​​“A questão agora é saber se ter contraído dengue é facilitador para a zika”
Crédito: Rafael Martins/Vice

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​​“A questão agora é saber se ter contraído dengue é facilitador para a zika”

Perto de aposentar, Celina Turchi se trancou numa sala para desvendar do zero o vírus que causava microcefalia. Agora, recém-eleita uma das cientistas mais influentes do mundo, ela conta o que ainda precisa ser respondido pela ciência.

Se você não é pesquisador, nem um aficcionado por epidemiologia de doenças infecciosas, dificilmente já tinha ouvido o nome Celina Turchi. Quer dizer, até o fim do ano passado, quando a cientista teve que dar uma pausa nas lentes dos microscópios para posar para as da imprensa internacional. A mudança fazia sentido: ela acabara de entrar na lista dos 10 cientistas mais importantes de 2016 eleitos pela revista Nature, um dos prêmios mais prestigiados do mundo científico.

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Aos 64 anos, Celina começava a flertar com uma vida mais tranquila alcançada pela aposentadoria, com menos projetos e mais lazer, quando numa tarde de outubro em 2015 recebeu um telefonema do Ministério da Saúde. A missão era objetiva: identificar a causa dos casos de microcefalia que surgiram no nordeste do país em 2015. A realidade, que mais parecia um enredo de mau gosto de filme B de terror, colocou grávidas em pânico e o País em estado de alerta. Por isso a urgência. Celina não pensou duas vezes em postergar os planos que contemplavam sombra e água fresca. "Desde aquela ligação tinha certeza que estávamos fazendo História", conta.

Não foi apenas o currículo respeitado que fez com que a professora titular aposentada do Instituto de Patologia Tropical e Saúde Pública da Universidade Federal de Goiás fosse o nome ideal para liderar a equipe de 30 pessoas convocadas para detectar as causas de microcefalia. (Ela é graduada em Medicina pela Universidade Federal de Goiás, mestre em Epidemiologia pela London School of Hygiene & Tropical Medicine, nos EUA, e doutora em Medicina Preventiva pela Universidade de São Paulo.) O jeitinho de fala mansa e a preocupação em sempre conjugar os feitos no plural são apenas uma das evidências que fazem Celina se destacar também na gestão de pessoas.

Como a zika não estava no radar do governo, toda a pesquisa teve que ser começada do zero. "No começo ficávamos por volta de 10 horas por dia, muito pela demanda, mas muito porque queríamos. Cada momento era uma descoberta diferente, então era muito curioso", fala. Foi então que o Grupo de Pesquisa da Epidemia da Microcefalia foi batizado de MERG (Microcephaly Epidemic Research Group). "Era muito animado. Então você junta pessoas muito legais com descobertas muito legais. Podemos dizer que, embora exaustivo, foi muito divertido." Só agora, um ano depois, o grupo está entrando no ritmo "normal" de pesquisa.

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Embora o avanço das pesquisas tenha sido rápido e progressivo, muitas perguntas ainda precisam ser respondidas. As mães que tiveram dengue tiveram algum contato com as células nervosas? Ter tido dengue é algum facilitador para a zika? Quais questões podem ser abordadas no caso de controle? Todas essas questões são ainda um mistério que afastam Celina Turchi da utopia em viver sua aposentadoria. "Na ciência, à medida que respondemos uma pergunta surgem outras. Você acaba ficando preso nisso. E o conhecimento é muito viciante."

Veja a entrevista:

Motherboard: Quando começaram as investigações?

Celina Turchi: Em setembro de 2015 médicos notificaram o Ministério da Saúde sobre o aumento de microcefalia grave, bem abaixo do tamanho esperado em diferentes maternidades em Pernambuco e em outras regiões, principalmente no nordeste. Meu primeiro envolvimento foi por solicitação do Ministério da Saúde, pois sou pesquisadora sênior da Fundação Oswaldo Cruz daqui de Pernambuco. A minha experiência prévia como médica infectologista e depois como epidemiologista com pesquisas na área de dengue e outras arboviroses me deu aval para este trabalho.

Investiguei inicialmente os casos da cidade de Recife e entrei em contato com diferentes pesquisadores. Estávamos diante de uma situação inusitada importantíssima pelo fato de que não havia clareza no que estava causando naquele aglomerado de crianças que nasciam num mesmo período com as mesmas características que tinham intenso comprometimento neurológico, imagens radiológicas, recaucificações, falta de corta, característica bastante peculiar de disposição transcefálica, deformidade dos membros outras alterações.

