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Tecnologia

Entrevistamos um Chef Espacial

Na esperança de provar alimentos espaciais saudáveis, conversamos com Stefano Polato sobre café espacial, os restaurantes do universo e o Avamposto42.
​Créditos: Stephano Polato

Quase todo mundo já viajou a 400 km de casa e já sofreu com problemas culinários, ou pelo menos com a mera melancolia dos miojos de soja do restaurante chinês que costumava satisfazer as vontades da adolescência.

Não é muita gente, no entanto, que já viveu a emoção de viajar a 431 km acima de casa, onde não há como improvisar um passeio para saciar o apetite.

A Estação Espacial Internacional (EEI) é habitada por um punhado de astronautas que flutuam ao redor da Terra, observando o planeta à distância, mas que não podem comer o que o estômago pede.

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Na época de Jurij Gagarin, o primeiro homem viajar no espaço, em 1961, comer em órbita significava sugar uma espécie de papa nutritiva de um tubo que parecia uma embalagem de pasta de dente. E antes dele consumir sua primeira refeição no espaço, ninguém sabia ao certo se a ausência de gravidade o deixaria engolir sem sufocar. As primeiras cobaias chegaram a reclamar — John Glenn jurava que a papa de bife que deram a ele era intragável. A questão da comestibilidade dos alimentos espaciais foi resolvido ao longo do tempo e atingiu o ápice com os M&Ms flutuantes, que fizeram todos os astronautas da estação espacial muito felizes em 1981.

Atualmente, a comida da EEI se parece com um arquivo de documentos de plástico, colocados na parede em ordem alfabética. Há refeições liofilizadas esperando apenas por algumas gotas de água quente para ressuscitar, ou esperando para serem termoestabilizadas em um microondas portátil.

O coquetel de camarões liofilizados parece ser o favorito da casa, seguido das tortillas semidesidratadas, recheadas com o sabor que o astronauta desejar, e dos eternos M&Ms.

O astronauta Loren J. Shriver à bordo do ônibus espacial Atlantis. Créditos: NASA

Comparada à era das refeições de "pasta de dente", a comida atual está anos-luz à frente. É tão diferente daquela época, que a astronauta Samantha Cristoforetti decidiu iniciar uma campanha sobre a importância de uma alimentação saudável, mesmo em órbita. Na esperança de provar alimentos espaciais saudáveis, contatamos o cozinheiro da Samantha, Stefano Polato, e conversamos com ele sobre café espacial, os restaurantes do universo e o Avamposto42, o blog que narra as aventuras culinárias da equipe da Samantha.

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Motherboard:A empresa para a qual você trabalha, a Argotec, é a fornecedora oficial de bonus food para a EEI. O termo bonus food significa alimentos extra, em oposição à dieta padrão?

Stefano Polato: É a comida para ocasiões especiais, os alimentos particulares de cada astronauta. Digamos que cada um deles tenha uma despensa russa completa, ou americana, a seu dispor — algo parecido com a antiga ração K. Além disso, semanalmente, eles têm a bonus food. Recentemente, enviamos 11 vasilhas de bonus food, mas isso não será o bastante para o período todo de seis meses.

Você é o chef particular da Samantha Cristoforetti. Todo astronauta tem um chef particular?

Tecnicamente, sim. Incluindo o chef particular de cada astronauta, o pessoal da Argotec (eu incluso) também lida com o processo de pesquisa. Já trabalhei para uma grande empresa que distribui alimentos; isso me proporcionou uma bagagem de experiências importantes para o setor. Foi uma forma de continuar no caminho que eu já estava trilhando, e além disso, tive a oportunidade de trabalhar com a Samantha.

A refeição já vem pronta?

Não, a ideia da Samantha é combinar alimentos pré-preparados (arroz ou macarrão para aquecer) com ingredientes separados, para personalizar/customizar as receitas. É uma novidade. Fornecemos à Samantha um leque de alimentos; então, ela pode combinar os ingredientes de acordo com o seu paladar, criar um cardápio personalizado.

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Há outras novidades no segmento de alimentos?

Demos uma atenção especial à saúde física da Samantha. Trabalhamos lado a lado com um nutricionista, Filippo Ongaro, com quem planejamos o cardápio dela. O objetivo é tentar lidar com os problemas que astronautas enfrentam; conter/controlar o envelhecimento celular. Por exemplo, usamos bastante antioxidantes. O aspecto crucial era garantir a quantidade certa de substâncias nutritivas: proteínas principalmente, mas também fibra. Por isso, optamos por bastante cereais integrais.

Os alimentos que fornecemos precisam ser uma fonte de energia para períodos longos, e não podem ser queimados imediatamente, como no caso de cereais refinados. A ideia inicial era oferecer a ela uma alimentação que a deixasse realizar qualquer atividade que ela precisasse, da melhor maneira possível.

