Ilustração oposição
Ilustração: Cassio Tisseo/VICE

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Politică

Como ser oposição ao governo de Bolsonaro

É preciso reconquistar as ruas e as bases por meio do ativismo tradicional e “analógico”.

Passados alguns dias da vitória de Jair Messias Bolsonaro (PSL) nas eleições, a esquerda brasileira ainda junta os cacos e tenta ir além da troca de acusações entre Ciro Gomes e a cúpula do PT, não apenas para entender os motivos da derrota mas para saber como fazer oposição ao futuro governo. Um presidente de origem militar, que prometeu “governar para todos” depois da vitória, mas antes havia prometido “banir os marginais vermelhos” e “acabar com todos os ativismos”.

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A primeira dúvida que se mostra é: em qual Bolsonaro acreditar, afinal? “Em uma mistura dos dois. Porque o Bolsonaro ‘de verdade’ se aproxima muito mais do Bolsonaro autoritário do que do Bolsonaro light, mas serão incontáveis as vezes em que ele baterá com a cara na parede”, prevê o cientista Leonardo Rossatto Queiroz, especialista em Políticas Públicas e mestre em Planejamento e Gestão de Territórios pela Universidade Federal do ABC. Ele acredita que a agenda ultraliberal liderada pelo futuro superministro da Economia, Paulo Guedes, vai se chocar com os servidores. “A equipe dele não tem experiência, não conhece nada da máquina pública e tem a clara intenção de destruí-la, o que coloca de antemão a maior parte da burocracia de Brasília contra eles.”

O funcionalismo público federal sempre foi uma base importante do PT, mas os 13 anos de governo, e especialmente os escândalos de corrupção no período, causaram um desgaste tradicional entre patrão e trabalhador. Isso fez muita gente entre os servidores virar casaca e apoiar tanto o impeachment da presidenta Dilma Roussef, em 2016, como a campanha do ex-capitão – tanto que Bolsonaro teve exatos 69,99% dos votos no Distrito Federal, índice muito acima dos 55,13% do placar nacional.

"O Bolsonaro ‘de verdade’ se aproxima muito mais do Bolsonaro autoritário do que do Bolsonaro light" – Leonardo Rossatto Queiroz, especialista em políticas públicas

O problema é que Bolsonaro vai ter um jeito diferente de lidar com os problemas que aparecerem. O dito outsider, que cumpriu sete mandatos como deputado federal antes de chegar ao cargo máximo da República, não apenas se comunica diretamente com seu público, sem intermediários – pela primeira vez um presidente fez o pronunciamento da vitória em live do Facebook e não numa entrevista coletiva –, como também o faz com a real intenção de não dizer nada. Como já dizia Marshall McLuhan nos anos 1960, o meio é a mensagem.

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“O Bolsonaro vai ser um espantalho. É assim que o fascismo se apresenta ao mundo hoje, na era da comunicação instantânea e das redes sociais: tem um personagem que é um espantalho, que fica chamando a atenção, enquanto a plantação prospera: uma política econômica centralizadora, o sucateamento das empresas públicas para levar à privatização, a concentração de poder econômico na elite, a dificuldade do trabalhador de pagar suas contas. Tudo isso acontece enquanto o espantalho fica jogando bombas de fumaça e chamando a atenção para outras coisas”, explica o publicitário Daniel Carvalho, ativista de movimentos sociais e presidente do diretório municipal do PSOL em Botucatu (SP).

"O Bolsonaro vai ser um espantalho. É assim que o fascismo se apresenta ao mundo hoje" – Daniel Carvalho, do PSOL

Assim, as falas espetaculosas de Bolsonaro que fazem a esquerda temer pela reencarnação do regime militar que ele tanto diz admirar na verdade são só uma cortina de fumaça para realizar projetos de seus apoiadores, como a Escola Sem Partido, e de Paulo Guedes, como a Reforma da Previdência e o enxugamento do Estado. Uma adaptação do processo de firehosing usado na campanha e explicado aqui neste texto. Em resumo: uma fala para mobilizar a militância e fazer a oposição correr como barata tonta.

Nem é um processo novo. Leo Rossatto acredita que ele começou em 2010, quando a campanha de José Serra (PSDB) usou o envio em massa de e-mails para pregar em Dilma o rótulo de “abortista”. A estratégia não impediu a eleição da petista, mas deu trabalho para a candidata apoiada por um presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, que superava os 80% de aprovação.

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"Ficar rebatendo o presidente falastrão nas redes sociais será pouco útil"

As constantes presenças de Bolsonaro soltando suas bravatas homofóbicas e militaristas no CQC e no Superpop foram outro passo. O discurso antes visto como extremista passou a soar como “natural”, “não tem papas na língua”, ganhou o eleitorado e levou Bolsonaro ao Planalto. “Esse pessoal está pautando o debate há oito anos, com os setores progressistas agindo apenas de forma responsiva. É essencial criar uma contra-narrativa alimentada também em várias dimensões e redes, porque é impossível se opor apenas respondendo a pautas, é necessário começar a pautar também”, defende o sociólogo.

