemunhos publicados na internet sugerem, muitas vezes as experiências psicodélicas mais angustiantes trazem os maiores benefícios.

É óbvio que o uso de substâncias psicodélicas não deve ser feito de forma indiscriminada. Nenhum pesquisador sério concorda com os Discípulos que em 1968 defendiam que todos deveriam ter acesso ilimitado ao LSD. A fim de compreender como essas substâncias interagem com transtornos psiquiátricos preexistentes, entre eles a esquizofrenia, e para reduzir a probabilidade de sequelas permanentes, serão necessários mais estudos sobre os mecanismos neurológicos das substâncias psicodélicas. Para isso é preciso ir além da bad trip: alguns pesquisadores estão tentando desvendar as causas do transtorno perceptual persistente por alucinógeno, também conhecido como flashback, um fenômeno que, embora longe de ser aceito como um transtorno em si, vem sido descrito há décadas.

Enquanto isso, pesquisadores corajosos estão elaborando manuais de suporte a usuários de substâncias psicodélicas; publicando guias de atendimento clínico para outros pesquisadores; e trabalhando de forma voluntária em festivais na tentativa de apaziguar os efeitos de uma experiência difícil.

Ao que tudo indica, essas reações adversas irão continuar a cortar nossa lombra por tempo indeterminado — mas isso não significa que toda bad trip seja necessariamente ruim.

* Nome fictício.