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Waypoint

O que conta o mito nórdico por trás da história de 'God of War'?

A lenda no qual o novo 'God of War' foi baseado é ainda mais impressionante que a história do game.

Matéria originalmente publicada no Waypoint.

Alerta: este texto contém spoilers de God of War, incluindo seus momentos finais.

Kratos é, essencialmente, uma força subtrativa em seu universo. Passamos a franquia God of War inteira controlando este homem vingativo e homicida, enquanto este trespassa suas lâminas por toda a mitologia grega, conto a conto e personagem a personagem.

No novo título da série, Kratos é incumbido de adicionar algo. Sim, este ser de pura negatividade que encerra todo e qualquer assunto com o máximo de violência possível, tem que moldar uma criança de forma que esta se transforme em algo diferente do que ele foi e é. Esta criança, Atreus, está no âmago de um suposto momento de transição para Kratos e God of War trata justamente desta mudança de aniquilador de panteões para figura paterna educadora. Esta história se desenrola no contexto de outra criança, porém. Seu nome é Baldur.

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Baldur é a força motriz do enredo de God of War. O jogo se revela de verdade quando ele aparece na casa de Kratos e Atreus e é seu ataque que faz com que Kratos destrua o portal para Jotunheim, que nos leva à segunda parte do jogo. É sua raiva assassina contra sua mãe que faz com que Kratos se meta nos assuntos dos deuses nórdicos ao final do título. Baldur mais cumpre uma função do que necessariamente é um personagem e é sua capacidade de continuar retornando à luta que o faz um vilão tão poderoso dentro da série God of War. Kratos é ótimo nisso de distribuir violência, Baldur, por sua vez, é o receptáculo perfeito desta, visto que não pode morrer ou sentir dor. De fato, ele é incapaz de sentir qualquer coisa.

Dentro de God of War, a imortalidade de Baldur e incapacidade de sentir são explicadas em um contexto mais abrangente: ele é o resultado de um casamento político entre Odin, deus-líder dos Aesir, uma facção de deuses nórdicos, e Freya, líder da outra facção chamada Vanir. Ao nascer, Freya logo soube que Baldur estaria destinado a ter uma morte terrível, então ela valeu-se de sua poderosa magia Vanir para torná-lo imune a tudo. O resultado disso é uma criatura imortal, incapaz de sentir prazer e dor. É exatamente esta incapacidade que o fez buscar vingança contra sua mãe. Melhor seria morrer do que viver desta forma.

Baldur morre infeliz e insatisfeito nas mãos do deicida Kratos. E sua morte faz diferença, não só para o enredo do jogo, mas também no contexto da mitologia empregada pelo mesmo na criação de seu universo de deuses e seus mundos. No Edda em Prosa, volume da mitologia nórdica constituído pela tradição oral islandesa compilada por Snorri Sturluson no séc. XIII, a morte de Baldur precede o Ragnarok, evento que bota de ponta-cabeça boa parte do mundo e causa a destruição de muitos dos deuses.

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Seguindo esta tradição mitológica, Baldur fala muito sobre todos os atos perigosos que pretende cometer. Em resposta, sua mãe Frigg (Freya no game), decide que quer proteger seu filho, forçando assim todo o mundo a prometer não machucá-lo. Fogo e água, ferro e doença, todos se comprometem em não ferir Baldur, com exceção de uma pequena planta chamada visco, considerada muito pequena e jovem para ferí-lo.

Por meio de uma complicada série de acontecimentos, Loki acaba descobrindo tal informação e leva um ramo de visco ao local onde Baldur e diversos outros deuses praticam esportes. Lá, eles estão praticando tiro com variados tipos de armas tendo Baldur como alvo, por diversão pura e simples. Nada pode machucá-lo, então não teria porque não. Loki dá uma flecha de visco a um dos deuses, flecha esta que acaba por matar Baldur. Os deuses lamentam e enlutam-se.

God of War altera a história significativamente: ainda é Loki o responsável pela morte de Baldur, já que Atreus é revelado como aquele que os gigantes chamam de Loki. Baldur ainda morre por conta do visco, já que Loki remove sua invulnerabilidade ao inserir uma ponta de flecha feita de madeira de visco na mão de Baldur. E Baldur ainda é alvejado, apunhalado, fatiado e cortado de tudo que é jeito só por diversão, levando em conta que este é o gameplay da coisa toda. Como jogadores, controlamos um deus que se diverte lutando contra um Baldur invulnerável.

