O futuro do software mais sem graça do mundo
Apesar de as mudanças na computação, a edição de texto continua a mesma. Imagem: Bettmann/Getty

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Tecnologia

O futuro do software mais sem graça do mundo

Os processadores de texto ficarão mais interessantes do que imaginamos.

Em geral, os processadores de texto são desinteressantes; eles cumprem o que propõem e nada mais. (Isso quando não botam um clipezinho barrigudo.)

A maioria das pessoas não pensa muito antes de escolher um processador de texto. Eu não sou esse tipo de pessoa — na verdade, alguns meses atrás, cheguei a escrever um textão sobre como não sou esse tipo de pessoa.

O texto me fez perceber que, em muitos aspectos, eu estava gastando mais tempo reclamando do que pensando em formas de modernizar os programas de edição de texto.

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Assim, hoje venho falar sobre recentes tentativas de resolver os problemas dos processadores de texto. Essas novas ferramentas têm pouco em comum entre si — e é isso que as torna tão interessantes.

Uma defesa do texto em si

Nossos pensamentos são expressos de forma mais clara quando unidos em um fluxo único, constante e contínuo.

Mas quando escrevemos em um processador de texto, somos constantemente afastados de nossas ideias — é preciso consultar nossa bibliografia, iniciar pesquisas secundárias, alternar entre as abas abertas na tela do computador.

Isso gera uma espécie de atrito, obrigando nossa mente a analisar ao mesmo tempo quatro ou cinco camadas de pensamentos confusos. Informações tornam-se fragmentadas e conexões deixam de ser feitas.

Apesar de fazer o possível para evitar esse atrito, eu nem sempre tenho sucesso. Assim sendo, fiquei feliz em encontrar um companheiro que há anos estuda o conceito de "informação líquida", a forma como palavras e ideias podem unir-se em um só fluxo: Frode Hegland. Ele é fundador e organizador do Simpósio do Futuro do Texto, um evento anual que oferece palestras e organiza debates sobre o futuro do texto na computação, discutindo, entre outras questões, como o texto é ignorado no desenvolvimento de processadores de texto.

"É como se as pessoas não vissem o texto, mas apenas o que está além do texto. Algumas pessoas querem falar sobre conhecimento, outras sobre colaboração… mas poucos querem falar sobre o texto em si", me disse na última edição do evento, ocorrido em agosto do ano passado na sede do Google, em Mountain View, Califórnia, nos EUA.

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O acadêmico e desenvolvedor britânico, que há décadas estuda questões importantes relacionadas à informação, desenvolveu um aplicativo que promete resolver esse problema, uma extensão para o macOS chamado Liquid | Flow que permite aos usuários usar comandos para selecionar um trecho e modificá-lo de forma rápida e intuitiva (eu testei o app, e ele de fato faz o que promete).

Organizado anualmente, o Simpósio do Futuro do Texto — que em sua última edição apresentou tanto abordagens interessantes do processamento de texto, como o minimalista WriteRoom, criado por Jesse Grosjean, quanto conceitos bizarros como as considerações de Robert Scoble sobre o texto na era do Magic Leap — tem um clima vanguardista que me agrada.

A plateia do simpósio contava com algumas lendas vivas, entre elas Vint Cerf, um dos inventores da internet, e Ted Nelson, criador do termo "hipertexto". Mas em muitos aspectos, o rumo da carreira de Hegland e seu interesse pela escrita foram inspirados por um mentor que não estava no evento: Douglas Engelbart, expoente da informática cuja "Mãe de Todos os Demos" ajudou a criar a atual funcionalidade dos computadores de mesa (Engelbart faleceu em 2013).

Hegland afirma que seu interesse pela palavra escrita teve como origem sua relação pessoal com Engelbart, e que seu objetivo é aplicar alguns dos ensinamentos de seu mestre em seu processador de texto, o Liquid | Author. O aplicativo, projetado para ambos iOS e macOS e lançado publicamente para este sistema, possui um foco curiosamente limitado — em vez de tentar revolucionar o processamento de texto, ele tenta mudar a forma como alunos e professores se relacionam com documentos, uma interação com a qual muitos leitores devem ser familiarizados.

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"Os alunos deveriam poder criar citações — de sites, livros, artigos etc. — automaticamente, e os professores deveriam ter a oportunidade de checar essas citações de forma igualmente instantânea", explicou Hegland ao ser questionado sobre o foco de seu app.

Outro objetivo do Liquid | Author, diz ele, é usar os debates do Simpósio do Futuro do Texto como uma incubadora de ideias que poderão, no futuro, ser implementadas no projeto, que provavelmente será o foco de seu Ph.D.

O projeto não será um sucesso comercial —fato que o próprio Hegland não exita em admitir — mas ele certamente trará resultados fascinantes.


"Segundo a lenda, quando Steve Jobs 'pegou emprestado' algumas ideias sobre computação pessoal desenvolvidas pela Xerox PARC, muitas diferenças sutis, porém essenciais, foram perdidas."

— Trecho retirado do site do programa de edição de documentos Notion , explicando porque a empresa investiu na ferramenta, que une processamento de texto e colaboração documental. Em sua página, a empresa fala longamente sobre tentar "ressuscitar as ideias de alguns desses pioneiros". Atualmente, essa não é uma preocupação comum entre desenvolvedores de processadores de texto (para todos os efeitos, a Notion é provavelmente a ferramenta mais revolucionária da nova leva de processadores de texto, uma lista que inclui o Dropbox Paper e o Gingko).


