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Tecnologia

Nossos Dados Estão Custando Muito Pouco

Se juntarmos todos os nossos dados, eles somam um valor altíssimo.
​Crédito: r2hox/Flickr

Se juntarmos todos os nossos dados, eles somam um valor altíssimo. Os registros das nossas movimentações auxiliam o planejamento urbano. Nossos registros financeiros permitem com que a polícia detecte e previna lavagens de dinheiro. Nossas postagens e tweets ajudam pesquisadores a compreender o funcionamento da sociedade. Há diversos tipos de usos criativos e interessantes de dados pessoais, usos que geram novos conhecimentos e melhoram as nossas vidas.

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Esses dados também são valiosos para cada um de nós, individualmente, e cabe a cada um mantê-los privados ou divulgá-los como bem entender. Eis o xis da questão. O uso de dados é um conflito entre interesse social e interesse próprio — uma tensão que a humanidade enfrenta desde que o mundo é mundo.

O governo nos oferece a seguinte proposta: se você nos deixar acessar todos os seus dados, podemos protegê-lo de crimes e terrorismo. É um roubo. Não funciona. Essa oferta foca demais na segurança do grupo às custas da segurança individual.

A barganha que o Google nos oferece é parecida, e também é desequilibrada: se você nos der todos os seus dados e ceder sua privacidade, mostraremos a você as propagandas que quer ver — e ofereceremos serviços de busca online e email gratuitos, entre outros. Empresas como o Google e o Facebook só conseguem negociar assim quando pessoas o bastante cedem a privacidade. O grupo só se beneficia quando indivíduos o bastante consentem.

O governo nos oferece a seguinte proposta: se você nos deixar acessar todos os seus dados, podemos protegê-lo de crimes e terrorismo. É um roubo.

Mas nem todas as barganhas que opõem o interesse de um grupo ao interesse individual são injustas assim. A comunidade médica está prestes a fazer um acordo similar conosco: se você ceder os seus dados médicos, usaremos a base para revolucionar programas de saúde e melhorar a vida de todo mundo. Nesse caso, creio que a troca é legítima. Acho que ninguém faz ideia do quanto a humanidade se beneficiaria ao colocar todos os dados médicos num único banco, disponível para pesquisadores. Certamente, são dados extremamente pessoais, e capaz que caiam nas mãos erradas e sejam usados para propósitos inesperados. Mas nesse exemplo particular, parece óbvio, para mim, que o uso comunal de dados deve ter preferência. Há quem discorde.

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Eis outro caso que ajustou bem a balança entre interesses sociais e individuais. O analista de mídias sociais Reynol Junco estuda os hábitos de estudo de seus alunos. Muitos livros didáticos estão disponíveis online, e os sites que os oferecem coletam uma quantidade enorme de dados sobre como — e com que frequência — os alunos interagem com o material do curso. Junco colhe mais informações ainda observando tudo o que seus alunos fazem no computador. É uma pesquisa incrivelmente invasiva, mas a duração é limitada, e Junco está entendendo melhor como os alunos bons e ruins estudam — e, a partir disso, já desenvolveu intervenções focadas no aperfeiçoamento de seus programas. Será que o benefício do estudo compensou os interesses privados individuais das pessoas que participaram?

As cobaias de Junco autorizaram o monitoramento, e a pesquisa foi aprovada por pelo conselho de ética da universidade — mas e os experimentos que as corporações fazem conosco? O site de relacionamentos OKCupid faz experimentos com os usuários há anos já, selecionando as fotos que exibe ou oculta, inflando ou deflacionando as medidas de compatibilidade, para ver como tais mudanças afetam o comportamento das pessoas no site. Podemos até dizer que aprendemos com esses testes, mas é difícil justificar a manipulação de pessoas dessa maneira sem que elas saibam ou consintam.

É sempre a mesma tensão: o valor social versus o valor individual. Nossos dados coletivos são valiosos para a avaliação de eficiência de programas sociais. São valiosos para pesquisas de marketing, e para o aperfeiçoamento de serviços públicos. Estudar tendências sociais tem seu valor, assim como prever tendências futuras. Precisamos pesar esses benefícios em oposição aos riscos da vigilância que vêm no pacote.