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O Ministério da Saúde também solicitou ao centro de pesquisa um projeto para identificação da causa da microcefalia. Não se tinha comprovação do que estava causando essa epidemia de microcefalia. Várias hipóteses tinham sido levantadas: se o lote da vacina de rubéola estava ruim e se algum inseticida havia sido colocado na água. Depois surgiram as hipóteses sobre algo que tinha acontecido 6 meses antes. Foi então que lembramos dessa epidemia de doença "tipo dengue, mas que não era dengue": a produção do vírus zika.

E a pesquisa de campo?

Investigamos as hipóteses infecciosas e ambientais, outras hipóteses como vacinas potenciais associadas a esta infecção. Foi desenhado o caso e controle no Instituto em janeiro de 2016 quando chegaram os recursos em monitorar 8 hospitais públicos de Recife. Em todas as crianças que nasciam comparávamos quais são as exposições que a mãe teve durante a gestação, quais são as características das mães das crianças que não nasceram com microcefalia, as espécimes biológicas das mães e crianças, se houve presença de zika e outras viroses.

Em abril de 2016, o estudo ainda era preliminar. Tínhamos 23 casos bem catalogados e 40 em andamento que encontravam o vírus zika e fragmentos virais em controle. Essa era uma prova muito forte de construção de conhecimento científico que chamamos de associação de casualidade. O estudo foi publicado na revista The Lancet Infectious Disease como uma montagem desse quebra-cabeça. Acho que para a maior parte da comunidade científica fica muito evidente que é uma descoberta nova, uma associação não identificada previamente e que o Brasil teve um protagonismo muito importante. Falamos que só foi possível graças à persistência e autoconfiança de médicos que insistiram na denúncia ao Ministério Público, que aconteceu 6 meses antes quando essas mulheres estavam grávidas. Importante notar que até 2015 não passava de uma doença benigna. O Ministério da Saúde, mesmo sabendo casos da zika, o categorizavam como risco de dengue.

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Crédito: Rafael Martins/Vice

O Brasil foi assolado pela dengue nos outros anos. Por que Recife foi "escolhido" para propagar o zika e não outros lugares, onde a dengue era mais numerosa?

A população de Recife tem todo contexto ambiental propício para propagação de vetores: uma cidade alta, clima quente, desigualdade social, forte presença da natureza. Possivelmente foi isso que aconteceu. Um vírus novo, introduzido por uma população e densidade demográfica muito alta, possibilita que esse vírus transite de forma intensa.

Do ponto de vista epistemológico depende muito da ecologia, dos vetores da população. Em todos os lugares que o zika vírus chegou transmitida por mosquitos foi possível identificar microcefalia: a Polinésia Francesa, onde houve terminação da gestação devido a esse problema, a Colômbia tem relatado agora mais recentemente também. Essa associação deve ser vista aqui pelo volume de casos pelo mesmo espaço e tempo. Foi muito, muito importante este alerta dos médicos pediatras e infectologistas, essa percepção e persistência em tentar achar o elo.

Quanto tempo durou desde a percepção médica até o início das pesquisas?

Foram mais ou menos 3 ou 4 semanas entre a primeira denúncia das médicas Ana Van der Linder e Vanessa (mãe e filha médicas), que estão à frente da carta de protocolo de atendimento. Um infectologista chamado Carlos Brito pediu para falar comigo na sequência. Ele foi o primeiro a ter a hipótese que o zika era causador da microcefalia. Ele até escreveu isso numa revista portuguesa, o que até então era impensável. Era perfeito o trabalho dele só precisávamos comprovar.

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Você tinha noção da responsabilidade social dessa demanda?

Tinha. O impacto social com a epidemia de microcefalia era incomensurável. Nunca vivi uma situação tão dramática. Não implicam só as mulheres que estão grávidas (e teoricamente foram expostas e ameaçadas) como também todas as mulheres que pensam em ter filhos. É uma ameaça global, uma ameaça à sociedade como um todo. Os eventos de gravidez normalmente estão associados à felicidade, então o impacto social é grande.

O meu papel enquanto pesquisadora foi perceber desde o início a importância e possibilidade de difusão e intensidade que foi correndo essa transmissão no nordeste. Desde então tenho me dedicado a concentrar o maior número de pessoas para trabalhar de forma coordenada e com metas em projetos bem delineados para avançar o conhecimento. Não só do espectro da doença nas crianças, mas o que acontece no período gestacional – qual momento que mais afeta, quando isso é mais prejudicial. Todas as etapas serviram para alertar a população das medidas que precisam ser seguidas e reforçar a questão do controle vetorial e proteção às pessoas.

Como foi o processo de construção de pesquisa já que não havia nenhum "manual" a ser seguido?