Uma versão moderna de um processador de texto que não é um processador de texto

Talvez o problema dos nossos processadores de texto não seja o excesso de funções — mas sim que nem você nem sua empresa liguem para grande parte dessas funções.

O ambicioso Quill, uma ferramenta de edição de texto que foi popularizada no Github, foi desenvolvido levando em conta o processo de edição de texto a partir dessa perspectiva.Em vez de enxergar o processamento de texto como um desafio único e monolítico, esse programa adota a abordagem do código aberto —a ideia é modificá-lo da forma que você bem entender. Jason Chen, autor e desenvolvedor que iniciou o projeto enquanto ainda trabalhava na SalesForce, diz que o objetivo do programa é permitir que empresas e usuários finais criem uma plataforma que se adeque às suas demandas.

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"É comum dizer que 95% dos recursos do Word nunca são usados, mas o problema na verdade é que diferentes grupos usam diferentes recursos", explicou Chen em entrevista. "Acho que essas grandes empresas estão tentando criar uma ferramenta que faz apenas o que eles precisam e ignorando outros recursos."

Até o momento, essa abordagem — que ele afirma ter sido inspirada no design elegante do Medium e na estrutura forte e hackeável do Etherpad — ganhou alguns fãs importantes, como a Vox Media, o Gannett e o Hubspot. E o sucesso não para por aí: no mês passado, o LinkedIn reestruturou o LinkedIn Publishing, sua plataforma de textos, a fim de adotar o Quill, decisão apoiada pelo gerente de engenharia do site, que elogiou o poder técnico e a flexibilidade da ferramenta.

"Conforme a plataforma de textos do LinkedIn evolui, a tecnologia do Quill abre as portas para novos recursos, como a edição colaborativa e inserção de novos formatos de mídia", escreveu Jake Dejno, do LinkedIn.

Essa estratégia, diz Chen, reflete a ressignificação do papel do processamento de texto nos dias modernos. Ele defende que, em geral, os processadores de texto não acompanharam a evolução da interatividade da internet (coisas como os embeds, por exemplo); por outro lado, temos também o que Chen chama de "uma demanda cada vez menor por esses programas".

"Os motivos pelos quais usávamos processadores de texto estão desaparecendo", explicou ele. "O LinkedIn está substituindo os currículos, o Github está substituindo os documentos em papel, e as mídias sociais estão invadindo o jornalismo. Até mesmo os documentos criados para impressão estão sendo padronizados e automatizados. A maioria das cartas que recebemos pelos correios vêm, provavelmente, de algum banco que gerou e imprimiu esses documentos sem abrir o Word nenhuma vez".

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Ao colocar o controle do texto nas mãos do usuário final — e fazendo isso, é bom lembrar, com padrões técnicos de primeira — projetos como o Quill prometem mudar nossa relação com os processadores de texto, nem que para isso eles precisam, por exemplo, acabar com os processadores de texto de uma vez.


E qual será o futuro do processamento de texto? Continuaremos a usar uma única ferramenta para lidar com qualquer tipo de texto? Quando fiz essa pergunta para Chen, ele sugeriu que a curto prazo, as empresas irão começar a usar ferramentas mais especializadas, mas que, a longo prazo, veremos mudanças significativas na forma como interagimos com a escrita.

"Acredito que em 15 anos a interface dessas ferramentas e a ideia que hoje temos de 'documento' terão mudado completamente", disse Chen. "Não acredito que vamos dominar a telepatia nos próximos anos, mas creio que a fala e o áudio cumprirão um papel maior na divulgação de informações. O vídeo já está expandindo o conceito de documento, mas nos próximos anos a realidade virtual pode se tornar onipresente."

No entanto, a ideia de áudios e vídeos como substitutos da escrita, embora interessante, me incomoda — e por mais de um motivo. Um desses motivos ficou claro no momento em que ouvi a gravação da minha entrevista com Frode Hegland: eu odeio o som da minha voz, principalmente porque não falo tão claramente quanto eu escrevo (cara, como as pessoas levam a sério um homem de 35 anos que diz coisas como "tipo" e "sabe" no meio de uma conversa?).

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Hegland, que é muito mais eloquente do que eu, propôs que o processamento de linguagem natural irá mudar a forma como escrevemos — em particular quando pensamos em técnicas de sumarização automática que poderão dizer, em tempo real, se uma história faz ou não sentido. Para ilustrar seu argumento, ele citou a pesquisa de Bruce Horn, um desenvolvedor dos primórdios da Macintosh que hoje trabalha na Intel, e a obra de Livia Polanyi, professora de linguística de Stanford.

No fim, entretanto, Hegland ainda acredita haver espaço para a escrita, bem como para as ferramentas que são comumente usadas para criá-la.

"No últimos anos, cheguei à conclusão de que a liberdade de movimento [mental] é essencial", diz ele, destacando a natureza volátil da transposição de pensamentos em palavras. "Quando pensamos no ato de escrever do ponto de vista físico, temos uma liberdade enorme de movimento."

(Ao contrário de mim, Hegland não é um fã do Markdown [ um sistema de formatação que facilita a escrita e a leitura], mas, ei, ninguém é perfeito).

Enquanto minha liberdade de movimento mental for mais veloz do que minha voz, continuarei precisando de um teclado. Mas e quanto às próximas gerações? Será que os processadores de texto entrarão para os anais da história, junto do Motorola RAZR e do BlackBerry?

Espero sinceramente que não — ainda tenho muito o que escrever.