relatos

Um dia na vida de um entregador durante o pânico do coronavírus

“Achei que ia ganhar muitas gorjetas. Mas não estou ganhando.”
MS
Traduzido por Marina Schnoor
Alex Norcia
Como contado a Alex Norcia
Bike delivery
Foto cortesia de Matt DeCaro.

Todo mundo me olha agora como se eu fosse um rato durante a peste bubônica. Quer dizer, sou entregador de bicicleta; normalmente as pessoas provavelmente só me acham nojento. Mas isso é muito pior. Faço entregas pro DoorDash, Uber Eats e Postmates na Filadélfia. Não é assim que você deveria trabalhar – com todos eles de uma vez – mas era um dos jeitos de ganhar dinheiro rápido, antes do coronavírus.

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As noites de sábado são supermovimentadas, claro, mas a última não foi. Foi o primeiro dia que percebi que não traria tanto dinheiro pra casa como costumo. Geralmente faço $50 por turno, tipicamente US$ 100 se o jantar é bem movimentado – das 17 às 21 horas – mas fiz só US$ 60 no dia inteiro. E era o final de semana antes do Dia de São Patrício; alguns restaurantes estavam começando a fechar voluntariamente, mas tecnicamente não precisavam ainda. Universitários ainda estava indo pra balada e bares. Parecia que eles estavam pouco se fodendo. Naquela noite, fui pegar um taco de um lugar, e o chef ficou irritado porque eles tinham uma entrega e ele queria que o chefe fechasse o restaurante. Ele disse isso pros colegas na minha frente, enquanto eu esperava pela comida.

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Mas os restaurantes estão muito gratos. Eles perguntam como estou e se ainda estou conseguindo ganhar o suficiente. Muitos me dizem que acham que os clientes não sabem que eles ainda estão funcionando. Alguns deles ainda estão abertos para entregas. Agora parece que todo mundo acha que o Chipotle é a única coisa funcionando. Os outros restaurantes estão fodidos; os funcionários estão com medo de ficar doentes ou não ter trabalho. Os empregados só falam nisso. Os únicos lugares que não estão fodidos são as grandes redes. Chipotle pode oferecer entrega grátis porque tem recursos suficientes pra isso.

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[Nota do Editor: DoorDash, Uber Eats e Postmates recentemente fizeram mudanças numa tentativa de manter clientes seguros e restaurantes funcionando. O DoorDash tirou a comissão que geralmente cobra dos restaurantes por 30 dias e está ajudando a entregar comida para necessitados; o Uber Eats, além de tirar a taxa de comissão, prometeu fornecer 300 mil refeições para trabalhadores de saúde e outras pessoas nas linhas de frente do surto; e o Postmates, além de fornecer algumas refeições sem comissão, está fazendo uma campanha de “entregas sem contato” para evitar a interação entre trabalhadores e clientes.]

Além disso, parece que muitos dos restaurantes mais chiques fecharam porque não vão ficar abertos só para entrega. Mas esses são os melhores pedidos. Você entrega para uma clientela que tem mais chance de dar gorjeta porque tem uma renda maior; agora estou entregando pra porra do Papa John's, e você sabe que não vai ganhar gorjeta por entrega de fast food. Justo.

Achei que as pessoas ficariam gratas por eu ainda estar trabalhando. Achei que receberia muitas gorjetas. Mas não estou recebendo. Acho que as pessoas nem pensam nisso. Talvez muitas pensem, tipo, elas queriam sair para almoçar ou jantar, mas agora precisam se conformar com uma entrega. E tem pessoas que costumavam pedir mas agora estão cozinhando em casa. Tem toda uma hierarquia de clientes decepcionados, tenho certeza.

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Duas ou três pessoas disseram “Muito obrigado, Matt”, e usaram meu nome, o que é algo praticamente inédito e bem legal. Mas na maioria das vezes, acho que eles só querem que eu vá embora logo por medo que eu vá infectá-los.

Na segunda-feira, a Filadélfia anunciou que vai limitar todos os restaurantes a só fazer retiradas e entregas até 17 horas. Entrego almoço e jantar, antes e depois disso entrar em vigor.

