Insones, Uni-vos! Criaram um Podcast Entediante Para nos Fazer Dormir
​Crédito: Teemu Haila/Flickr

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Insones, Uni-vos! Criaram um Podcast Entediante Para nos Fazer Dormir

São duas da madrugada, e uma voz masculina murmura no meu laptop qualquer coisa sobre Game of Thrones e gatos.

São duas da madrugada, e uma voz masculina murmura no meu laptop qualquer coisa sobre Game of Thrones e gatos. As luzes estão apagadas, o volume do computador está pela metade, e minhas pálpebras começam a adquirir aquele peso típico de centenas de palestras universitárias maçantes.

Poucos minutos depois, caio no sono, e a voz segue tagarelando noite adentro.

Sleep With Me (Durma Comigo) é um podcast que faz jus ao título. Cada episódio de uma hora busca entediar os ouvintes e fazê-los dormir, tirando o foco de seus próprios pensamentos com monológos tão honestos, que chegam a ser bizarros, sobre canções de zumbis, ou Diana Rigg, ou Ser Pounce, o gato da realeza de Game of Thrones.

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O efeito é como a visita pedante de um amigo adoravelmente esquisito, de infância, o tipo que não percebe a hora de ir embora, depois do chá esfriar, e fica discursando sobre suas obscuridades favoritas. Sob a alcunha de "Scooter", o criador e apresentador do Sleep With Me, Drew Ackerman, admite perguntas, cumprimenta os ouvintes e responde mensagens dos fãs. Há um senso de comunidade noturna no programa, que se estende além dos tímpanos solitários dos ouvintes.

Não dava para o Sleep With Me ser mais diferente das demais opções online para insones:os ruídos branco, cor-de-rosa e cinza,a Resposta Sensorial Autônoma do Meridiano (ASMR) evídeos de hipnose embalam o ouvinte num transe "cada vez mais profundo, cada vez mais distante", no calmo recesso da mente. Nas "opções relacionadas" da loja do iTunes, não há nada parecido, porque em vez de internalizar o pensamento do ouvinte, o Sleep With Me apresenta uma narrativa própria, psicodélica, quase sempre hilária.

Anotações de Ackerman para o podcastSleep With Me. Créditos: Drew Millard

É uma abordagem muito honesta para algo que muitos de nós já fazemos. O padrão é assim: você assina um podcast sobre um tema nobre e ambicioso. Você deixa o podcast tocando a noite inteira, depois do expediente, na esperança de aprender algo sobre Wittgenstein e metafilosofia. Mas, em vez disso, você adormece. Você tenta de novo na noite seguinte (pelo amor de Deus, o Tractatus precisa de explicação!) e, aos poucos, a cada tentativa, o programa adquire um novo propósito — ajudá-lo a dormir, e não servir de aprendizado.

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É estranho pensar nos tópicos — muitas vezes, bem sérios — dos podcasts que funcionam como histórias de ninar para adultos. Com o passar dos anos, até alguns dos meus programas favoritos passaram a servir esse propósito. Fui ver o Ira Glass falar numa universidade de Dublin, ano passado, e após enfrentar uma fila para conhecê-lo, demos um aperto de mão e contei que adormecia ouvindo This American Life com tanta frequência, que temia assimilar seu sotaque. ("Já assimilou, ele respondeu, eabriu um sorriso encantador, típico de Ira.)

Mas, para Ackerman, ouvir que Sleep With Me é um sonífero soa como elogio: "O mais interessante é que pode ser por causa da minha personalidade, ou da maneira como eu falo…"

Entrevistei Ackerman por email, que foi fiel à forma e me respondeu com uma série de divagações em áudio. Ele é tão cativante e excêntrico quanto no programa, e conversou comigo munido de curiosidades sobre o nicho, uma comunidade comprometida que o podcast atraiu.

Resposta de Ackerman a uma pergunta sobre como ele intuiu que as pessoas precisam de distrações, e não ruído branco, para dormir.

Ele não tem experiência com a ciência do sono, nem fórmulas para podcasts obterem êxito onde outros falharam. "Acho que é um negócio intuitivo. Não entendo muito bem como funciona, ou por que funciona." Por instinto, ele sabia que o silêncio ou o ruído branco jamais dariam certo: "A ideia de acalmar a mente não funciona para mim. Nunca funcionou. Talvez para algumas pessoas normals funcione".

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No lugar, Ackerman conta com o próprio antecedente de insônia na infância, quando ele era incapaz de silenciar os próprios pensamentos. "Eu ficava lá sozinho, pensando: 'ninguém me entende'. Quem não consegue dormir se identifica com isso. Se você for casado, estiver num relacionamento ou algo assim, a pessoa com quem você está junto também precisa dormir, e se ele ou ela não tiverem insônia, não vão entender. É um sentimento quase tribal."

