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Tecnologia

Nova lei para investigação de pedofilia é um avanço, mas abre espaço para mais vigilância na internet

Com pontos pouco detalhados, projeto possui brechas que podem permitir ao governo invadir computadores de qualquer pessoa.
Pascal Walschots

O Senado aprovou, na semana retrasada, o texto final das regras que determinam como a polícia pode se infiltrar na internet durante investigações de pedofilia. Para a lei entrar em vigor, só falta a sanção do presidente Michel Temer. Oriundo da CPI da Pedofilia, o PLS 100/2010 chama atenção por ser o primeiro dispositivo jurídico a tratar de forma explícita as autorizações necessárias para policiais atuarem em ambiente virtual.

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Ninguém questiona a importância de haver um projeto do tipo. O problema é que, além de não especificar no que consistiria a infiltração, o texto possui algumas adições que não estão diretamente ligadas ao crime contra dignidade sexual de crianças e adolescentes. Para alguns especialistas, o projeto, embora importante, possui brechas que permitem o governo invadir qualquer computador de modo pouco criterioso.

"Projetos como esse, que tentam organizar a atividade policial na internet, são muito importantes. Tanto para os policiais, que poderiam temer cruzar algum limite e deixam de lado uma ferramenta, quanto para cidadãos, que ficam sujeitos a investigadores que não tem medo de passar de tais limites. Até porque, hoje, esses limites não estão claros", diz Francisco Brito Cruz, diretor do InternetLab, centro independente de estudo sobre direito e tecnologia. "Mas é problemático que isso seja realizado sem uma pormenorização do que é tolerado."

Quando aprovado pela primeira vez no Senado, em 2011, o PLS 100 previa que a operação ocorreria na investigação de crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes, como produção de pornografia, exibição, venda e compra desse tipo de material, simulações de cenas do tipo por meio de montagens, assédio, entre outros. Na quase meia década em que circulou pela Câmara, no entanto, a lista ganhou uma adição, o Artigo 154-A do código penal, mais conhecido como Lei Carolina Dieckmann, que pune quem invade outros computadores.

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Em sua definição, o texto diz que configura crime a "invasão de dispositivos conectados ou não à rede de computadores, mediante violação indevida de mecanismo de segurança e com o fim de obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem autorização expressa ou tácita do titular do dispositivo ou instalar vulnerabilidades para obter vantagem ilícita".

Por não ter relação direta com crimes contra dignidade sexual de criança e adolescente, tal trecho torna o projeto uma incógnita. Ainda que esteja inserida no contexto Estatuto da Criança e do Adolescente, o PLS 100 não especifica que crimes de "invasão do dispositivo informático alheio" precisam também estar nesse contexto para permitirem infiltração.

"Um operador de direito mais cauteloso não entenderia assim, mas não se pode duvidar que [a falta de precisão] abre uma brecha para interpretativa para que se use em vários casos", diz Francisco. Ele chama atenção para brechas semelhantes encontradas nas Leis de Organizações Criminosas e de Lavagem de Dinheiro, que permitem que investigadores tenham acesso a dados cadastrais sem autorização judicial — como é o exigido para qualquer outro crime —, mesmo que os casos em si não tenha nada ver com organizações criminosas ou lavagem de dinheiro.

Laura Tresca, oficial de Liberdade de Expressão da Artigo 19, ONG voltada à defesa da liberdade de expressão e acesso à informação, ressalta a importância do projeto, mas também teme que disposições do tipo sejam estendidas a outros campos. "Reclamamos tanto da falta de procedimentos em ações policiais e esse projeto de lei vem na contramão dessas reclamações", conta ela, que chama atenção para o fato da Convenção Americana sobre Direitos Humanos estabelecer limitações à liberdade de expressão quando direitos da infância estão envolvidos. "Agora querer estender isso para outros tipos de crime é mais complicado. [O PL] positiva práticas que não podem se estender para outros tipos de crimes", diz Laura.

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A verdade é que a maneira exata como as regras serão usadas é questão de tempo. Segundo o projeto, a infiltração só poderá acontecer após autorização judicial mediante pedido do Ministério Público ou do delegado responsável pela investigação. O prazo será de 90 dias, com possibilidade de extensão para 720 dias caso seja comprovada a necessidade. Não será autorizada se houver a possibilidade de adquirir as provas de outra forma.

Invasão do governo

Quando o PL 100 deixou o Senado, em 2011, a Lei Carolina Dieckmann ainda não existia — ela foi aprovada no ano seguinte. Durante as discussões sobre sua inclusão no rol de crimes que permitiria a infiltração para investigar pedofilia, ficou óbvio como há falta de clareza sobre o que os policiais podem de fato fazer em operações do tipo.

Os documentos da tramitação na Câmara mostram como, em dado momento, havia dúvida se a "invasão do dispositivo informático alheio" descrita no Art. 154-A deveria mesmo ser incluída no projeto. Afinal, entendiam os legisladores, a invasão estaria relacionada a uma ferramenta da infiltração, um expediente que poderia ser utilizado na investigação, e não o crime a ser investigado.

No fim das contas, a Lei Carolina Dieckmann entrou. E a possibilidade de se invadir um computador dentro do escopo da infiltração, ao que parece, também.

"O projeto de lei aprovado no Senado autoriza a infiltração de policiais na Internet com a finalidade de investigar os crimes contra a liberdade sexual de crianças e adolescentes. Assim, o agente estatal passa a agir de maneira legalmente respaldada, no estrito cumprimento do dever legal", disse por e-mail o Senador Humberto Costa (PT-PE), relator da matéria, em resposta a um pedido de confirmação sobre essa possibilidade.

Em sã consciência, a investigação da pedoflia (e punição dos responsáveis) é uma bandeira universal. Mas justamente por isso, ela costuma ser usada para aumentar a vigilância na internet, assim como o terrorismo. "As tentativas de regulação encontram esses Cavalos de Tróia", diz o diretor do InternetLab. "E sempre há o risco do devido processo legal ficar em segundo plano."