No começo a grande limitação foi a rapidez para que os testes laboratoriais pudessem ser rapidamente usados. Como não era uma infecção que estava no radar da saúde pública, tudo tinha que ser produzido, testado, pesquisado. Começamos do zero mesmo. Acho que a sorte foi Pernambuco ter um laboratório de referência como o da Fio Cruz, com diferentes pesquisadores que já era referência para dengue, além de um capital humano muito rico. Ou seja, havia um grupo de competência de laboratório e recursos humanos muito qualificados que puderam se debruçar sobre essa questão. No laboratório tem o Dr. Ernesto Marques, que tem intensa publicação em dengue, o Dr. Rafael França, que tinha um projeto de vacina de zika antes de acontecerem esses eventos, por exemplo. Esses centros são referência no Brasil e fizeram um excelente trabalho frente a uma emergência.

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E como as tarefas foram divididas?

Inicialmente, desde novembro, reuni em um grupo mais de 30 pesquisadores para fundarmos o Microcephaly Epidemic Research Group (MERG). São pesquisadores da área básica, epidemiológica e infecto da Universidade Federal e Estadual de Pernambuco. Os grupos trabalham para montar projetos com os protocolos de atendimento para que não haja duplicidade de esforços e nem que as mães e crianças não sejam exaustivamente investigadas. E também para que haja um rigor metodológico da melhor forma possível. Temos que criar uma rotina de trabalho no meio da crise da saúde publica. Brincamos que é como trabalhar numa casa pegando fogo. Foi um momento histórico e extraordinário para o descobrimento, para expandir novas fronteiras do conhecimento. Nenhum de nós, enquanto infecto ou cidadãos, poderia imaginar uma doença congênita com essa intensidade de transmissão que tivesse componente vetorial e sexual.

Crédito: Rafael Martins/Vice

Como era a rotina, os dias no laboratório?

A gente tem que lembrar que é preciso estabelecer metas. Dizíamos que o Instituto era o lugar mais animado da cidade. A maior sala do Instituto foi cedida ao MERG para trabalhar durante o momento de crise. Estamos acampados aqui há um ano, mas só agora estamos entrando numa rotina de pesquisa. Foi uma pesquisa feita por uma demanda de resultados muito imediata, que teve uma colaboração interdisciplinar admirável e responsável.

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Acho que o esforço maior do grupo como um todo foi de escrever, delinear os projetos, harmonizar com outros grupos internacionais que têm interesse no tema e que resolveram financiar como a norte-americana N.A.H. e outras da União Europeia, como a Zika Plan, um movimento em trabalhar o mais rápido possível para poder estabelecer grupos de pesquisa. Na ciência, à medida que se responde uma pergunta surgem outras. Claro que este campo novo é uma tragédia, mas uma oportunidade rica em pesquisa.

Ah, acho que a gente não pode deixar de citar que a Dra. Laura Rodrigues, uma brasileira da London School of Medicine, foi contatada nos primeiros momentos da dimensão do problema. Ela percebeu que era um problema que merecia um olhar atento e trabalhou ombro a ombro nas pesquisas e na forma de divulgação dos conhecimentos durante 2015 e grande parte de 2016.

Vocês trabalharam no fim de ano, né? Quantas horas por dia?

Bom, no começo ficávamos por volta de 10 horas por dia, muito pela demanda, mas muito porque queríamos. Até mesmo nos períodos de festas. Cada momento era uma descoberta diferente, então era muito curioso. O grupo também era muito animado, então você junta pessoas muito legais com descobertas muito legais. Podemos dizer que embora exaustivo, foi muito divertido. Ganhávamos marmitinhas das mães de assistentes. Foi bacana.

Você passou o Natal no laboratório?

Praticamente. Tenho um casal de filhos (Pedro Paulo Martelli, 42, e Leticia Martelli, 40) e ambos moram em SP. Eles receberam com muita alegria e com muito orgulho esse reconhecimento do meu trabalho. Eles me apoiam muito e entendem esse deslocamento, essa vontade de estar em diferentes locais. Depois celebramos as conquistas e foi bem gostoso.

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O estudo continua em curso este ano, certo? Qual é o próximo passo?

A parte de campo terminou em dezembro, do ponto de vista de provar a associação. Estendeu-se um pouco mais para excluir as outras hipóteses, tem forte associação, mas é necessário verificar se há outras interações. As perguntas do momento são: se a dengue contraída pelas mães tiveram acesso às células nervosas, se ter tido dengue é facilitador para a zika, além de uma série de questões que podem ser abordadas no caso de controle, parte de investigação de trabalho.

Ah, participa também no MERG, o Dr Ricardo Ximenes da Universidade Federal de Pernambuco, que trabalha nesta parte e o Dr. Demócrito Miranda, que está coordenando a parte de corte dos bebês.

E quando a Nature te contatou?

