​Por dentro de um grupo de WhatsApp dedicado ao estudo da psicodelia
Primeira e única regra: não é permitido usar o espaço para negociar a compra e venda de substâncias psicoativas. Crédito: William Struby/ Flickr

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​Por dentro de um grupo de WhatsApp dedicado ao estudo da psicodelia

Primeira e única regra: não é permitido usar o espaço para negociar a compra e venda de substâncias psicoativas.

—Quantos comprimidos de Buscopan eu poderia tomar para ter uma trip?

—Que é isso, bicho…

Às quatro horas da tarde de um domingo, quando bate aquele tédio existencial pós-almoço, perguntas desse tipo começam a pipocar no meu WhatsApp. Já estou acostumado a recebê-las, entre as mensagens de "boa tarde" no grupo da família e meia dúzia de correntes contra a PEC 241. Não costumo ter nenhuma resposta—"que é isso, bicho" me parece bastante adequado, mas prefiro ficar calado. Sou apenas um observador: um membro silencioso num grupo de WhatsApp dedicado à discussão de substâncias psicoativas.

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Criado há dois anos por Alef Friedrich, um caçador de cogumelos mágicos, o grupo reúne pessoas de todo o Brasil interessadas em compartilhar conhecimentos sobre LSD, cogumelos e psicodelia em geral. "Para mim o importante é espalhar o conhecimento sobre as substâncias psicoativas e, por meio dessa troca, aprender mais sobre elas", diz Alef. "Mesmo com os cogumelos sendo muito estudados hoje em dia, ainda vejo que há muita falta de informação."

Conheci Alef e seu grupo há cinco meses, quando estava escrevendo sobre o mapa colaborativo dos cogumelos mágicos no Brasil. Desde então, tenho conversado com ele e alguns membros do grupo para entender melhor uma das dezenas de comunidades secretas em que usuários de substâncias psicoativas compartilham experiências e conhecimento.

Para quem sabe onde procurar, há uma enorme quantidade de sites e fóruns sobre psicodelia na internet. Encontrar fontes confiáveis, porém, nem sempre é uma tarefa fácil. Para novatos, isso pode ser um grande problema. Algumas substâncias psicoativas podem ser extremamente tóxicas. Muitos cogumelos mágicos têm primos venenosos parecidos e potencialmente letais. Uma informação imprecisa pode fazer a diferença entre uma viagem relaxante no domingo e uma visita de emergência ao hospital.

Quando a margem de erro é tão pequena, confiar em qualquer informação disponível online não é uma boa estratégia de sobrevivência. Essa é a razão para que haja comunidades como o grupo criado por Alef, que permitem que usuários veteranos aconselhem novatos, tirem dúvidas e discutam suas experiências.

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"O interesse principal é a troca de informações. Ao mesmo tempo, partilhamos experiências e conhecemos pessoas pessoas com o mesmo interesse e novos pontos de vista", diz Alef.

O grupo tem apenas uma regra: não é permitido usá-lo para negociar a compra e venda de substâncias psicoativas. "Algumas pessoas já foram alertadas e banidas do grupo por esse motivo", diz Samara Oliveira, uma das veteranas do grupo. "Eu particularmente não vejo problemas, mas infelizmente a comercialização de muita coisa ainda é ilegal no Brasil."

Comércio à parte, a discussão é liberada. Há dúvidas e respostas sobre inúmeros aspectos do universo da psicodelia. Um novato pede ajuda para ressuscitar um pé de maconha. Outro pede recomendações de dosagem para sua primeira viagem de LSD. Um aprendiz de caçador de cogumelos manda fotos de espécimes para o grupo e pede ajuda para identificar quais são venenosos e quais podem ser consumidos. Os veteranos costumam responder rápido e dar orientações para garantir que os novatos tenham uma viagem segura. Não é incomum encontrar diálogos como este:

—Quanto de noz moscada preciso tomar para ficar loko?

—Mano, não faça isso. É algo entre a intoxicação e a morte. Onda horrível. Tem muita coisa melhor e acessível.

Tanto os novatos quanto os veteranos têm o hábito de compartilhar histórias de suas experiências. Embora haja elementos em comum, cada relato é absolutamente único: nos quatro meses que passei no grupo, li histórias suficientes para me convencer de que não há duas viagens iguais.

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Alguns relatos são leves e engraçados:

"Ontem tomei um papel e fumei uns em cima. Daí pensei que era um robô alienígena e andava igual o ET do filme ET."

"Tomei uns cogu hoje. Está massa. O chão estava vibrando. Na hora em que fumei um por cima, começou a dar umas cores da hora. E meus dedos entravam na carteira…"

Outros, mais transcendentais, esbarram na espiritualidade:

"Gente, tive uma experiência muito boa com cogumelos hoje. Foi bem intensa . Tô muito aliviado da correria que está sendo minha vida. Foi uma experiência renovadora que acalmou minha mente… minha aura… Meu subconsciente."

"Estava precisando de um conselho dos cogumelos. Minha trip foi um completo desabafo da minha mente tumultuada. Logo vieram as cores, desenhos, sentimentos, pensamentos, sensações, uma expansão de uma mente que já estava sobrecarregada do dia-a-dia.

