As Olimpíadas estão transformando o Rio em um Estado de vigilância e repressão
Não se engane: as centenas de câmeras, os telões, as tecnologias reconhecimento facial em massa e o bloqueio de sinal de rádio em posse das forças policiais não são ferramentas temporárias. Crédito: Vanderlei Almeida / AFP

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Tecnologia

As Olimpíadas estão transformando o Rio em um Estado de vigilância e repressão

Não se engane: as centenas de câmeras, os telões, as tecnologias de reconhecimento facial em massa e o bloqueio de sinal de rádio em posse das forças policiais não são ferramentas temporárias.

As transmissões das centenas de câmeras de vigilância do Rio de Janeiro podem ser acompanhadas em uma tela panóptica de 85 metros quadrados no Centro Integrado de Comando e Controle (CICC), ou na telona igualmente enorme do Centro de Operações Rio (COR), na capital fluminense. São verdadeiros cinemas da vigilância.

Basta dar uma olhadela nessas transmissões na hora certa para ver passar um ou dois jipes lotados de oficiais armados até o pescoço. Capaz que você até veja a polícia prender os manifestantes que estão execrando aquilo que muitos chamam de golpe contra a presidente Dilma Rousseff. Ou, quem sabe, você não flagra um militar ou policial matando um jovem negro em uma favela ou invadindo uma das dezenas de escolas ocupadas por estudantes ativistas que visam melhorar o sistema educacional brasileiro, subfinanciado.

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Essa é a sede dos Jogos Olímpicos de 2016 com início marcado para agosto. Os cariocas, assim como todos os brasileiros, é claro, não parecem muito empolgados. Legisladores usaram a série de megaeventos esportivos no país para justificar os altos investimentos em tecnologia de segurança. Mas as ferramentas que a polícia e o exército agora têm em mãos não são temporárias. São legados duradouros. E a combinação dessa tecnologia, um novo governo conflituoso e abusos contínuos a direitos humanos por parte de policiais no Brasil formam, para muitos, o desenho de um desastre.

O CICC é um centro de inteligência administrado em conjunto por várias agências brasileiras, incluindo a polícia e o exército, e tem acesso à transmissão de pelo menos 3.200 câmeras de vigilância fixas e móveis. O COR, um centro municipal, fornece dados de 560 câmeras à polícia. Apesar desses olhos onipresentes e dos milhões investidos em segurança pelo Estado e governo federal, as preocupações com segurança persistem.

CICC do Rio em abril de 2016, equipado para monitorar os habitantes da cidade em tempo real. Créditos: YASUYOSHI CHIBA/AFP

Algumas dessas preocupações têm lá seus méritos. Afinal, ninguém pode negar que as Olimpíadas representam um alvo tentador para terroristas e, recentemente, um competidor da equipe olímpica de tiro do Brasil foi baleado na cabeça por membros de gangues que simulavam uma blitz policial no Rio. Mas parte dessa preocupação toda é exagerada, especialmente se levarmos em conta o foco das autoridades brasileiras — a ameaça de"protestos violentos nas ruas".

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Está claro que protestos são prováveis ao passo que o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff segue em frente. O vice-presidente Michel Temer, agora presidente interino, empreendeu mudanças imediatas no governo. Ele dissolveu 10 ministérios, incluindo o Ministério da Cultura e o Ministério de Direitos Humanos, e convocou um gabinete de homens brancos e conservadores — o primeiro em 37 anos sem mulheres ou minorias.

Sob a tutela de Temer, novas turbulências são inevitáveis. Faz poucas semanas que o governo de Temer começou, e o Ministro do Planejamento, Romero Jucá, já foi obrigado a renunciar. O jornal Folha de São Paulo publicou gravações vazadas de conversas que sugeriam que Jucá estava tentando obstruir a Operação Lava-Jato, o que também implica Temer.

O novo Ministro da Justiça de Temer, encarregado de supervisionar a segurança das Olimpíadas, é Alexandre de Moraes. Ele não hesitou em chamar os protestos pró-Dilma de "atos de guerrilha" e não merece a proteção de "liberdade de expressão" assegurada pelo Artigo 5 da Constituição do Brasil. Não é de admirar. No cargo de Secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo, em 2014, Moraes presidiu repressão violentíssima contra os maiores protestos de rua no Brasil em 20 anos.

