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É um desafio diário provar quem você é. Não, não é autoajuda, discurso motivacional ou questão filosófica do tipo "conhece-te a ti mesmo". É, na verdade, um desafio para quem precisa portar diferentes números impressos em muitos pedaços de papel com carimbos de vários órgãos oficiais para confirmar a própria identidade todo santo dia — além daqueles domingos em que precisamos lembrar em qual gaveta guardamos o título de eleitor.Desde 1997 o Brasil tenta implementar cadastro único de identidade nacional. Depois de duas décadas de espera, com repaginações de projetos (RIC, RCN e o atual DIN) de diferentes siglas partidárias (PSDB, PT e PMDB), foi sancionada, neste ano, a Lei n.º 13.444/2017, que cria a Identificação Civil Nacional (ICN). Segundo a proposta, um documento único reunirá nossas informações civis e biométricas, com chip eletrônico e foto 3x4, na tentativa de facilitar a vida de quem sempre precisou distender as divisórias da carteira para diversos documentos: RG, CPF, CNH, CTPS, PIS etc. Pareceu que a coisa enfim sairia do papel, mas só pareceu.Assim como em toda a história do projeto, há uma série de conflitos e instâncias burocráticas que se anulam. Presidente do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), o ex-ministro e empresário Guilherme Afif Domingos (PSD) encampou a proposta que patina há 20 anos em Brasília. "Nas últimas décadas, a ideia de uma identidade única, unívoca e inequívoca enfrentou resistência, pois revelava um conflito de interesses entre diferentes instituições: cada uma queria defender as próprias emissões de identificação, o que, querendo ou não, representa uma fonte de renda para as instâncias. Isto é: o indivíduo é um só, mas os poderes são muitos", diz Afif.Autor do sistema Simples (regime de tributação diferenciado), Afif é um defensor da desburocratização. "Burocracia é como colesterol. Tem o colesterol bom, que lubrifica as artérias, quer dizer, que garante o fluxo e o funcionamento do país. Mas tem o colesterol ruim, que obstrui tudo e atrapalha o desenvolvimento do país", critica. De fato, a burocracia no país é de infartar. Para se ter ideia, estamos na posição 123 de um ranking de 190 países feito pelo Banco Mundial que mede a facilidade de fazer negócios no mundo. O estudo anual Doing Business simula quanto tempo e dinheiro são necessários para abrir uma empresa, obter um alvará de construção, pagar impostos etc. Em São Paulo, o principal centro econômico do país, gasta-se uma média de 2.038 horas por ano para pagamento de impostos. Isso dá mais de 80 dias.No dia a dia, trâmites burocráticos se traduzem também em filas imensas, formulários infinitos, documentos e mais documentos ( original e cópia autenticada, por favor), o que provoca custos, demora e frustração. Até a proposta de desburocratizar a identificação nacional não escapou e esbarrou em uma burocracia própria. O que era para ser simples é simplesmente complicado.No primeiro capítulo da saga sem fim do documento único, em abril de 1997, o então presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) assinou a Lei n.º 9454, que pretendia instituir o Registro de Identidade Civil (RIC). Na verdade, a ideia primeira da lei era unificar a emissão de RGs no país. Isso porque, como o RG (registro geral) é um documento emitido pelos órgãos oficiais de segurança de cada Estado, não há um cadastro nacional.O projeto nunca saiu do papel (pelos motivos que milhares de projetos nunca saem do papel no Congresso) e, assim, até hoje é possível tirar identidades diferentes em cada Estado. Isto é: um nome, mas 27 documentos com numerações diferentes – farra para fraudes e outros esquemas ilícitos.Em maio de 2015, a presidente Dilma Rousseff (PT) desengavetou a discussão ao lançar o PL 1.775 para instituir o Registro Civil Nacional (RCN), que previa um número único emitido pela Justiça Eleitoral. Além de fotografia, impressão digital e assinatura, o cartão contaria com RG, CPF, título de eleitor, carteira de motorista e até passaporte. À época, a presidente declarou: "Imaginem a extraordinária mudança na vida cotidiana dos brasileiros. Quem não sonha sair de casa carregando apenas um documento, em vez de ser obrigado a andar com vários deles? Quem não gostaria de fechar uma transação comercial, resolver uma pendência financeira, abrir uma conta ou até registrar um imóvel apenas com a apresentação de um documento? É preciso descomplicar a vida das pessoas e tornar a relação das pessoas com o Estado mais simples, mais fácil, mais