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Assim como ocorre com o Edda em Prosa, a morte de Baldur é seguida imediatamente pelo Fimbulwinter, um frio mortal, que não oferece trégua mesmo com o verão, cujos anões mercadores de upgrades do jogo não param de falar sobre após a morte do último chefe do jogo. O final do game praticamente grita “lá vem o Ragnarok” e meio que fica fácil sacar que no final das contas Baldur só estava ali mesmo pra cumprir este propósito. Ele vive só pra entregar momentos-chave do enredo e atrapalhar, morrendo para que possamos seguir adiante e matar deuses mais importantes do panteão.

God of War faz o máximo possível para que não pensemos muito sobre Baldur, um personagem não muito desenvolvido que soa tão complexo quanto o Coringa de Jared Leto. Ele é um inimigo que pode facilmente ser reduzido a todos seus discursos sobre “sentir”. Seus movimentos, dominados por gesticulações e inclinações, parecem uma repetição de Jeremy Davies no papel de Dicky Bennett na série de crime/drama Justified. E assim como Dickie Bennett, Baldur parece mais um sintoma, um mensageiro de seres mais poderosos do que ele mesmo.

Esses seres nunca dão as caras em God of War. Em vez disso, vemos só Baldur, e assim como na mitologia, sua função primária é morrer para que mudanças possam acontecer. Kratos é um martelo, Baldur é a bigorna e Atreus torna-se quem é ao ser pressionado entre os dois. A perseguição de Baldur por pai e filho é o que leva Kratos a confessar seu status divino. O ódio de Baldur pela própria mãe ensina lições valiosas a Kratos, que por sua vez, as transmite ao seu filho. No final do jogo, junto a um estalo brutal, Kratos aconselha seu filho a não ser como Baldur.

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Na mitologia, a morte de Baldur dá início a período de caos em que a maior parte dos deuses, incluindo seus pais Odin e Freya, morrem. Mas este período, Ragnarok, é encerrado com a redenção do mundo. Baldur retorna de Hel, ressurreito, e contempla o mundo que antes existia; sua morte é um mecanismo que permite ao mundo ser melhor do que já fora antes.

É isso que o Baldur de God of War faz. Quando Kratos finalmente quebra o pescoço de Baldur, de vez, ele diz “O ciclo se encerra aqui. Temos que ser melhores que isso”. É uma frase de pouco refinamento, mas apropriada para Kratos, um personagem tão profundo quanto um cântaro grego cheio de álcool não-identificável, ainda que consumível. Ele se refere a um ciclo que filhos matam pais. Ele fala de um sistema onde deuses matam deuses, de violência além da compreensão humana, marcada por um ódio sem qualquer limite. Ele fala de vingança, tanto da sua perpetrada anteriormente quanto a de Baldur, e o preço a ser pago por esta vingança.

Ainda assim, se a mitologia e o começo do Fimbulwinter indicam qualquer coisa, bom, o ciclo só começa agora. Naquele momento, com a morte de Baldur, a franquia God of War começa a voltar-se, lentamente, para o Ragnarok e o renascer do mundo. Haverão ainda muitas tragédias e mortes, e tudo isso resultará em um mundo melhor para quem sobreviver e voltar à vida. Quem viverá neste mundo? Para quem será este novo mundo? Será outro lugar, em que ciclos não faze mais nenhum sentido e a morte de Baldur será apenas uma lição, terrível por sua natureza, dedicada a Atreus. Baldur morre, olhar fixo no público, símbolo de uma monstruosa lição de pai para filho. Não se permita ser como eu e nem seu mundo a ser como o meu.

Subtrair é o que Kratos faz de fato, e matar Baldur é um momento que deve ser encarado como uma remoção. Ele está retirando a vingança dos deuses nórdicos deste mundo. E mesmo assim é difícil imaginar Atreus, quase que certamente um símbolo deste novo mundo, se recuperando desta dura lição realizada através do mais frio e pragmático assassinato. Mas no final das contas Baldur é uma criança com raiva dos pais, como Kratos foi contra Zeus e se a morte de Baldur serve de algo, que seja encarada como um pai colocando um filho em seu lugar. Kratos diz que o ciclo termina ali, mas me parece que a morte de Baldur dá início a mais ciclos do que os que encerra.

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