​Por dentro da fábrica de mosquitos transgênicos que promete acabar com a dengue
Acompanhamos de perto a produção de milhões de insetos que possuem a espinhosa missão de diminuir a proliferação do Aedes aegypti selvagem pelo país. Crédito: Lucas Jacinto

FYI.

This story is over 5 years old.

Tecnologia

​Por dentro da fábrica de mosquitos transgênicos que promete acabar com a dengue

Acompanhamos de perto a produção de milhões de insetos que possuem a espinhosa missão de diminuir a proliferação do Aedes aegypti selvagem pelo país.

"Vocês apresentaram sintomas de dengue, chikungunya ou zika nos últimos dez dias?", pergunta uma mulher pouco antes de entrarmos na linha de produção de um imenso galpão em Piracicaba, no interior de São Paulo. Todos os visitantes se entreolham, surpresos. "Caso sim, não entrarão. Podem infectar os mosquitos."

Quando todos confirmam estarem livres de suspeitas, continuamos a caminhada. Estamos na primeira fábrica brasileira de grande escala de mosquitos e, por ali, a saúde é algo bem sério. A matéria produzida é um inseto de nome de ficção-científica, o OX513a, o Aedes do Bem, uma espécie alterada geneticamente de Aedes aegypti. Seu objetivo é, ao se misturar com os Aedes comuns, espalhar o material modificado e erradicar febre amarela, dengue, chikungunya e zika.

Publicidade

Larvas e pupas do OX513a. Crédito: Lucas Jacinto

O processo é quase simples. O macho transgênico possui um gene dominante que, ao cruzar com uma fêmea selvagem, mata os descendentes ainda no estágio larval. Deste modo, uma ninhada inteira – que pode chegar até a mil ovos em um mês – morre antes de chegar à vida adulta e sem prejudicar o ambiente.

Ao ver o OX513a na fábrica, dá para dizer que é idêntico ao selvagem. A diferença fica com duas alterações genéticas. A primeira é a proteína DsRed2, que faz com que as larvas do mosquito brilhem no escuro e facilita sua identificação e controle. A segunda e mais importante é a proteína tTAV (Tetracycline-controlled transactivator), que faz com que o mosquito a replique em excesso e mate os descendentes na fase larval. "É como se fosse gordura acumulada na veia de uma pessoa. Ela está no lugar errado, não tem uma função ali e vai se acumulando até que provoca um infarto. No caso do mosquito, as células dele param de funcionar", explicou Karla Tepedino, coordenadora de produção da fábrica.

Pelo galpão, Karla, uma mulher alta e de tom professoral, descreve o processo desde o início. Ela explica que, para viabilizar a produção em larga escala, larvas do mosquito são expostas ao antibiótico Tetraciclina. "Neste caso ele não funciona exatamente como antibiótico, o que faz é inibir a ação do gene autolimitante de uma forma segura, pois a degradação dessa substância é bastante rápida", diz. A substância é aplicada ainda no começo do processo e permite que os mosquitos cheguem até a fase adulta.

Publicidade

Pupas macho e fêmea sendo separadas para a criação. Crédito: Lucas Jacinto

Essa fase inicial acontece em uma sala com várias bandejas cheias de água parada. Diferentemente de vasos e pneus jogados no ambiente, em que a ideia é não deixar nenhuma possibilidade para o desenvolvimento do Aedes, o objetivo ali é que o maior número de larvas cresçam saudáveis e se tornem pupas. O ambiente guarda dezenas de bandejas, cada uma delas com cerca de 50 mil larvas de mosquito.

O espaço não possui grandes contrastes: bacias bege, paredes brancas, equipamentos metálicos. A assepsia visual destoa do mau cheiro da sala. Um tanque de quase dois metros de altura, a fonte do fedor, distribui ração de peixe para bandejas contendo as larvas. "No primeiro dia do processo adicionamos a Tetracilcina à água para garantir a sobrevivência das larvas. No restante dos oito dias que elas levam para virar pupas colocamos apenas a comida", contou a coordenadora de produção enquanto mosquitos que voavam no ambiente zumbiam em seus ouvidos. "Essa é uma das salas mais chatas que temos aqui, o tempo de maturação das larvas varia um pouco então alguns apressadinhos acabam se tornando adultos antes da hora", explicou, com sorriso resignado.

Uma das gaiolas utilizadas para a criação dos mosquitos, a maioria aqui são fêmeas. Crédito: Lucas Jacinto

Apesar de todo o cuidado dispensado aos insetos durante a produção, toda a fábrica é munida de raquetes elétricas. "Se eles incomodarem demais, pode ficar à vontade para matar, uma vez que eles estão fora da gaiola já não são considerados mais produtos", explicou. Não pude contar com exatidão, mas estimo que 100 mosquitos voavam pela sala e escapavam de minhas mãos.

Publicidade

Ao lado, separada por uma porta automática, fica o ambiente onde as pupas são separadas das larvas. Os machos chegam a este estágio ao final de oito dias enquanto as fêmeas demoram pouco mais para se desenvolver. "Essa característica é natural dos mosquitos, é uma forma que a natureza encontrou de evitar que as fêmeas cruzem com os machos da mesma linhagem", diz a coordenadora de produção.