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A grande questão é: como desenvolver sistemas que aproveitam os dados de forma coletiva, para benefício da sociedade como um todo, e proteger as pessoas individualmente, ao mesmo tempo? Usando um termo de teoria dos jogos, como podemos encontrar o "equilíbrio Nash" para a coleta de dados, um equilíbrio que gere um resultado otimizado, em geral, mesmo quando abrimos mão da otimização de facetas particulares?

É isso. Essa é a questão fundamental da era da informação. Somos capazes de solucioná-la, mas isso demandará uma ponderação profunda sobre as especificidades e os reflexos morais das diferentes soluções possíveis — precisamos entender como cada uma delas afeta nossos valores essenciais.

Conheci defensores fervorosos da privacidade que, contudo, acham que não colocar dados médicos numa base de dados disponível para toda a sociedade deveria ser crime. Conheci pessoas que se sentem perfeitamente tranquilas com a vigilância íntima das corporações, mas que jamais deixariam o governo tocar em seus dados. Conheci pessoas que não ligam para a vigilância do governo, mas são contra qualquer coisa voltada para lucros. E conheci várias pessoas que aceitam qualquer das opções citadas acima.

Como indivíduos, e como sociedade, estamos constantemente tentando equilibrar diversos valores. Nunca acertamos em cheio. O que importa mesmo é que, deliberadamente, participemos dessa tentativa. Muitas vezes, o governo propõe um equilíbrio por nós com base em suas próprias agendas.

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Seja qual for a nossa posição política, precisamos nos envolver. Não queremos que o FBI ou a NSA decidam, em segredo, que níveis de vigilância governamental devem ser o padrão para os nossos celulares; queremos que o congresso decida num debate aberto, público. Não queremos que o governo da China ou da Rússia escolham os recursos de censura à internet; queremos que uma organização de padrões internacionais tome essas decisões. Não queremos que o Facebook manipule a extensão da nossa privacidade entre amigos; queremos decidir por conta própria. Todas essas deliberações são maiores e mais importantes que qualquer organização. Portanto, precisam ser conduzidas por uma instituição maior, mais representativa e inclusiva. Queremos debates abertos sobre essas questões, e queremos que o povo seja responsável pelas próprias decisões.

Volta e meia, recorro a uma frase do Rev. Martin Luther King, Jr: "O arco da história é longo, mas ele aponta para a justiça." A longo prazo, sou otimista, ainda que seja pessimista a curto prazo. Creio que superaremos os nossos medos, aprenderemos a valorizar a nossa privacidade e colocaremos as regras no lugar para colher os benefícios da big data sem ficarmos expostos aos riscos. Neste momento, estamos testemunhando o início de um movimento global vigoroso, que visa reconhecer a privacidade como um direito humano fundamental, além da definição abstrata que vemos em tantos termos e documentos — o movimento busca uma definição significativa e exequível. A União Europeia está liderando o comando, mas outros logo vão entrar no embalo. O processo levará anos, talvez décadas, mas acredito que, em meio século, as pessoas verão as práticas atuais de acesso a dados da mesma maneira como hoje vemos práticas comerciais arcaicas, como arrendamento, trabalho infantil e concorrência desleal. Essas práticas serão consideradas imorais. O começo do movimento, acima de tudo, será o legado de Edward Snowden.

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Comecei este livro falando de dados como uma descarga: algo que todos nós produzimos enquanto vivemos na era da informação. Acho que consigo levar a analogia um passo além. Dados são o problema de poluição da era da informação, e proteger a privacidade é o desafio ambiental. Quase todos os computadores produzem informações pessoais. E elas permanecem lá, perecendo. A forma como lidamos com isso — como armazenamos e descartamos os dados — dita a estabilidade da nossa economia de informação. Assim como olhamos para trás hoje, para as primeiras décadas da era industrial, e questionamos como nossos ancestrais ignoraram a poluição, na pressa para construir um mundo industrial, nossos netos olharão para trás, para nós, nas primeiras décadas da era da informação, e nos julgarão pela maneira como tratamos o desafio da coleta e mau uso de dados.

Precisamos deixá-los orgulhosos.

Trecho do livro Data and Goliath: The Hidden Battles to Collect Your Data and Control Your World, de Bruce Schneier. Copyright © 2015 por Bruce Schneier. Com permissão da editora, W. W. Norton & Company, Inc. Todos os direitos reservados.

Tradução: Stephanie Fernandes