Assim, ficar rebatendo o presidente falastrão nas redes sociais será pouco útil. Melhor é partir para a conversa olho no olho e trocar o digital pelo analógico: em vez de xingar muito no Twitter, conversar sobre política com o vizinho e o colega de trabalho; em vez de chorar as pitangas no WhatsApp com os amigos a parentes que sobraram, puxar papo na fila da padaria e do supermercado. Como disse Mano Brown, voltar às bases, não se fechar entre os já convertidos.

O “Vira Voto”, campanha pró-Fernando Haddad (PT) realizada na última semana do segundo turno, não mudou o resultado da eleição, mas pode ser um sinal do que é necessário para os próximos anos.
“Nosso caminho é justamente o contrário do caminho do Bolsonaro. O caminho da internet que fez o fascismo dominar o mundo é um caminho de manipulação, usado a partir do momento em que eles perceberam a identidade de medo, ansiedade e angústia que havia na população. Através da internet, conseguiram que a pessoa que recebesse a mensagem fosse co-autora e replicasse adiante a mensagem de medo. Acho que a mensagem de esperança não é por aí. A solidariedade, o caminho de unidade e de uma política social em que a pessoa se ponha a refletir sobre sua vida, a dinâmica da cidade, as demandas do bairro, é um negócio na base da empatia, olho no olho, ouvir o próximo, mastigar, refletir e dialogar”, prevê Daniel Carvalho, com a experiência de quem fez uma complicada campanha para deputado federal por um partido de esquerda no conservador interior paulista – teve 1.728 votos, ficando longe dos três eleitos da legenda, Sâmia Bonfim, Luiza Erundina e Ivan Valente, mas considerou a missão cumprida estando numa cidade em que Bolsonaro recebeu 56,58% dos votos já no primeiro turno – no último domingo, foram 73,61%.

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“Movimentos precisam se engajar de maneira local. É preciso recuperar a abordagem local, o senso de comunidade. É a ‘solução analógica’ que serve como antídoto à narrativa das redes. E também é necessário recuperar a velha trajetória de que ‘movimento não faz propaganda, faz convite’. Se até vendedor de cosmético é contratado via convite, pelo estabelecimento de uma relação de confiança, não há motivo pra isso não acontecer num movimento social”, defende Rossatto.

"O político hoje faz o que bem quiser, porque a população não tem esse poder de dizer ‘Te derrubo’, ‘Não te elejo’, ‘Não lhe apoio’" – Daniel Carvalho, do PSOL

Daniel vai por um caminho semelhante. “São os movimentos que, na disputa por espaço e poder, fazem com que os políticos eleitos tenham medo da população. Hoje a população está acuada, seja por medo dos políticos ou do desemprego, então o político hoje faz o que bem quiser, porque a população não tem esse poder de dizer ‘Te derrubo’, ‘Não te elejo’, ‘Não lhe apoio’. A força do ativismo é enfrentar isso, ter autonomia, conquistar o coração das pessoas, das comunidades, para fazer e praticar políticas e ter conquistas sociais”, explica o publicitário.



Mas e a ameaça de Bolsonaro de “acabar com os ativistas”? Para Daniel, nada de novo. “As pessoas não devem ter medo. É a mesma coisa do governo Temer, só que agora tem o espantalho que joga bomba de fumaça e chama a atenção. Já existe a repressão aos movimentos sociais, o espancamento de professores e estudantes, são dinâmicas que já vêm acontecendo. O Estado é autoritário, excludente, aristocrático e ignora as demandas populares. O que a gente tem que fazer é valorizar os movimentos, construir laços sociais, ir para os bairros, as famílias, os colegas do trabalho, dialogar e criar esse poder coletivo. Quando a gente tiver empatia e solidariedade entre a gente, não vai ter espantalho que nos espante.”

Já na internet, ainda necessária, é preciso ficar mais esperto, avisa Rossatto. “As redes sociais são cada vez mais visadas pelos agentes do governo. Eles sabem melhor do que ninguém o poder das redes e querem matar movimentos no nascedouro”, diz, alertando para a precaução com a militância. “A repressão é terceirizada para os apoiadores, que fazem movimentos de linchamento virtual e de intimidação, como tem ocorrido não só com militantes de esquerda, mas também com jornalistas”, relembra.

Atenção
Tudo é perigoso
Tudo é divino maravilhoso
Atenção para o refrão
É preciso estar atento e forte
Não temos tempo de temer a morte

Os trechos em itálico, você deve ter percebido, são de “Divino Maravilhoso”, canção de Caetano Veloso imortalizada por Gal Costa no 4º Festival de MPB da Record, encerrado em 9 de dezembro de 1968, dias antes da decretação do AI-5. Significa? Significa.

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