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Tecnologia

As poucas verdades sobre o Baleia Azul

Como a relação conturbada entre creepypasta, histeria na mídia, fake news e suicídio adolescente criou um monstro intercontinental.

(A primeira versão deste artigo foi publicada na Motherboard Itália)

Em 14 de maio de 2017, um episódio do programa satírico da televisão italiana Le Iene transmitiu uma reportagem sobre o jogo (ou desafio) Baleia Azul, um jogo online que ganhou vida em diversos fóruns e grupos do VKontakte, a rede social mais popular da Rússia. Os jogadores compartilhavam fotos e vídeos de lesões autoinflingidas cada vez mais graves.

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Segundo um artigo do jornal russo Novaya Gazeta, existe uma relação entre o jogo Baleia Azul e os diversos casos de suicídio adolescente na Rússia, Cazaquistão e Quirguistão, ocorridos de novembro de 2015 a abril de 2016. As vítimas eram membros de grupos do VKontakte dedicados ao jogo. Contudo, em pelo menos um dos casos citados — o suicídio de Marat Aitkazin, uma garota cazaque de 19 anos de idade — não foi possível confirmar o teor dessa relação. Análises mais profundas do fenômeno Baleia Azul, inclusive, destoam da história chocante do Novaya Gazeta, e apontam, na verdade, para a tempestade perfeita de creepypasta, histeria na mídia e um problema real muito sério: suicídio adolescente.

A história logo estourou na mídia e chegou à Europa com um tom alarmista, a ponto de levar o programa televisivo de comédia Le Iene a discuti-la. Ainda é preciso separar a histeria em massa do perigo genuíno do fenômeno.

Imagem via The Siberian Times

O primeiro suposto caso do jogo Baleia Azul ocorreu em 2015, quando Rina Palenkova, uma garota russa de 17 anos, compartilhou uma selfie no VKontakte logo antes de se jogar na frente de um trem. Assim como no caso de Marat Aitkazin, nada sobre Palenkova está certo: aconteceu antes das pessoas ouvirem falar do jogo e antes das regras pipocarem nas redes, mas a selfie da garota virou espécie de meme em fóruns dedicados a depressão e suicídio.

Foi só em 2016, com a publicação da reportagem do Novaya Gazeta — que declarou que o jogo havia sido responsável por outros 130 casos de suicídio entre adolescentes russos —, que a Baleia Azul virou notícia na Rússia.

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Leia também: Por que as taxas de suicídio entre jovens seguem crescendo no Brasil?

Entre todos os casos, o que mais ecoou na mídia foi a história de Yulia Konstantinova, 15 anos, e Veronika Volkova, 16. No fim de fevereiro, ambas se jogaram de um prédio de 14 andares em Ust-Ilimsk, uma pequena cidade na região Irkutsk, no leste da Sibéria. Poucos dias antes, Konstantinova havia postado a imagem de uma baleia azul no Instagram, ao passo que Volkova compartilhou mensagens depressivas. De acordo com o jornal Siberian Times, os dois garotos que filmaram o ato foram presos no local do incidente por incitação ao suicídio.

Em novembro de 2016, um dos supostos fundadores do jogo, um estudante de psicologia de 21 anos chamado Philipp Budeikin, também foi preso por incitação ao suicídio. Em uma entrevista, Budeikin refutou os números relatados na pesquisa do Novaya Gazeta — e confessou ter induzido, pessoalmente, 17 dessas pessoas ao suicídio.

"Existem pessoas e existe a escória, isto é, pessoas que não agregam valor algum à sociedade, e que só causam danos. Varri essas pessoas da sociedade", Budeikin disse. "Começou em 2013. Criei o F57 [um dos grupos do VKontakte em que o jogo ganhou vida] para ver no que daria. Tinha bastante conteúdo chocante e começou a atrair público. Foi banido em 2014. Eu dava boas risadas com as pessoas tentando entender o que significava 'F57'. É simples: F vem de Philipp, meu nome, e 57 eram os últimos dígitos do meu telefone da época. Maturei a ideia durante cinco anos. Eu diria que foi obra minha, sim. Desenvolvi o projeto todo, os níveis, as fases. Precisava separar as pessoas normais da escória."

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O Novaya Gazeta não foi o único jornal russo a abordar o tema. O jornal Meduza, em particular, criticou o artigo, argumentando que é difícil comprovar a correlação entre o jogo e os suicídios; para eles, o correto seria pontuar que adolescentes deprimidos com tendências suicidas acabam frequentando os mesmos grupos online.

Ainda assim, dado o furor da imprensa russa, a história foi pinçada por vários jornais internacionais logo em seguida, começando com a edição inglesa do The Sun. A história se espalhou pelo mundo inteiro, incluindo o Brasil, com ampla cobertura em tom emocional.

Nessa mesma época, as regras completas do jogo foram compartilhadas no Reddit pela primeira vez. Aparentemente, para começar a jogar, é preciso expressar nas redes o desejo de participar do desafio com a hashtag #f57 — o nome do grupo original de Budeikin no VKontakte, onde o jogo foi criado, voltado para lesões autoinflingidas e incitação ao suicídio — e esperar "um mestre" entrar em contato.

