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Tecnologia

As antas brasileiras estão sendo mais atropeladas do que nunca

Sucessivas mortes do mamífero ameaçam a biodiversidade e a segurança dos motoristas pelas estradas brasileiras.

Com os órgãos para fora do corpo, o filhote rajado permanece estirado no acostamento da estrada BR 267, no estado do Mato Grosso do Sul. Atrás dele, a engenheira florestal Patrícia Medici fala para a câmera sobre mais uma fatalidade. Uma não, duas: na noite anterior, uma anta prenha havia sido atropelada. No vídeo, a pesquisadora, que estuda a espécie há 25 anos e traz no currículo três prêmios internacionais, parece enternecida ao noticiar que mãe e filhote não sobreviveram. "A fêmea foi atropelada e alguém a carneou", diz, referindo-se ao fato de o animal ter sido cortado e virado comida horas depois.

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Não foi a primeira nem última vez que Medici teve de lidar com esses bichos enormes, que pesam entre 200 e 300 quilos, mortos pela estrada. Ela estuda o maior mamífero terreste da América Latina desde os anos 90, quando largou a função de macacóloga. Hoje coordena uma equipe que monitora atropelamentos da espécie Tapirus terrestris pelas vias do Mato Grosso do Sul. De lá pra cá, a estimativa é de que 280 antas foram vítimas de atropelamento. Os números podem ser ainda maiores. "Acontece de um caminhoneiro atropelar uma anta, descer do caminhão, jogá-la na caçamba e levar pra fazer churrasco. É uma carne bastante apreciada." Segundo ela, foram muitas as vezes que chegou para efetuar a necrópsia do animal e ele já estava carneado. Foi por pouco, inclusive, que certa vez não degustou carne de anta em um churrasco. Quando descobriu qual era a iguaria servida, a pesquisadora negou. Não teve coragem ou vontade de saborear seu animal de estudo.

Embora segundo o dicionário Michaelis o sentido figurado de anta remeta à "pessoa pouco inteligente que não capta ou entende as coisas facilmente", o quadrúpede está longe de ter raciocínio lento. "É um bicho que tem uma quantidade gigantesca de neurônios, um animal extremamente inteligente", diz Medici. O problema, afirma, é que a inteligência não basta para salvá-las do atropelamento. "É um animal acinzentado que, contra o asfalto cinza, é praticamente impossível de ser visto."

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A engenharia ambiental afirma que, para piorar o cenário, 98% das colisões que resultam na morte dos bichos ocorrem à noite. As antas, diz, são solitárias e noturnas. Durante o dia, arrumam um lugarzinho no meio do mato, se aconchegam e passam horas dormindo. A única possibilidade de ver duas antas juntas é quando uma mãe está com seu filhote. O ciclo reprodutivo das fêmeas é longo: são 14 meses de gestação para nascer apenas um filhotinho. Esse é um dos fatores que pode comprometer a espécie.

"Elas ficam se deslocando desesperadamente, tentando sobreviver no cerrado", diz a pesquisadora. "Ou estão cruzando a rodovia de uma parte pra outra da sua área de vida, que está ali, espremida no meio de um mosaico de ameaças, ou rolando pela paisagem, andando ao léu, tentando achar comida, proteção."

A bióloga Patrícia Medici ao lado de uma anta no Mato Grosso do Sul durante pesquisa científica. Crédito: Arquivo pessoal

Patrícia acredita que existe dificuldade para os motoristas que se deparam do nada com uma anta em plena estrada. "Ele não tem chance alguma de escapar dessa colisão. Nenhuma. Por mais que o sujeito freie e por mais que esteja dirigindo cuidadosamente, eu arrisco dizer."

Estudos científicos comprovam que placas de sinalização pelas rodovias que alertam os motoristas sobre a presença de animais na região não ajudam em nada. Poucas pessoas prestam atenção ou diminuem a velocidade. Campanhas preventivas também não resolvem o problema. Com isso em mente, Patrícia e a equipe do IPÊ (Instituto de Pesquisas Ecológicas) recorreram a um nome reconhecido quando se fala em ecologia de estrada brasileira, a bióloga Fernanda Abra. "A maior especialista em mitigação de atropelamento de fauna do país", conta Patrícia. "Ela afirmou que, para resolver esse problema, teríamos de ir na jugular dos gestores das rodovias e das agências governamentais."

Por isso, em agosto de 2016, a equipe de monitoramento de antas do IPÊ protocolou um inquérito civil junto ao Ministério Público do Estado do Mato Grosso do Sul. A ideia é sentar à mesa com as autoridades e propor métodos efetivos para que não só as antas, mas animais como tatus e tamanduás, sejam protegidos. Uma das soluções propostas são alambrados que direcionem os animais para túneis por baixo da rodovia ou pontes.

Por ora, uma das medidas provisórias tem sido o WhatsApp. Além de se locomover de carro pelas rodovias do Estado em busca de carcaças, a equipe do IPÊ criou um grupo no serviço de troca de mensagens para receber alerta de moradores locais sobre eventuais antas atropeladas.

"Estamos colocando 80% do foco em mortes humanas. A colisão de um veículo pequeno com uma anta, que é um bicho grande, pode causar feridos e óbitos. Além de ser um problema de perda de biodiversidade, é também uma questão de segurança", afirma Medici.