Eu tive contato em outubro de 2016 com o jornalista que escreveu a matéria. Ele, na verdade, me cobrou uma entrevista de março, mas estava imersa nas pesquisas. Ele disse que eu poderia estar numa lista de pesquisadores, mas como há uma demanda grande de jornalistas e informação eu realmente não tinha dimensão dessa nominação. Isso foi uma surpresa, foi um presente do papai noel para o grupo. É merecido o reconhecimento brasileiro e de um grupo que estava no epicentro da epidemia, que se mobilizou para contribuir.

Foi aí que a senhora se tornou uma celebridade?

(Risos) Não, não. A ideia é retribuir e dar a contribuição possível e também fazer parte dessa nova história que estava sendo construída. Desde o início tínhamos dimensão dessa novidade, que estávamos lidando de forma extraordinária com o desconhecido e que trazia um impacto social enorme. Era isso que mobilizava o grupo. A possibilidade de ser doença de difusão torna tudo muito urgente, o conhecimento, a necessidade de intervenção de controle e resposta para a sociedade. Às vezes as pessoas não queriam sair do lugar porque eram tantas novidades, tantos acontecimentos. Foi um trabalho exaustivo e concentrado que só agora ganha rotina de normalidade.

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Na sua opinião, qual a dificuldade da conexão entre pesquisa científica e a saúde pública?

Eu acho que a tradução do que se conhece e do que é produzido, em termos de ciência para aplicação, realmente tem um timing diferente. Acho que os "produtores de conhecimento", ou seja, nós, temos que aprender como passar essas informações para a comunidade em geral e para o grupo responsável para passar essas informações: vocês, jornalistas. Hoje considero que faz parte do nosso trabalho a divulgação do conhecimento. A implementação do conhecimento a se transformar em ação. Ainda precisa-se investir mais, aproveitar mais as informações geradas e aplicação. Acho que só teria essa observação.

Você acha que essa descoberta pode ser uma vitrine para a ciência brasileira, no sentido de trazer mais patrocinadores etc?

Sem dúvida é um reconhecimento. É muito importante a manifestação desses grupos de pesquisa e o intercâmbio com redes de contato, que dá visibilidade para o país como um todo. Mas também é importante o reconhecimento interno. Existem laboratórios de excelência e competentes fora do eixo Rio-São Paulo e essa descoberta deu um lugar de destaque a esses laboratórios de regiões. Todos se sentem prestigiados. Tenho reforçado que há um reconhecimento de grupo e principalmente de protagonismo brasileiro desde o alerta inicial. Desde as medidas governamentais, que tiveram coragem de colocar o estado de emergência de saúde pública antes da OMS, mesmo quando antes havia dúvidas de etimologia e definição de caso. O Brasil se posicionou e, mesmo com todas as dificuldades, estabeleceu protocolos de atenção que estão em funcionamento.

A ciência é conhecida por ser um meio majoritariamente predominante por homens. como é ser mulher neste meio? Há necessidade de se impor?

Olha, eu venho de uma família de professores universitários. Minha mãe era de Goiás e desde pequena era chefe de departamento, inclusive, chefe do meu pai, então acho que dentro das universidades dentro das carreiras acadêmicas há muito respeito pelo conhecimento. Na área de saúde, as mulheres, na minha geração, eram em menor número, mas hoje são maioria. A faculdade de medicina o número de mulheres é grande. Sempre fui muito bem recebida e sempre me senti muito incluída nos diferentes grupos de pesquisa que eu participo. Reforço sim, o que a Adélia Prado falou uma vez: "a mulher é mais desdobrável". Na academia a experiência feminina de atuação é favorável e bastante de igualdade, ou de possibilidade de atuação.

Você sempre quis ser médica? Como foi a escolha por epidemiologia?

Eu sempre quis ser mais pesquisadora do que médica. Durante a faculdade me interessava pelas atividades que trabalhavam com pesquisa, tive oportunidade de fazer cursos fora. Acho importante que mantenham intercâmbios com bons centros de pesquisa, ideias que norteiam os projetos e interesses e possibilidades. Nós pesquisadores somos uma tribo interessante. É sempre um desafio, mas também uma grata convivência. Os grupos se articulam de forma institucional. Me sinto muito feliz de participar e ter tido essa oportunidade.

E agora? Após essa descoberta a senhora vai diminuir ou reforçar o time?

Tenho 64 anos e sou aposentada, mas vejo que tenho muita curiosidade e desejo de participar. Ano a ano a gente vai ter que avaliar. Tenho a certeza que tem um grupo extraordinário de pesquisadores envolvidos. A linha de pesquisa em doenças infectológicas está estabelecida. O grupo e nossos parceiros internacionais e nacionais vão ter muitos resultados interessantes e que eu vou acompanhar estando na linha de frente ou não. Este tema sempre vai me interessar forever e never.