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Tecnologia

Fui guia turístico de um pirata sueco

Conheci o Peter na quinta-feira da semana passada, dois dias antes de ele ter falado no Future Places. Fui ter com ele ao Teatro Hotel, um dos hotéis mais sombrios do Porto, para irmos almoçar. Como era a primeira vez que visitava Portugal, pensei fazer a coisa mais normal e levá-lo a comer uma francesinha e a beber um bom vinho, mas pelos vistos o gajo não come carne nem bebe álcool. É uma coisa de que te apercebes depois de estares um dia com ele: o Peter é um fundamentalista do pior. Em todos os aspectos. Implica pelos portugueses continuarem a fumar em todo o lado, implica com as rádios nos cafés por passarem música pop e ficou indignado pelo facto do Maus Hábitos ter o “TM”, de trademark, à frente do seu logótipo. Ainda fez questão de, durante os debates, se sentar à esquerda do público apenas porque ideologicamente é de esquerda. É um tipo simpático, mas às vezes parece um misto de velho misantropo com miúdo do punk zangado com o mundo. Quando lhe agradeci pelo facto do Pirate Bay me ter enriquecido culturalmente, por me dar acesso a filmes que nunca poderia ter visto de outra forma, ele disse-me: “Peço desculpa por isso, porque não és tu que escolhes os filmes que gostas, Hollywood escolhe por ti.” (Nunca pensei que Hollywood estivesse tão interessada em que eu visse o Flesh Gordon Meets the Cosmic Cheerleaders ou filmes da Troma e do Corman) No sábado, no Maus Hábitos, apanhou-me a comer uma tosta mista e deu-me logo um sermão: “Mais valia comeres fatias de Khadafi, que era uma pessoa má. O pobre porco não fez mal a ninguém!” Combinei com ele que, se ele me arranjasse uma tosta de Khadafi, eu comeria. Antes disso, no dia em que o conheci, acabámos por almoçar no Paladar da Alma. Enquanto comíamos, o Peter falou-me de como o Julian Assange era um idiota por estar sempre a pedir dinheiro a toda a gente, mas, segundo o Peter, usar esse dinheiro apenas para se promover e não para fazer aquilo a que o Wikileaks se propôs: trazer mais transparência aos governos. O Peter acha que o Assange tem ignorado o Bradley Manning, o soldado americano que divulgou todos aqueles faxes das embaixadas e que agora está à espera de ser julgado em tribunal marcial. E também não aconselha o pessoal a divulgar informação confidencial ao Wikileaks porque aquilo agora está demasiado vigiado. Perguntei-lhe se achava que a história do Assange ter violado duas mulheres era verdade ou apenas uma armadilha para o condenarem ou sujar a imagem dele. “Naaaa, o gajo é só um idiota”, respondeu-me. “Teve relações sexuais com duas mulheres suecas que mais tarde pediram-lhe testes a doenças sexualmente transmissíveis e, por lei, ele era obrigado a fazê-los e recusou-se. Mas é assim que ele trata as mulheres.” Desculpem, paranóicos, parece que a culpa não é mesmo da CIA. O Luís quis divertir o seu novo amigo e começou a contar piadas de dinamarqueses, mas trocou as nacionalidades e acabou por gozar com a família real sueca. Piratas pela liberdade de expressão É normal pensarmos no Pirate Bay apenas como o lugar onde vamos sacar o último PES ou novos episódios da Teoria do Big Bang, mas a verdade é que há todo um movimento político-ideológico por trás do site. Tudo começou, na Suécia, em reacção ao Gabinete Anti-Pirataria, criado pelos estúdios de Hollywood para proteger os direitos de autor. “Diziam que estávamos a perder 16% do PIB por causa da pirataria e mentiras desse género que a imprensa engolia”, explicou-me, “por isso criámos o Gabinete da Pirataria, a ideia foi pegar no nome deles e tirar o ‘anti’ para mostrar-lhes que podíamos fazer remisturas e criar algo melhor do que o original". Depois, "quando o Gabinete começou a crescer, tinha já 60 pessoas a trabalhar" e acharam que seria "boa ideia ter um site de partilha", por isso adoptaram o sistema Bittorrent, "que era recente na altura.” O Peter trabalhou com eles essencialmente como porta-voz, mas os outros dois fundadores do Pirate Bay, o Gottfrid Svartholm e o Fredrik Neij, são também os donos da PRQ, um fornecedor de acesso à internet que hospeda sites que mais ninguém tem coragem de