A cafeteira feita pela Argotec em colaboração com a Lavazza. Créditos: Argotec

E as técnicas culinárias?

Usamos uma técnica de termoestabilização que começa com o alimento selado à vácuo, cozinhado em baixa temperatura. Alguns restaurantes "terrestres" também utilizam essa técnica, pois preserva o sabor e as cores da comida. Outro processo avantgarde no campo da gastronomia/culinária é a liofilização, uma técnica que permite salvaguardar todos os valores nutritivos do alimento: você esfria o ingrediente a 80 graus negativos e então sobe a temperatura novamente, em um ambiente estéril e sem ar, para que a água possa sublimar-se do estado sólido para chegar ao estado gasoso. Assim que toda a água é aspirada, o alimento fica seco e denso.

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Se os astronautas quisessem cozinhar uma massa na EEI, não seriam capazes de ferver a água porque se espalharia por toda a cabine, certo?

Certo. Além disso, o parâmetro máximo para temperaturas definido pela NASA é 80 graus. Se qualquer líquido se dispersar na estação, caso a temperatura esteja acima dos 80 graus, os astronautas correm risco de queimaduras sérias e danos nas engrenagens. Trabalhamos muito com pressão combinada, tentando, contudo, alcançar os 80 graus. A pressão extremamente alta compensa os 20 graus que fazem falta à temperatura na hora de ferver no espaço.

E o café? Dá para beber num copo?

Não, eles bebem num saquinho, uma bolsa com canudo e válvula. A cafeteira faz expresso em saquinhos, mas, tecnicamente, funciona como as máquinas que temos na Terra.

A maior novidade das missões recentes é a relevância delas na internet e nas redes sociais. Vocês, da equipe da Samantha, aproveitaram a ocasião para iniciar uma campanha de conscientização sobre a importância de uma alimentação saudável. Como surgiu a ideia?

Desde que nos conhecemos, a Samantha me pede alimentos de qualidade que possam ajudar na conscientização sobre o conceito de alimentação saudável. Avamposto 42 é um blog em que narramos nossas aventuras com comidas espaciais, aproveitando a ocasião para tratar das questões importantes que também envolvem hábitos alimentares na Terra. Exaltamos os princípios e valores do movimento Slow Food.

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O número 42 vem do Douglas Adams? Você já leu "O Restaurante no Fim do Universo"?

Sim, eu e a Samantha nos conhecemos graças a essa história. A partir de então, li todos os livros.. Acho que foi uma coincidência, porque 42 também é o número da missão dela… tudo parecia fluir na mesma direção, então criamos a ideia do Avamposto42. A Samantha é bem ligada a esse número.

Créditos: Argotec

Li no Avamposto42 que a comida preparada para a Samantha também foi criada para ser compartilhada com os colegas dela. Qual é o motivo disso?

Queríamos dar importância à noção de compartilhamento além da nutrição. Enxergamos a oportunidade como uma ocasião para deixar para trás a ideia de nutrição como finalidade única… [Criamos] refeições que podem representar a tradição italiana — azeite, chocolate italiano, vinagre balsâmico de Modena. Queríamos que a comida fosse compartilhada com toda a equipe espacial.

O paladar e o olfato mudam no espaço?

A resposta a essa pergunta varia: há quem diga que não conseguiu sentir gosto de sal e açúcar; outros afirmam que não houve mudança alguma. Veremos quando a Samantha chegar ao espaço. Contudo, brincamos bastante com sabores e temperos, às vezes exageramos. Ter uma alimentação saborosa e variada também é importante para o humor.

No museu de ciências de Nova York, vendem sacos de comida para astronautas. A Argotec tem ideias assim?

No dia23 de outubro, abrimos um site de e-commerce onde vendemos esses produtos. Estamos nos centros da Agência Espacial Europeia (ESA) de todos os países da Europa, e nas lojas. A aplicação do nosso conhecimento em alimentos de longa duração é vasta, podemos fornecer alimentos para atividades extremas de diversos tipos, não apenas para o espaço. Por exemplo, fornimos espeleologistas dos projetos em cavernas da ESA e também temos Alex Bellini como cliente, um aventureiro que está prestes a escalar um iceberg.

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Você gostaria de cozinhar na própria EEI um dia? Você já pensou em formas de compensar a ausência de gravidade?

Seria incrível. Bem, uma pesquisa extensa seria necessária. Mas a ideia me fascina. Toda a dinâmica física mudaria: o ar frio aqui na Terra tende a descer. Lá no alto, não nos deparamos com os formatos que temos aqui. Por exemplo, uma gota. Seria uma nova forma radical de culinária/gastronomia.

Se você pudesse escolher um lugar ideal para trabalhar, você escolheria a EEI?

Sim, claro. Sempre aponto para o espaço.

Tradução: Stephanie Fernandes