Depois disso, o jogador se submete a 50 dias de "missões", que precisam ser completadas para chegar à missão final: matar a si próprio saltando do alto de um prédio em sua cidade. De acordo com os diversos jornais internacionais que cobriram a história recentemente e o fórum do Reddit que discute o jogo, as tarefas incluem ver filmes de terror, ouvir ruídos perturbadores, mutilar-se (talhar uma baleia na própria pele), matar animais e acordar às 4h20 da manhã (o nome secundário do jogo é "Me Acorde Às 4h20"), em um processo de lavagem cerebral.

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Cada uma das 50 tarefas precisa ser documentada com uma foto ou um vídeo, e enviada ao administrador com quem o jogador estiver em contato. O administrador então chantageia o jogador, ameaçando machucar seus entes queridos. Segundo outras teorias que circularam na internet, o jogo por vezes também envolve o uso de um aplicativo específico que "hackeia" o telefone da vítima, mas, ao que parece, essa hipótese já foi descartada.

Conforme reportado pelo site italiano The Submarine, que busca reconstruir os eventos na Rússia e coletar todos os artigos estrangeiros sobre o tema, o jogo Baleia Azul se espalhou pelo Ocidente em fevereiro de 2017, e foi citado em vários casos de suicídio na Espanha, Argentina, Brasil e Itália.

A história do Le Iene foi baseada no caso do garoto de 15 anos que pulou da cobertura de um prédio de 26 andares em Livorno, sua cidade natal. Só quando um repórter do Le Iene conversou com um dos colegas de classe do garoto, cuja declaração indicou que a morte estava ligada ao jogo, é que ficou claro que ele foi a primeira suposta vítima italiana da Baleia Azul.

Fora da Rússia, os principais pontos de contato com o jogo são o Instagram e o Tumblr, onde a hashtag #f57 já começou a pipocar. Já foram lançadas medidas em ambas as redes sociais para dispersar o jogo e a hashtag correspondente: por exemplo, se você digitar #f57 no Instagram, receberá uma notificação oferecendo ajuda.

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Créditos: Instagram

Entre fevereiro e abril de 2017, o coletivo de hackers Anonymous também decidiu agir contra os administradores do jogo. Lançaram um movimento chamado '#OpBlueWhale', que encoraja jovens a evitar contato com o jogo em uma série de ocasiões.

Mas essa não foi a primeira vez que um jogo foi criado — ou pelo menos disseminado na internet — com base em manipulação psicológica e graves consequências entre jovens. O jogo "Fada do Fogo", por exemplo, que também parece ter nascido na Rússia, fez com que uma garota de cinco anos deixasse o gás de casa ligado durante a madrugada, com a promessa de que ela viraria uma "fadinha" na manhã seguinte.

Anos atrás, o "jogo da asfixia" também ocupou manchetes. A premissa era sufocar, ou se deixar sufocar por alguém, para privar o cérebro de oxigênio e, por conseguinte, "ficar doidão" sem o uso de drogas ou álcool. Por conta disso, também era conhecido como "o jogo dos bons garotos". O jogo da asfixia foi tratado na mídia como "a nova moda" entre jovens na internet, ao passo que, na realidade, era uma história muito mais antiga: conforme a VICE relatou na época, as primeiras mortes por conta desse tipo de asfixia "acidental" remonta à década de 1930.

O Homem Esbelto [nome original: Slender Man] — personagem fictício criado em 2009 durante uma competição em um fórum do site de humor Something Awful , e que rapidamente se tornou uma lenda enigmática — foi citado como motivação em um caso de tentativa de assassinato em 2014, em Wisconsin, quando duas garotas de 12 anos conduziram uma amiga a um bosque e a esfaquearam 19 vezes para "impressionar o Homem Esbelto".

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Vale observar que, fora da Rússia, nenhuma ocorrência do jogo foi efetivamente comprovada. A correlação real entre suicídios adolescentes e o jogo parece se limitar a um punhado de casos.

Em geral, é difícil determinar se as informações que recebemos sobre isso de fato estão ligadas ao jogo, ou imitações dele, ou mesmo outros grupos pró-suicídio, pois existem vários grupos do tipo na dark web.

A Dr. Shannon Barnett, professora assistente de psiquiatria e ciências comportamentais na Escola de Medicina da Universidade Johns Hopkins, nos EUA, disse à Motherboard, via e-mail, que embora o jogo exemplifique o risco de pessoas se aproveitarem de jovens aflitos, não oferece motivo algum para os adolescentes se sentirem mal a ponto de terem pensamentos suicidas ou pensarem em se machucar.

"A maioria dos adolescentes com esses pensamentos têm distúrbios mentais, geralmente depressão e ansiedade", disse Barnett. Ela acrescentou ainda que, embora buscar ajuda e validação de outros adolescentes nas redes ajude, o perigo é que esses colegas não possuem as competências necessárias para ajudá-los. "Adolescentes com pensamentos suicidas ou que ferem a si mesmos precisam ser encorajados a buscar tratamento com um profissional de saúde mental", disse ela.

Conforme o site The Submarine já observou e a própria Motherboard j relatou, ainda há recônditos na deep web onde o suicídio é discutido abertamente. Na maioria dos casos, representam um serviço incomum, mas eficaz — uma espécie de escape onde as pessoas podem procurar ajuda ou desabafar. De qualquer forma, uma coisa é certa: debates sobre assuntos delicados não deveriam estar sujeitos à histeria imprudente da mídia, como é o caso da Baleia Azul.

Nota do Editor: Se você ou alguém a seu redor demonstrarem tendências suicidas ou lesões autoinfligidas, por favor contate o Centro de Valorização da Vida .

Emma Griffith colaborou com a reportagem.