Muita reflexão sobre coisas que no início não tinham o menor sentido, mas logo essa coisa se encaixa numa linha de pensamentos que resolve alguns de seu problemas que no seu dia-a-dia você não vê um jeito normal de resolver. Foi muito aprendizado."

Se não existem duas viagens iguais, também podemos dizer o mesmo dos viajantes. Cada membro do grupo busca as substâncias psicoativas por motivos diferentes. Alguns querem relaxar e dar risada. Outros querem expandir os limites de sua consciência. Há os que veem a psicodelia como forma de recreação e os que a enxergam como algo sagrado; uma forma de espiritualidade.

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A filosofia de vida de cada veterano influencia as respostas que eles dão aos novatos. Na semana passada, um usuário pediu dicas de como aproveitar a viagem depois de misturar LSD e cogumelos (atenção, crianças: não tentem isso em casa). "Fica em paz e curte a brisa com humildade e respeito que vai tranquilo", disse um veterano. "Assista a uns filmes de comédia, racha de rir", disse outro, provocando protestos de um terceiro usuário: "Não compartilho dessas coisas superficiais na hora da experiência. Respeito em primeiro lugar."

Apesar de haver discordâncias aqui e ali, quem usa cogumelos para expandir os limites da consciência também pode acabar relaxando e dando risada. E vice-versa: há quem experimente algo para relaxar e acabe tendo uma experiência quase sobrenatural. O mesmo sujeito que vê filmes de comédia sob o efeito de alucinógenos e se sente como um robô alienígena descreveu uma de suas viagens como "uma dessas experiências de quase morte, quando a alma sai do corpo". Não há nenhum antagonismo entre os usuários recreativos e quem busca os cogumelos por motivos mais transcendentais. Dividi-los assim, aliás, talvez seja uma simplificação. Mesmo que suas visões de vida e personalidades sejam muito diferentes, a camaradagem reina entre os companheiros de viagem.

A maioria das conversas não chega a conclusão alguma—como acontece, aliás, em qualquer grupo de WhatsApp, com ou sem consumo de substâncias psicoativas

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Em muitos aspectos, a comunidade psicodélica criada por Alef é como qualquer outro grupo de WhatsApp. Há mensagens de bom dia, correntes, memes e longos períodos de silêncio seguidos por discussões intermináveis. As correntes são as mesmas que você vê em qualquer grupo: a da PEC 241 também chegou lá, embora não tenha rendido muita discussão. As mensagens de bom dia são um pouco diferentes das que você veria num grupo de família. "Bom dia, viajantes de realidades paralelas", disse Alef há alguns dias. Em resposta, recebeu um "bom dia" e uma foto de um baseado feito no capricho, "para abrir o apetite". Os memes que circulam pelo grupo são um capítulo à parte, cheios de imagens psicodélicas e piadas internas sobre o efeito das mais diversas substâncias.

Como era de se esperar num ambiente cheio de mentes estimuladas, as discussões filosóficas entre os membros do grupo poderiam render um tratado de antropologia. Algumas mensagens são compreensíveis para leigos num estado de sobriedade. Outras talvez só façam sentido para quem já esteve (ou ainda está) sob efeito de alguma substância. Colecionei algumas delas durante os últimos meses como membro do grupo. Como sou apenas um observador isento, não tenho nenhum comentário a fazer sobre elas. Mas decidi selecionar minhas favoritas e classificá-las por grau de dificuldade de compreensão:

MODO FÁCIL

—O campo energético existe, velho, isso é fora de discussão. Tudo o que a gente faz envolve energia, sendo negativa ou positiva.

MODO INTERMEDIÁRIO

—Andei pensando. Todas as civilizações de antigamente tem motivos para crer em deuses. Cada coisa que eles usavam… Eles realmente viam.

MODO DIFÍCIL

—E esse despertar da consciência humana, vocês já sentiram as mudanças da era de aquário sobre o mundo?

—Haha já senti isso.

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—Muito incrível, né? Só observo essas mudanças se desdobrando.

MODO EXPERT

—Eu queria ser um papel.

A maioria das conversas não chega a conclusão alguma—como acontece, aliás, em qualquer grupo de WhatsApp, com ou sem consumo de substâncias psicoativas. Normalmente as discussões acabam junto com a viagem. Algumas são retomadas no próximo domingo de tédio; outras se perdem no histórico de mensagens. Também há muitas conversas que se repetem: ao contrário de um fórum ou uma página no Facebook, novatos não têm acesso fácil ao que já foi discutido. Daqui a algumas semanas provavelmente alguém voltará a perguntar sobre Buscopan, noz moscada e afins. Os membros do grupo não se importam. Estão lá para garantir que todos tenham uma experiência segura, e para compartilhar a viagem com pessoas que têm interesses em comum.

"Fiz amizades lindas no grupo e sou muito grata por isso", diz Samara. "Aprendemos com os que sabem mais e com as experiências alheias. Isso evita que estejamos expostos a riscos que poderiam ser fatais por algo tão simples como a falta de informação."