A cada episódio, ele confronta o que chama de "juiz interno", um juiz severo, sem muita ideia de como o episódio vai sair. As gravações exigem colhões, e exercem uma pressão que nenhum outro locutor enfrenta: a necessidade de ser enfadonho o bastante. Mas todos relatam que o programa está funcionando, e as resenhas do iTunes são positivas, fanáticas até: "Acho que é a primeira vez que dou cinco estrelas para um programa por ser entediante." "Nossa, estou muito feliz por ter encontrado isto!" "A criatividade de cada episódio é absurda, não tem limites… Por favor, cara, continue obedecendo suas compulsões!"

Há um sentimento de vulnerabilidade e agradecimento profundo entre os fãs de Sleep With Me: só quem já sofreu durante noites em claro apreciará o trabalho dele. "Acho que é uma atitude quase corajosa que meus ouvintes tomam", ele admitiu, "decidir ouvir um cara até cair no sono. É uma estranha vulnerabilidade. E, na outra extremidade, também tenho que estar vulnerável. O programa é feito de uma maneira genuína. Acho que não funcionaria se não fosse." Para adormecer, é preciso confiar no locutor.

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"Há uma estranha sensação de intimidade quando você deixa alguém falar ao pé do seu ouvido"

Semana passada, Ackerman mencionou a morte do comediante e roteirista Harris Wittels — conhecido por fazer várias aparições no podcast You Made it Weird e trabalhar no Comedy Bang Bang — como um momento de revelação, que mostrou a ele o poder dos podcasts como veículo. Ackerman ficou impressionado com a intensidade do pesar que sentiu enquanto lia sobre a morte de Wittels, até notar que o derramamento de lágrimas no Twitter estava no mesmo nível.

"Há uma estranha sensação de intimidade quando você deixa alguém falar ao pé do seu ouvido", disse ele. "Cultivamos relações esquisitas na internet." A tecnologia costuma levar a culpa pelo isolamento social, mas Ackerman descreve a experiência de ouvir podcasts como comunal e terapêutica. "Podcasts têm um quê de tristeza, mas são fantásticos. Talvez denunciem um mal colossal da sociedade, nossa sensação de solidão e isolamento."

Se esse vazio social existe mesmo, então a cultura está progredindo para preenchê-lo.Por ora, Sleep With Me pode ser um programa experimental, o único podcast do iTunes que tenta entendiar os ouvintes, mas a mesma técnica emerge de vez em quando em outros formatos. Mais de 15 anos atrás, o inventor Matthew Ashende desenvolveu um programa chamado pzizz (hoje, é um aplicativo), combinando batidas bineurais, efeitos sonoros e uma narrativa falada, com o objetivo de embalar os ouvintes em cochilos potentes.

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Quando perguntei a Ashenden por que ele escolheu incluir voz no produto, ele respondeu: "Acreditamos que ganharíamos mais usando voz e música estruturada, em oposição a efeitos sonoros soltos", e acrescentou que queria criar uma experiência auditiva mais ativa para usuários com pouco tempo em mãos.

Ficar acordado de madrugada agora é um pouco menos solitário

Recentemente, o ator e cantor esporádico de country Jeff Bridges lançou o musical Sleeping Tapes (Fitas Para Dormir) em colaboração com o compositor Keefus Ciancia. Na produção, o ator mais conhecido como The Dudeinterpreta quinze faixas de trompete de jazz, sons da natureza e histórias contadas, num estilo que poderíamos chamar de "mumblecore avuncular" (ou "tagarelice de tio"). É reconfortante, esquisito e alegre, e culimina numa série de afirmações ("Você é uma boa pessoa… Eu gosto do seu corte de cabelo…") e uma declaração de despedida: "Estamos nessa juntos".

Estamos mesmo. Para os insones ao redor do mundo, a ânsia por uma marca distinta de nonsense coerente foi validada, e ficar acordado de madrugada agora é um pouco menos solitário. Para mim, Sleep With Me Sleeping Tapes ocupam um lugar que antes era preenchido por podcasts feitos para ouvir acordado. Não me sinto mais culpado ao pescar no meio de programas sobre a economia do chocolate ou o possível luto dos corvos, podcasts que demandam atenção.

Apesar das nossas melhores intenções, essas histórias acabam virando barulho de fundo. Podemos desejar uma mente em branco, em paz, mas a mídia que nos bombardeia diariamente torna isso impossível.

O negócio agora é abafar os pensamentos com palavras faladas. Elas cobrem o zunido das cidades, de fora da janela. Elas nos raptam e nos levam a ficções surreais, preenchendo silêncios solitários com psicodelia e estranheza. Embora não ofereçam mais do que uma voz solitária, elas nos deixam menos sozinhos.

Tradução: Stephanie Fernandes