Desde 2013, centenas de milhares de brasileiros passaram a protestar contra os gastos da Copa do Mundo, a corrupção governamental, taxas crescentes em transportes públicos, escolas subfinanciadas, entre outros problemas. Os manifestantes enfrentaram violência policial extrema, o que resultou em pelo menos oito mortes por causa de ações das autoridades.

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O fuzilamento policial do garoto de 10 anos, Eduardo de Jesus Ferreira, no Complexo do Alemão, foi apenas um entre as centenas de assassinatos policiais que acometem as favelas ano após ano. Créditos: Dia Kayyali

A Anistia Internacional e a ONG de direitos humanos Artigo 19 publicaram relatórios que condenam a inépcia do governo frente aos protestos. Além de utilizar de forma indiscriminada armas letais e "menos letais", os policiais filmaram ativistas, monitoraram redes sociais e vigiaram seus meios de comunicação. A polícia militar chegou a tentar convencer os ativistas a liberarem suas senhas do Facebook. A Artigo 19 relatou que a polícia "criou uma base de dados de manifestantes, incluindo informações pessoais detalhadas acerca de suas opiniões e atividades. A vigilância online fez com que os manifestantes e aqueles que pensavam em se juntar a eles se sentissem vulneráveis".

Essa repressão – que ocorreu antes da chegada de tecnologias de vigilância para a Copa do Mundo de 2014 – é apenas um teaser do que o Brasil guarda nas mangas. A Copa do Mundo trouxe drones, óculos de reconhecimento facial, capazes de ler 400 rostos por segundo e compará-los a uma base de dados de até 13 milhões de imagens, e 122 helicópteros de vigilância, muitos deles equipados com câmeras HD e infravermelho.

Os protestos de 2013 foram monitorados pelos CICCs, outro legado da Copa do Mundo. O CICC do Rio de Janeiro é um entre muitos — cada estado tem o seu. O Rio também está prestes a abrir quatro novos CICCs "setoriais", próximos às arenas olímpicas. Todo CICC oferece transmissões de várias camadas de informações, incluindo atividades em redes sociais, sensores de tráfego e mais. Estão conectados a uma vasta rede de câmeras, de até 4 mil aparelhos, que pode ser controlada diretamente do centro. Durante as Olimpíadas, cada arena terá seu próprio centro de segurança integrada, e todos serão coordenados pelo CICC de Brasília.

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A professora Fernanda Bruno, pesquisadora da Universidade Federal do Rio, apresentou parte de seu trabalho sobre o CICC e a COR em um seminário recente em São Paulo sobre vigilância e privacidade. Ela mostrou ao público como, ao utilizar o sistema da IBM no COR, um operador pode, num piscar de olhos, selecionar uma área específica de um mapa e ler todos os tuítes dali. A interface que ela demonstrou é tão simples quanto o Google Maps, e não é difícil de imaginar como as autoridades policiais podem se aproveitar disso durante protestos.

E não para por aí. A polícia conta com pelo menos 27 CICCs móveis, equipados com seis câmeras móveis, vigilância de áudio e outras sobras da Copa do Mundo. O Rio também comprou quatro "balões de monitoramento", com 13 câmeras cada um, que enviam imagens ao CICC à longa distância. Os balões funcionam a 200 metros acima do nível do mar e cobrem uma área de 10 quilômetros quadrados, permitindo que a polícia examine multidões com facilidade. E podem ficar até 72 horas no ar.

Cartaz em uma escola ocupada. Créditos: Dia Kayyali

Mais preocupante que toda essa parafernália, contudo, é a agência nacional de telecomunicações, a Anatel, ter aprovado o eventual bloqueio de sinais de rádio por parte do exército. As regulamentações tramitam em sigilo, talvez para disfarçar o uso planejado de aparelhos de rastreamento, também conhecidos como dispositivos de captação de IMSI. Esses aparelhos são simuladores disfarçados de torres celulares que se conectam a telefones para obter a localização do usuário, interceptar comunicações e mais. (A empresa Harris Corporation, fabricante mais conhecida de dispositivos de captação de IMSI, foi responsabilizada por interferir nos pedidos da Lei de Liberdade de Informação ao redor dos Estados Unidos, e um jornalista brasileiro, também colaborador do Motherboard Brasil, me disse que basta entoar as palavras "Harris Corporation" perto de um oficial do exército americano para cortarem todas as comunicações com ele.)