hospedar. “Temos levado muito na cabeça por defendermos a liberdade de expressão a todo o custo.” O Peter destaca dois sites especialmente polémicos. “O primeiro a nos dar problemas foi o do Kavkaz, o movimento rebelde da Chechénia, que organiza toda a sua actividade através da internet. Eles tinham o site hospedado na Rússia, mas como a sua mensagem era anti-Rússia e pró-Chechénia, saíram de lá para fugir à repressão. Por isso, antes dos Estados Unidos nos perseguirem por violação dos direitos de autor, o Kremlin já andava atrás de nós.” A Rússia conseguiu deitar abaixo o site por duas vezes, mas o PRQ recusou-se sempre a divulgar qualquer informação sobre os seus clientes e o site continua de pé. “Depois tivemos problemas com uma associação de pedófilos, que usavam um site para explicar apenas o que era ser pedófilo e como eles viviam com esse problema. Acima de tudo avisava as pessoas sobre como os impedir de fazer algo errado, não divulgava pornografia infantil nem nada parecido. Mas muita gente apresentou queixa à polícia.” Em 2009, o Peter e os outros fundadores do Pirate Bay foram condenados a um ano de prisão por facilitarem a partilha ilegal de ficheiros, mas até agora conseguiram ficar fora das grades. “Pedimos recurso e estamos à espera de uma resposta do Supremo Tribunal sueco. Temos 99,999% de hipóteses do Supremo pegar no caso, mas como não é uma prioridade para eles, o caso vai empatando.” No caso de ser condenado já tem um plano de fuga. Afinal, o Lula da Silva ofereceu-lhe pessoalmente asilo, já que não existe protocolo de extradição entre o Brasil e a Suécia. Acho que aqui estávamos a agradecer ao Peter por ter feito parte de um site que já nos deu tantas alegrias (e momentos a sós com qualidade). Ele ficou um pouco corado (para o padrão sueco, claro). O Peter deixou o Pirate Bay pouco depois da sentença ser lida porque ser um pirata lhe roubava demasiado tempo. “Voltava do meu trabalho e passava mais oito horas a trabalhar no Pirate Bay, a falar com a imprensa, a lidar com problemas no site ou com as coisas do julgamento.” Agora vive em Berlim, onde fundou o Flattr, um sistema de micro-pagamentos que funciona de forma semelhante aos likes no Facebook. O Peter diz que é uma forma de compensar os bloguers ou artistas que disponibilizam o seu trabalho de forma gratuita na internet. “Mesmo que só ganhem um euro ou três cêntimos, a maioria das pessoas que o usa nunca ganha dinheiro nenhum com a sua arte. É uma forma de apoiar o pessoal do open software e da open culture. Não é uma forma da Britney Spears se sustentar, mas sim de apoiar o resto dos artistas.” Apesar do Pirate Bay ter inspirado partidos pirata por toda a Europa (inclusive Portugal, o Peter diz que nunca se envolveu em nenhum desses partidos e que nem sequer votou neles. “Sou militante dos Verdes na Suécia e defendo coisas mais importantes do que apenas o fim dos direitos de autor. Preocupo-me com questões ambientais e com os direitos dos animais, logo acho os partidos piratas um pouco limitados.” Depois do almoço fomos acordar a Elizabeth Stark, da Open Video Alliance, que também foi convidada pelo Future Places. Ela dá aulas em Stanford e tinha vindo de São Francisco, por isso, por causa do jet lag, já dormia há quase 14 horas e o Peter estava a começar a ficar preocupado. Demorámos aí uns 15 minutos a tirá-la do quarto. Quando finalmente acordou fomos fazer a coisa turística que faltava: a viagem pelo Rio Douro (sem visita às caves, porque o Peter não bebe). No caminho todo entre o hotel e a Ribeira, o Peter tentou-me arranjar noiva, apontando sempre que via alguma rapariga que ele achava que se enquadrava no meu estilo. “Tu disseste que querias dois filhos, não foi Luís? Acho que aquela aguentava bem com isso.” Este estudante brasileiro da FBAUP também quis tirar uma foto com o Peter, mas, como não tinha máquina, a VICE fez-lhe o favor. Já o Peter esqueceu-se que, segundo ele próprio, não pode brincar de nigga sendo sueco. Durante a viagem, um casal de espanhóis pediu-me para lhes tirar uma foto e o Peter aproveitou logo para mandar a piadola: “Devias cobrar, porque agora és tu quem tem os direitos de autor.” A Elizabeth falou o tempo todo do #OccupyWallStreet, mas dava a ideia que só queria estar lá por ser o evento de esquerda do momento, não por razões ideológicas muito fortes. Ela é uma hipster que odeia hipsters. Diz que ninguém nos EUA curte a VICE, porque é cena de hipster, mas é snobe ao ponto de dizer algo tão elitista como “não sou americana, sou nova-iorquina” e de gozar comigo por ainda ler revistas e livros: “Uau, tu ainda lês sem ser em formato digital?” Acabada a viagem, eles quiseram ir a um hackerspace cá no Porto. Procurei no telemóvel qual era o mais próximo e acabámos a subir a Rua da Fábrica Social, a caminho da Es.col.a do Alto da Fontinha, um espaço ocupado que funciona praticamente como um ATL anárquico. Vimos logo onde era pelo esqueleto gigante e pela bandeira de pirata que lá estava hasteada. Todas as quintas-feiras organiza-se lá um hackerspace chamado Hacklaviva!. Ficámos algum tempo à espera que o resto do pessoal chegasse, enquanto uns miúdos estouravam foguetes mesmo ao nosso lado. Depois chegou o Ricardo, um dos organizadores do Hacklaviva!, com mais dois amigos que traziam peças de computador. O Ricardo fez-nos uma visita guiada pelas instalações, mas acabou por não haver grande hacking, porque ele não conseguiu encontrar as chaves do armazém onde tinham todo o material. Acabaram por ficar a consertar um computador e o Peter deu-lhes umas dicas. O brasileiro das Belas Artes desenhou este retrato do Peter, mas não ficou muito parecido porque ele não usa pala. O Peter sentiu-se em casa. Contou-me que teve o seu primeiro computador aos nove anos e diz que vem daí a cena de pirata, já que em 1987 o único software que ele conseguia arranjar era copiado, logo sem licença. Ele é um autodidacta, não chegou sequer a acabar o ensino secundário, mas, como percebia tanto de informática, foi contratado como responsável pela manutenção dos computadores na mesma escola onde devia estudar. Em Portugal ficámos sem Blockbuster, Valentim de Carvalho e muitas outras lojas de música ou clubes de vídeo tradicionais. Certo que a culpa não é só da pirataria, o pessoal agora também pode comprar música e vídeo através do iTunes e do Meo, mas todos preferimos as coisas de graça. O Peter, no entanto, não sente remorsos pelo pessoal que ficou desempregado graças ao Pirate Bay. “Isso seria como culpar os vendedores de frigoríficos por terem levado os vendedores de gelo à falência. As pessoas já não querem comprar CDs ou DVDs, pedaços de plástico que até são pouco práticos de transportar — preferem as coisas em formato digital, como o MP3.” É verdade. A evolução tecnológica tornou a cultura tão aberta que já nem sequer se consegue fazer dinheiro com a pirataria. Entre 2001 e 2002 eu e o meu irmão fomos os padrinhos do tráfico ilegal de CD-Rs em Ponte da Barca. Fomos dos primeiros a ter gravador de CDs no desktop, por isso durante um ano tivemos o monopólio: cinco euros por CD com um jogo, álbum ou filme, tudo sacado do eMule (o Pirate Bay ainda não tinha aparecido). Chegávamos a sacar coisas parvas que nem gostávamos, mas que sabíamos que vendiam bem, como o DVD do Fernando Rocha, e guardávamos tudo em cilindros de CDs gigantes. Isso durou um ano ou até menos. Agora tenho o gravador de CDs do portátil avariado e nem sinto falta dele. Quando o disco está cheio, faço back-up para o disco externo ou apago o ficheiro e volto a descarregar quando preciso. Toda a gente faz downloads ilegais agora, novos e velhos, ricos e pobres, de esquerda ou de direita. O Peter até diz que, segundo os dados do site, no Parlamento Europeu são os deputados de direita (muitos dos quais promovem leis anti-pirataria) que mais visitam o site. A insistência dos estúdios e das editoras em quererem controlar todo o material que criam já não faz sentido e o Pirate Bay prova que, com a internet, esse controlo é impossível. Mesmo que o Peter e os amigos sejam presos, o Pirate Bay dificilmente será fechado, porque os servidores estão em parte incerta. E, mesmo que feche, existem muitos outros sites para sacar torrents. Insistir na limitação do acesso das suas obras aos consumidores só levará a que estes se revoltem ainda mais contra o sistema. As empresas são a estrada, não o rolo compressor.