Os youtubers que transformam objetos cotidianos em armas de fogo
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Os youtubers que transformam objetos cotidianos em armas de fogo

“Não façam isso em casa.”

Há, nos cantos mais obscuros do YouTube, uma crescente tendência de mostrar gambiarras para converter objetos cotidianos em armas de fogo. São dezenas de usuários espalhados pelo Brasil — e também pelo mundo — que ensinam o passo a passo para criar, dentro de casa, algo que atire, exploda e fira.

Embora escondidos no site, os canais do gênero possuem grande número de acessos. Um vídeo dos mais populares, com mais de 200 mil visualizações, mostra um suposto montador de armas atirando com uma pistola Glock que teria sido feita a partir de uma arma de pressão.

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Em português, o usuário demonstra um aparente domínio sobre a mecânica de uma coisa que, convenhamos, pouca gente de fato manja. Não é um caso isolado. Há diversos perfis de youtubers falando sobre a aparente possibilidade de se transformar armas de pressão em "reais". Alguns — em especial os que falam em espanhol e inglês — chegam a mais de um milhão de visualizações.

Apesar da aparente autenticidade dos testes, no próprio Youtube é possível encontrar vídeos que apontam as mentiras e exageros dessa cena. Assim como em muitos sites de notícia, o que predomina é a política do caça-clique. O jovem youtuber Luiz Rider, que tem diversos vídeos sobre o tema, alerta sobre a impossibilidade de converter uma arma não real em uma de verdade.

Ele pondera que, com muito esforço e criatividade, é possível instalar um disparador de pistola dentro de uma airsoft. O problema se dá na hora do disparo. A arma de brincadeira não conta com resistência suficiente para suportar a combustão de um tiro que, se de fato efetuado, pode provocar a explosão do corpo da arma de pressão — frustrando e ferindo o atirador.

Não bastassem os duvidosos tutoriais para bombar as airsofts, há uma série de outros vídeos que ensinam a fazer improvisadas armas caseiras. Há um vídeo com quase cem mil visualizações que ensina a fazer um disparo usando caneta, fósforo e a caixinha onde os palitos com ponta de pólvora são guardados.

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Com o mesmo princípio, a imaginação vai além com maior periculosidade. É o caso do vídeo em que um cara usa um cano de ferro e, orgulhoso, afirma que "a arma caseira foi feita por nós", depositando dentro do orifício uma bomba típica de festa junina. Um detalhe do registro é que uma criança ajuda no processo de acender a bomba que perfura uma tampa de caixa d'água que, segundo o "armeiro", é de acrílico. A única pessoa que usa algum tipo de proteção, um protetor auricular segundo o vídeo, é o mano que segura o cano chamado de arma. A mídia é de 2011 e possui mais de 200 mil visualizações.

Sem dificuldade, é possível também encontrar outro vídeo que mostra como fazer um disparador de calibre 22 usando uma válvula e um tipo de parafuso, ambos com "porca". Neste vídeo, um homem pega a munição de 22, a deposita na válvula, que é rosqueada em um parafuso adaptado com mola. Assim, projeta o precursor que, após atingir a "bala", possibilita um disparo — que, no caso do vídeo, de 2016 e com mais de cem mil views, não é mostrado.

Como diz a sabedoria popular, a internet é apenas um recorte editado do que acontece no mundo real. No Brasil, há uma porção de casos envolvendo armas de fogo caseiras. Em fevereiro deste ano, em Belo Horizonte, Minas Gerais, uma fábrica de armas caseiras, bem mais sofisticada do que as vistas pelo YouTube e com mercadorias mais "em conta" do que as feitas legalmente, foi descoberta pela polícia. O torneiro mecânico Antônia Alves de Araújo foi acusado de ser o responsável de usar sua oficina para produzir trabucos para o crime da região metropolitana de BH. O cara foi descoberto após seis meses de investigações da Polícia Civil. Ele teria vendido, no ano passado, ao menos dez armas de fogo caseiras, incluindo submetralhadoras, para o tráfico de drogas.

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Além de casos como do torneiro mecânico, que manja dos paranauês para fazer as coisas, existem inúmeros registros, feitos por policiais, de armas feitas ainda mais improvisadamente em casa, apreendidas com criminosos.

Num dos casos expostos no YouTube, um PM mostra uma marreta — daquelas usadas para quebrar paredes e granito — a qual o policial afirma disparar uma munição de calibre 12 por vez. O agente alerta para que os colegas de farda fiquem ligados para não serem surpreendidos com uma arma/ferramenta dessas. (A reportagem não conseguiu dar um confere de onde é o policial do vídeo, que está disponível para quem quiser abaixo.)

Outro caso de arma caseira é mostrado por um policial civil da Bahia. Ele segura um grampeador automático, geralmente usado por tapeceiros em sofás. Segundo a explicação do cara, os criminosos pegos com a arma improvisada colocaram um torno e um parafuso no dispositivo – permitindo que, em vez de grampos, a ferramenta dispare munição de calibre 38.

O ex-armeiro do Exército e da Polícia Militar de São Paulo, César Augusto de Toledo César, explicou que armas dissimuladas, como a marreta e o grampeador, podem ser consideradas como armas proibidas. "A marreta, por exemplo, foi produzida com o intuito de causar dolo", diz.

César acrescenta que, além dos riscos à integridade física de se converter "algo" em arma de fogo improvisada, o lance todo também é um crime. "A bem da verdade, a ilegalidade flagrante começa na questão da adulteração", afirmou César, que atualmente é o titular da Delegacia de Investigações sobre o Meio Ambiente de Franco da Rocha, na Grande São Paulo.

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No caso das airsoft convertidas em pistola Glock, caso a pessoa consiga de alguma forma evitar todos os riscos de explosão, ainda ocorre o crime de se portar uma arma não registrada. "Embora o calibre 22 (usado no vídeo) ser permitido, o fato dele (youtuber) transformar (o 'brinquedo') em uma arma sem numeração, sem todo o tipo de documentação necessária, o coloca em uma situação pior do que a de quem tem uma arma, de verdade, ilegalmente", afirmou o ex-armeiro.

Segundo o artigo 14 da lei 8266/2003, portar ilegalmente armas e fogo, de uso permitido, pode render uma pena de reclusão entre dois e quatro anos, além de multa. Em caso de armas restritas, a cana sobe de três para seis anos.

Dados da Secretaria Estadual de Segurança Pública (SSP) indicam que, no primeiro semestre deste ano, foram apreendidas 7.958 armas no estado de São Paulo. Considerando o período, é como se quase 44 trabucos fossem apreendidos diariamente pelas polícias Civil e Militar.

Divulgar o passo a passo para se montar um trabuco também pode ser considerado crime. César pondera, porém, que, por conta da liberdade de expressão oferecida pela internet, a pessoa pode na malandragem burlar a lei: basta advertir para que a audiência "não faça isso em casa".

E vale reforçar: não façam mesmo.