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Embora defenda que o foco da regulamentação da Anatel sejam os drones, o exército já confirmou que bloqueará celulares "caso seja necessário". Essa tática já foi utilizada para bloquear comunicações em protestos antes. Se as transmissões ao vivo das Olimpíadas (ou dos protestos que ocorrerão na época) no Twitter caírem sem explicação — ou se você não conseguir completar ligações —, agradeça a Anatel.

Os planejadores das Olimpíadas no Brasil, claro, minimizaram as preocupações com segurança e agitação social no país. André Rodrigues, Secretário Extraordinário de Segurança em Megaeventos do Minstério da Justiça, declarou em abril: "Tenho certeza que os Jogos serão seguros, tranquilos e repletos de celebração e alegria".

Mas se você perguntar aos manifestantes da cidade, estudantes colegiais e moradores das favelas, as palavras "segurança, tranquilidade, celebração e alegria" são as últimas coisas que passam pela cabeça deles. Ninguém está muito contente com as Olimpíadas, conforme é possível ver em cartazes espalhados pelas escolas ocupadas e em organizações comunitárias em favelas que reagem às remoções forçadas da população para construírem instalações olímpicas. A polícia intensificou as batidas armadas e violentas nas favelas. Ativistas contra o impeachment foram recebidos com spray de pimenta e detenções.

Isso costumava ser um laboratório de química em um colégio do Rio. Ainda está em ruínas, ao passo que os alunos vivem amontoados em salas lotadas. Créditos: Dia Kayyali

Nas últimas semanas, a polícia intensificou a repressão política das ocupações em escolas. Estudantes estão ocupando as escolas do país para protestar contra cortes orçamentários em um sistema educacional que precisa de todo e qualquer centavo. Em uma ocupação que visitei — uma escola com espaços enormes sem uso que mais parecia cenário de filme pós-apocalíptico —, um estudante me contou que "os adultos acham que queremos apenas nos divertir. Sabemos que as coisas talvez não mudem logo de cara, mas não estamos fazendo isto por nós. Estamos fazendo isto pelo futuro." Eles citam salas lotadas, matérias não oferecidas e outros mil problemas.

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Os estudantes relataram um incidente em que policiais apontaram armas entre os portões da escola até conseguirem entrar e, não satisfeitos, tentaram prender um professor. Depois de enfrentar estudantes que insistiram na resistência ("Se nos prenderem, terão que prender todos aqui"), a polícia foi embora, mas não sem tirar fotos de todos os presentes. Em outras escolas, tropas de choque da polícia militar, equipados com escudos e sprays de pimentas, lideraram processos violentos de despejo, às vezes sem mandados legais.

O que é mais perturbador é que, para muitos estudantes envolvidos nas ocupações, isso tudo está dentro das expectativas. Um estudante me contou que, na última vez que apanhou dos policiais, ficou contente "porque usaram apenas as mãos" em vez de coronhadas.

Estudantes não são as únicas pessoas insatisfeitas no Rio. O ativista Anderson Goncalves, do Complexo da Maré, me contou que não estava particularmente interessado na tecnologia de vigilância pois "o que mais nos preocupa é o genocídio de jovens negros das favelas… todos esses gastos em segurança poderiam ser investidos em projetos sociais nas favelas". Ele também observou: "Pessoas que não convivem com a realidade das favelas precisam entender que nas favelas a única presença do Estado se dá por meio da polícia."

Nessa atmosfera, todas as novas tecnologias do governo se multiplicarão, sem dúvidas, como forma de repressão e vigilância. As condições tendem a piorar com Temer — os membros de seu gabinete já indicaram, sorrateiramente, que programas sociais essenciais, como o Bolsa Família serão mantidos "apenas para pessoas que realmente necessitam", e um programa de habitação do mandato de Dilma já foi cortado. O país está afundando, mas os brasileiros já mostraram que estão dispostos a tomar as ruas.

É uma receita pronta para uma repressão política, o que remonta à era brasileira de ditadura militar, entre os anos 60 e 80. E se o mundo virar as costas para o Brasil e permitir que os abusos aos direitos humanos continuem após as Olimpíadas, essa era pode retornar.

Tradução: Stephanie Fernandes