Esta startup acredita que você trabalhará de graça para estranhos
Image: Boris Thaser/Flickr

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Tecnologia

Esta startup acredita que você trabalhará de graça para estranhos

Junte-se à revolução gratuita.

Em dezembro do ano passado, uma startup apareceu no Twitter convidando seus usuários a "se juntar à revolução".

Sigo uma série de comentaristas políticos, alguns idealistas e outros irritantes, então aquela chamada não parecia deslocada. O problema foi que o tuíte gerou tantas reações de ódio, desgosto e descrença que não deu para ignorar. A postagem era de uma empresa chamada Freesist cuja "revolução" consistiria em desejar que trabalhemos de graça.

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Pois é. Na plataforma Freesist, usuários são encorajados a trocar solicitações de trabalho. O raciocínio é simples: ganha-se pontos com cada tarefa completada. Estes podem ser gastos com as suas solicitações de serviços de terceiros. No mundo ideal dos criadores do projetos, as tarefas são especializadas o suficiente para exigirem a mão-de-obra de um freelancer e de importância tão pequena que não justifique o pagamento em dinheiro. Entre os exemplos dados por eles: textos curtos em língua estrangeira ou a solução de problemas de programação dentro de um código já criado.

A empresa não teve muita sorte até o momento. Seu lançamento foi uma bagunça. Fora isso, não ajudou nada a abordagem predatória inicial da empresa: "O Freesist possibilita a você encontrar freelancers dispostos a trabalhar de graça".

O site tem como público-alvo pequenos negócios, bem como estudantes em busca de maior experiência. "Não estamos falando para os freelancers trabalharem [somente] de graça", disse-me Basil Farraj, CTO e cofundador da Freesist, via Skype. "Respeitamos o trabalho de todos e sabemos que cada um é diferente. Digamos que você é freelancer e ganha pra isso, talvez ainda te sobrem uma ou duas horinhas semanais nas quais você poderia empregar suas habilidades gratuitamente."

O site está em modo beta atualmente. Vou até lá, crio um perfil simples e listo minhas habilidades como redação, redação criativa e redação corporativa. Logo encontro alguém em busca de redatores criativos, mas no final das contas era o próprio Farraj.

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Claro que toda empresa tem que dar um jeito de se manter, focaremos nisso mais adiante…

A maior parte das solicitações no site vem da equipe da própria Freesist, o que atrapalha meus planos de testar o serviço. Não há base de usuários ainda – durante os dias que visitei o endereço, havia cerca de quatro a cinco solicitações diárias – mas vários problemas já começam a aparecer. Uma dúvida é como a Freesist planeja lucrar algo – a empresa em si ainda não tem investidores (o que leva a outra pergunta: será que o site Freesist.com foi feito de graça?) e nem planeja adotar um modelo de pagamento por uso. Quando questiono-o, Farraj é otimista: "Claro que toda empresa tem que dar um jeito de se manter, focaremos nisso mais adiante".

Outro problema é a moderação: e se os usuários discordarem de algo em suas transações? Não há proteção alguma em um escambo? Não existe opção para denunciar usuários, mas Farraj e o CEO da empresa Kfir Zaltsman afirmam planejar algo nesse sentido para breve.

Caso haja algum desentendimento após um trabalho ser completado, o usuário que entregou o serviço receberá seu ponto ao passo em que o cliente insatisfeito terá seu ponto reembolsado. Tal tática arrisca desvalorizar o seu próprio sistema, supondo que seus usuários agirão de boa fé, o que parece ser um tema subjacente a todo o conceito – no final das contas, o Freesist espera que os usuários façam seus negócios sem abusar do sistema.

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Há uma falsa afirmação no coração de projetos como o Freesist, a de que a permuta faz parte da natureza humana. Não faz mesmo: estudos recentes sugerem que a economia de escambo nunca existiu, tratando-se de uma teoria criada pelo filósofo do Séc. XVIII Adam Smith. O Freesist trata de citar o mesmo mito em sua página:

Antes da invenção do dinheiro, as pessoas trocavam todo tipo de coisas: vegetais, lã, carne etc. Na era digital, este escambo segue como opção. Fazemos isso o tempo todo sem nem perceber. O Freesist pode oferecer uma alternativa às práticas de consumo dos dias atuais.