Primeira parada: uma lanchonete

Geralmente começo a trabalhar 12h30, 13 horas. Só tinha um cara lá. Estava um silêncio mortal; você só ouvia as notícias na TV. Uma mulher muito simpática me deu a comida. Abri a porta de luvas. Então a única coisa que toquei, com as luvas, foi a alça do saco de entregas. Fiz a entrega num prédio comercial quase vazio. A mulher que pediu a comida tomou cuidado pra não encostar nas minhas mãos quando entreguei a sacola.

Segunda parada: um restaurante chinês

O restaurante estava vazio, e tinha um cartaz na porta dizendo “Só retiradas”. Uma mulher de máscara cirúrgica apontou para a sacola que eu deveria pegar. Fiz a entrega na porta de um prédio de apartamentos chiques no centro da cidade. O cara estava de pijama e máscara cirúrgica. Não sei dizer quem está doente, ou quem está trabalhando em casa de pijama e tomando precauções quando sai do apartamento. E normalmente, pessoas ricas me fazem subir até a porta da casa delas. Hoje não.

Terceira parada: Chipotle

Esse restaurante foi onde encontrei mais pessoas. Acho que não é difícil encontrar zero ou uma, mas tinha umas 10 pessoas lá, agindo como você normalmente age no Chipotle: conversando, comendo seus burritos. Vi outro entregador e dei o cumprimento de cabeça de costume. Foi lá que lavei as mãos também. Decidi lavar as mãos de três em três restaurantes.

Quarta parada: um restaurante coreano

Peguei um pedido de comida coreana antes de entregar o burrito. Eles estavam tocando aquela música da piña colada, e tinha gente comendo lá. Tive que sentar e esperar um pouco, porque a comida ainda não estava pronta. Fiquei imaginando se as pessoas não queriam que sua comida fosse colocada junto com outra – tipo, só coloquei a sacola de comida coreana na mochila junto com o burrito que peguei antes. Ninguém me disse que não pode.

Entreguei o burrito para um cara das finanças num arranha-céu. Ele desceu pro saguão de bermuda de basquete e blusa de lã. Ele também estava numa teleconferência. Ele disse alguma coisa tipo: “Valeu, irmão”.

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Fui para outro prédio residencial rico para entregar a comida coreana. O cara na portaria me disse para levar até a porta da pessoa no sétimo andar, mas quando entrei no elevador, liguei pro cliente. Ele disse que preferia que eu deixasse na portaria mesmo. Então desci e entreguei lá. Isso nunca aconteceu antes.

Quinta parada: uma hamburgueria

Hora do jantar, por volta das 19 horas. Estava escuro lá dentro, fora as luzes no cardápio atrás do balcão. Tinha uns oito garotos trabalhando lá, sentados nas mesas, só conversando. Tive que bater na porta – parecia trancada – e eles saíram com a comida. Falei um pouco com outro entregador de bike chamado Dave. Era o primeiro dia dele. Ele era um cara legal, mas me fez imaginar quantas pessoas estão entrando nessa porque acham que é uma oportunidade. Tipo, fazer entrega para ainda descolar algum dinheiro. Ele estava colocando a comida numa mochila muito pequena.

Além disso, percebi que as únicas pessoas na rua eram gente passeando com o cachorro.

Sexta parada: um restaurante de massas chique

Nesse lugar, por um extra, você pode acrescentar molho de pimenta com CBD no seu macarrão. Esse tipo de lugar.

A mulher atrás do balcão disse que não sabia se tinha todos os ingredientes para fazer o pedido do cliente, mas que realmente precisava dessa compra. Foda-se. Agora não é a hora para exigir exatamente o que você quer. Ela colocou luvas descartáveis para passar o cartão de débito, e pediu para avisar quem eu encontrasse que o restaurante estava aberto para entrega e retirada – especialmente quem estivesse cansado de cozinhar a própria comida.

Quando fiz essa entrega, foi quase uma negociação de reféns. Liguei pro cliente, e ele me disse para colocar a sacola num banco o mais perto possível da porta. Aí fiquei vendo ele abrira a porta só um pouco, olhar pra mim, e agarrar o saco o mais rápido possível.

A matéria foi ligeiramente editada para melhor entendimento.

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