A alimentação das fêmeas chegando, sangue. Crédito: Lucas Jacinto

O processo de separação é tipo peneiração. Pupas e larvas são colocadas em um tipo especial de gaiola e afundados na água. Como as larvas são menores, elas acabam passando pelas grades e buscam a superfície para poder respirar. Com a primeira peneiração completa, o processo é refeito só com as pupas. Dessa vez, são as pupas-macho que buscam pelo ar. As fêmeas, maiores que os machos, são descartadas na maioria das vezes; apenas uma parte delas é aproveitada para reprodução dos mosquitos. "Depois das filtragens analisamos a amostra na lupa, o máximo permitido é de 0,2% de contaminação de fêmeas entre os machos", contou.

Uma vez separadas, as pupas são levadas para um galpão cheio de gaiolas de pouco mais de dois metros de altura, onde a temperatura é mantida pouco acima de 28°C.

Elas são colônias, onde os mosquitos se reproduzem e as fêmeas colocam os ovos que servirão para manter a produção da fábrica. Cada uma delas possui em média 200 mil mosquitos numa proporção de três fêmeas para cada macho. Além da água com açúcar utilizada para a alimentação de todos, também é colocado sangue de carneiro desfibrinado para as fêmeas duas vezes por semana. O sangue é necessário para a formação dos ovos.

Publicidade

Ovos do OX513a. Crédito: Lucas Jacinto

Os mosquitos ficam nestes criadouros por até quatro semanas. É um tempo longo se comparado com os quatro dias que eles sobrevivem soltos na natureza. "Aqui eles sobrevivem mais pois as condições em que armazenamos eles são ideais", diz Karla. Dentro da bandeja é adicionado um papel com superfície rugosa para que os ovos sejam colocados ali. Mais tarde esse ovos são recolhidos e armazenados em tubos plásticos contendo cerca de 50 mil ovos cada um. "Este é o estado ideal para armazená-los, pois os ovos podem sobreviver por até um ano", completou.

Transporte dos mosquitos feito por Piracicaba. Crédito: Lucas Jacinto

Do outro lado da fábrica fica a área onde os machos do controle biológico são produzidos. Aqui eles são mantidos em potes semelhantes aos usados para vender paçocas. Leva de três a sete dias para que se tornem mosquitos adultos. Uma vez que atingem seu desenvolvimento completo, a água é drenada e eles estão prontos para ser soltos no ambiente para que acasalarem.

Pós-acasalamento entre selvagens e transgênicos

Os ovos resultantes do cruzamento dos Aedes do Bem com os mosquitos selvagens não chegam à fase adulta, isto é, morrem na fase larval. "As fêmeas dos mosquitos se reproduzem com apenas um macho durante a vida, pois depois do primeiro cruzamento a espermateca do macho lacra a vagina da fêmea, não permitindo que ela acasale com outros", observou o coordenador de operações de campo da Oxitec, Guilherme Trivellato, enquanto se dirigia para o carro que seria utilizado para espalhar os mosquitos no bairro de São Judas, em Piracicaba. Todos os dias, exceto aos domingos, a van da empresa circula pelas ruas da cidade soltando os insetos.

Publicidade

Aplicativo indicando os locais de soltura do mosquito. Crédito: Lucas Jacinto

Ao abrir a porta da van, Trivellato, mostrou centenas de potes cheios de machos que seriam soltos nas horas seguintes. Cada um continha entre 500 e 1000 mosquitos. Naquela volta seriam poucos mosquitos liberados, apenas 250 mil, bem menos do que a capacidade de 800 mil do veículo. Com os cintos de segurança afivelados, não demorou muito para o que a van começasse a seguir o trajeto assinalado por pontos vermelhos na tela de um tablet.

Ao passar por cada um destes pontos, Trivellato abria um pote e soltava os mosquitos por meio de um tubo instalado na janela do carro. "Os Aedes aegypti não voam por grandes distâncias, em média, eles circulam em uma área entre 100 e 250 metros de diâmetro", explicou Trivelato ressaltando a razão pela qual a abertura de cada pote ser feita em curtos intervalos de tempo durante o trajeto.

Apesar do passeio com os mosquitos ser atribulado por causa de buracos e quebra molas nas ruas, o coordenador de operações de campo comemora o conforto da van. "Você precisava ver como a gente soltava os mosquitos na Bahia, a gente ia na caçamba aberta da caminhonete", contou ele, sem muita saudades. No ano de 2012, o Aedes do bem foi testado nas cidades de Juazeiro e Jacobina, ambas na Bahia. Na época, a pesquisa foi feita em parceria com a Organização Social Moscamed.

Guilherme Trivellato soltando os mosquitos. Crédito: Lucas Jacinto

Outra evolução que Trivellato apontou das primeiras tentativas do projeto até hoje é a interação com a população dos locais onde os insetos são soltos. "Em Jacobina a gente cometeu o erro de soltar os nossos mosquitos à noite e sem ter feito uma comunicação clara com a população, o que não foi uma boa ideia pois o baiano é bravo", contou, entre risos.

Em Piracicaba, Trivellato conta que foi feito extenso trabalho de divulgação do mosquito. Segundo os dados divulgados pela Oxitec, a empresa britânica responsável, a redução de casos de dengue em no bairro de CECAP/Eldorado foi de mais de 91%. Além disso, a divulgação deixa bastante claro um ponto importante em relação aos mosquitos que são soltos pela cidade: os machos não picam.