transparente." (Sim, sonhamos.)O projeto foi questionado no campo econômico (a estimativa estava na casa de R$ 1 bilhão) e jurídico (a própria atribuição de competência à Justiça Eleitoral). Além disso, foi questionada a segurança jurídica do cidadão, pois o projeto, tal como estava escrito, poderia abrir brechas para a comercialização de dados sigilosos. As discussões emperraram, e a lei não avançou.Ministro da novata Secretaria da Micro e Pequena Empresa à época, Guilherme Afif Domingos conheceu um projeto de identificação biométrica do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), com investimento de R$ 2 bilhões – segundo dados atualizados de abril, há quase 52 milhões de eleitores brasileiros já cadastrados. Afif fez a ponte entre as duas casas, o Executivo e o Judiciário, para aproveitar as informações deste projeto para viabilizar a identidade única.O último capítulo da saga aconteceu em maio de 2017, com a sanção da Identificação Civil Nacional que, por sua vez, institui outra sigla: Documento de Identificação Nacional (DIN) que mescla pontos de tentativas anteriores. De acordo com a proposta, o DIN será emitido pela Casa da Moeda (como propôs Lula), a partir de uma base armazenada e administrada pelo Tribunal Superior Eleitoral (como propôs Dilma). Terá três números centrais: CPF, RG e título eleitoral (CNH e passaporte ficaram de fora, pois são documentos apreendidos se um crime é cometido). Temer vetou dois pontos complicados. Primeiro, a gratuidade do novo documento (com o veto, o cidadão precisará pagar até pela primeira via). Segundo, riscou a especificação da pena para quem comercializar dados sigilosos --no texto original, estavam previstas pena de até 4 nos de prisão e multa para quem vendesse informações.Entretanto, em tempos em que uma selfie basta para confirmar a identificação biométrica nos negócios digitais (Uber e Visa, por exemplo), comprovar nossos números todos num único cartãozinho ainda é uma expectativa futurista. Afif estima que o documento único só deve valer a partir de 2021, prazo estimado para finalizar a base de informações do tribunal.Segundo o secretário-geral da presidência do TSE, Luciano Fuck, o tribunal iniciou estudos para conferir a compatibilidade de seu banco de dados para expandi-lo para a ICN. "Como todo documento, é natural que seja implementado de forma gradativa. O documento é criado para ajudar as pessoas, não para ser um peso. Na medida em que o documento for se tornando importante, para que a pessoa consiga fazer operações bancárias, se identificar, receber aposentadoria, enfim, exercer seus direitos, a tendência é que a pessoa procure com muito mais intensidade a utilização desse serviço", diz Fuck.Muitos trâmites no Congresso, discussões, desenvolvimento de tecnologias depois, a aprovação da ICN abre caminho para os próximos passos: pretende-se criar um comitê com integrantes do Executivo, Legislativo e um representante do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), além do próprio TSE. Eles vão definir o modelo do novo documento e, principalmente, o Fundo da Identificação Civil Nacional, que deverá custear o desenvolvimento e, finalmente, a implementação do DIN.A cada passo, sanção ou solenidade política, a ideia de uma identidade única parece algo ao alcance de um guichê. Mas, para muitos, é mera miragem. Há tanto tempo envolvido na idealização desta proposta, nem Afif está muito otimista. "Não temos muita certeza sobre a implantação do projeto, pois não vejo ninguém, nenhum núcleo operacional atuante para dar sequência ao projeto. No fim, é esperar para ver…".
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Em 2010, quando o RIC parecia mofado em algum armário de Brasília, veio a segunda parte. Num dos últimos atos de seu segundo mandato, no fim de 2010, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) repaginou o RIC. Desta vez, um novo documento deveria substituir o atual RG num prazo de dez anos: um cartão magnético com chip armazenaria impressões digitais e informações básicas (número, data de nascimento, naturalidade, filiação e sexo). Lula e a primeira-dama, Marisa Letícia, até receberam RICs simbólicos, números 001 e 002, durante solenidade no Ministério da Justiça. Mas o projeto caiu no limbo. A Casa da Moeda iria emitir os primeiros 2 milhões de RICs a um custo de R$ 90 milhões. Foram produzidos só 14 mil cartões, e o contrato foi rompido.Até a proposta de desburocratizar a identificação nacional não escapou e esbarrou em uma burocracia própria.
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