Talvez não seja fato histórico, mas o escambo pode ser bom? Não seria altruísmo demais confiar num estranho? Um dos pedidos do site atualmente é de alguém que busca "conselhos para a vida". Como se quantifica um trabalho como este sem que alguém acabe sendo passado para trás?

Será que as pessoas serão "boas" o bastante para trabalhar de graça para estranhos?

"Acreditamos que, basicamente, pessoas são boas", disse Farraj. "Mas teremos que aprender sobre nossos usuários e ordenar tudo de forma que fiquem à vontade. Muitas empresas sofrem com usuários falsos ou gente mentirosa e é algo que aprenderemos a lidar enquanto a empresa cresce."

Ao não falar de dinheiro, será que o Freesist conseguirá não desapontar seus usuários? Será que as pessoas serão "boas" o bastante para trabalhar de graça para estranhos?

Cabe lembrar de uma startup semelhante que teve um lançamento desastroso em 2014: a Runaview se vendia como uma rede de streaming de comédia em que celebridades e veículos poderiam "se promover de graça" (ou seja, produzir conteúdo sem receber nada por isso). A empresa acabou sendo atacada por Dom Joly, comediante britânico que afirmavam ser seu porta-voz.

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Hoje, tudo que resta da Runaview é cobertura negativa na mídia, delineando um site que parece bastante com as redes sociais que temos hoje: uma plataforma em branco, povoada por seus usuários. É esta característica que une Facebook, Twitter e sites como o Freesist: todos pedem que seus usuários trabalhem sem receber nada, mas apenas um deles é sincero quanto a isso.

Não é preciso dizer que nós somos o produto em qualquer serviço online gratuito que usamos. Damos ao Facebook nossos dados ao permanecermos logados. Geramos lucros para o Google ao usar seus produtos. Anunciantes lucram conosco andando por aí enquanto usamos nossos celulares.

Trabalhar de graça tem ficado cada vez menos chocante. Uma pesquisa realizada recentemente no Reino Unido mostra um aumento em horas extra não-remuneradas. O mesmo estudo revela foi pedido a pelo menos 70% dos freelancers para trabalhar de graça em algum projeto (jovens abaixo dos 25 anos eram os que mais aceitavam este tipo de trabalho).

Ainda assim, nada deveria naturalizar esse negócio de trabalhar de graça. Millennials em especial são freelancers vulneráveis. Depois de estágios intermináveis e trabalhos "só por experiência", eles se tornaram alheios ao próprio valor.

É interessante como a tecnologia se esforça para esconder seus custos: tragados por meio de botões de clique único, compras in-game e assinaturas mensais, quanto mais "integrados" nossos gastos, mais fácil para as empresas lucrarem. Em alguns momentos, é como se a internet fosse um cassino e toda nossa grana fossem fichas; em outros, parece que é tudo de graça.

Isso corresponde a como os fundadores de startups tratam seus trabalhos: você "faz o que ama", então as horas não contam. Só uma startup mesmo poderia pensar em algo como trabalhar sem grana alguma porque, no País das Maravilhas, qualquer "valorização" é semificcional. Entre investimentos e busca por fundos sem fim, a cultura de startups trata o dinheiro como viciados em jogo o fazem: ou tem muito ou não tem nada.

Não cabe a startups "revolucionarem" o trabalho porque elas não sabem como o cotidiano do trabalhador funciona. O Freesist não tem nada de "revolucionário". É, na verdade, um sintoma de um problema que começou lá atrás com a automação, com a "Uberização" e, por fim, com a erosão dos direitos trabalhistas.

Talvez em breve dinheiro não seja algo tão importante num mundo sem empregos. Todos ficaremos em casa usando o Freesist, trabalhando de graça, repassando tudo que fazíamos em nossos antigos empregos remunerados.

Tradução: Thiago "Índio" Silva