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Tecnologia

A Internet Não É Terra de Ninguém: Um Papo com Danielle Keats Citron

Conversamos com a autora de "Hate Crimes in Cyberspace", a advogada Danielle Citron, sobre essa ideia de que a internet é terra de ninguém.

A internet pode ser um lugar bem bacana para soltar o verbo sobre qualquer assunto, mas o problema é que uma vez que caiu na rede, é pra sempre. Não existe "não gostei, apaga" que possa realmente apagar algumas coisas da vida.

A advogada estadunidense Danielle Keats Citron lançou um livro sobre o tipo de coisa que não pode ser apagada da internet: os crimes de ódio.

Em Hate Crimes in Cyberspace, Danielle investiga esse tipo de crime, que acontece online, mas tem consequências sérias na vida offline das vítimas. Principalmente se elas forem mulheres – recentemente a imprensa divulgou a história de duas meninas brasileiras que se suicidaram depois de terem imagens nuas divulgadas na internet. Todos os dias meninas e meninos no mundo todo recebem ameaças e comentários maldosos em seus blogs e redes sociais. O problema é que muito pouco pode ser feito sobre isso na justiça.

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Troquei uma ideia com Danielle recentemente sobre essa noção de que a internet é um lugar sem leis, terra de ninguém, e ela me disse que "não há nada único sobre a internet, que a transforme em um lugar que não podemos tocar. Está cravada na vida real".

Motherboard: Em seu livro, por que você compara os crimes de ódio na internet com violência doméstica?

Danielle Citron: Eu faço essa comparação da reação da sociedade ao assédio sexual no trabalho e à violência doméstica porque as similaridades são tão impressionantes, o jeito que a sociedade ignora o problema do assédio sexual e a violência doméstica e as respostas a isso há alguns anos é exatamente igual à resposta de hoje sobre assédio online. Nós já falamos sobre violência doméstica coisas como "ah, o lar não pode ser regulamentado, isso não deve ser regulamentado" e as instruções [dadas às autoridades] eram "se você receber uma ligação sobre violência doméstica, acalme todo mundo, mas não faça nada a respeito". É um problema de marido e mulher, a lei não faz parte disso.

Nós não víamos como um problema social significativo e endereçado como um problema legal. Era um problema entre os pares, não era sério e todo mundo poderia resolver. E nós ouvimos a mesma coisa sobre assédio online. [As pessoas pensam que] é a internet, como se fosse qualquer lugar – o que não é –, tem suas próprias regras, é o oeste selvagem, nós não temos nada a ver com isso. E se tivermos, estaremos ferindo direitos de liberdade de expressão online, nós não podemos regulamentar, é muita bagunça. E é o mesmo problema que foi enfrentado sobre a violência doméstica, até que o movimento de mulheres enxergou que não era assim, nos ajudou a entender que não era apenas um problema familiar, é um problema social, com um custo seriamente negativo para a sociedade, que o lar não era apenas um espaço privado, mas um espaço no qual nós temos responsabilidade pública de não bater em nossos parceiros.

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Então é essa mudança de atitude que tivemos nos anos 70, 80, que eu acho que pode acontecer agora, mas isso requereu muito ativismo e agora nós temos que fazer o mesmo.

Os casos de violência doméstica acontecem em lugares privados, mas os casos de violência na internet são abertos. A internet é um lugar público?

Vamos debater isso um pouco, porque eu acho que isso não é verdade sobre os espaços na rede. Não é um quadrado definido. Os resultados apresentados pelo Google dos nossos nomes são CVs. Quando alguém vai contratar uma pessoa, joga o nome no Google. A ideia de que a internet é uma plataforma de discurso público não é verdade. A maioria dos resultados de uma busca pelo nosso nome leva a páginas privadas, nosso Facebook, Twitter. As pessoas fazem escolhas de discursos que querem fazer ou não na internet.

O argumento de que a internet é pública e nós não podemos mudá-la é uma desculpa para achar que foi tudo um mal entendido. Nós temos regras sobre espaços públicos. Você não pode ameaçar alguém em um espaço público, você não pode ir a um prédio público e dizer que vai estuprar alguém e sabe onde ela vive. Você não pode fazer isso. Também não pode perseguir e assediar alguém em um espaço público. Você certamente não pode fazer essas coisas em outros espaços, então não há nada único sobre a internet, que a transforme em um lugar que não podemos tocar. Está cravada na vida real. É um modo de ganhar a vida, é parte pessoal de todo aspecto das nossas vidas. E quando as pessoas são caladas na internet, elas são banidas do discurso público e a gente normalmente não pensa nisso.

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Por que as vítimas dos crimes de ódio na internet frequentemente são colocadas como culpadas?

É o mesmo que dissemos para as mulheres que foram assediadas sexualmente. Lembra-se que dissemos às vítimas do passado "você não limpou a casa direito, não é surpresa que seu marido tenha te batido". É interessante que quando se trata de questão de gênero, nós tendemos a culpar a vítima, mas nós culpamos a pessoa que teve sua carteira roubada na rua? Não. Mas culpamos essas vítimas: "Você estava usando uma saia muito curta, você fez um blog, o que você esperava? Você trocou fotos nuas! O que você esperava?"

Eu acho que tem a ver com estereótipos de gênero, porque nós não ouvimos essas respostas em crimes que os homens sofrem algum tipo de bullying. Claro que afeta homens e mulheres, mas mais as mulheres (cerca de 60% a 70%).

não há nada único sobre a internet, que a transforme em um lugar que não podemos tocar

Qual é a diferença de um crime de ódio na internet de um crime de ódio na vida real?

Quando falamos de crime de ódio o que queremos dizer é que estamos visando alguém, estamos interferindo em suas oportunidades. O que você está fazendo e dizendo é a mesma coisa online e offline. O impacto pode ser o mesmo também. Se você diz a alguém quem ela não pode trabalhar, a intimida e basicamente a impede de ir ao trabalho, esse crime de ódio é muito similar, apenas com uma estratégia diferente, uma ferramenta diferente, mas com a mesma ideia. Você está interferindo e ameaçando a pessoa.

Existem leis que lidam com crimes de injúria e difamação. Essas leis não são suficientes para conter os crimes de ódio? Por que?

São as leis de direitos civis. O que é interessante é que nós criminalizamos ameaças baseadas na raça ou religião de alguém ou origem nacional. Mas nós não incluímos gênero ou orientação sexual. E algumas vezes eu acho que o Ato de Direitos Civis é de um tempo quando os alvos de intimidação eram os afroamericanos, judeus, sabe, nós víamos alguns crimes como crimes de ódio. Mas hoje, nós precisamos expandir essas leis para mulheres e minorias sexuais.

No Brasil, existem projetos de lei para lidar com crimes de revenge porn. Como você acha que esse crime deve ser encarado?

Revenge porn é uma estratégia de assédio online. A ideia de criminalizar revenge porn é um valioso passo de avanço, porque aqui nos EUA as leis contra assédio e perseguição, podem não atingir o revenge porn, porque é apenas uma foto. Stalking e assédio são entendidos como comportamentos repetitivos, então uma ou duas postagens não são suficientes para serem constituídas perseguição ou assédio. O que fazem com essa foto é invasão de privacidade sexual, você está interferindo em uma comunicação privada. Acho que pode ser regulamentado nesses termos. Estamos trabalhando nisso nos EUA, mas parece que o Brasil está na nossa frente nisso.