"Poesia sem Fim" é a arte que Jodorowsky quer fazer. Sem concessões
Foto principal por Pascale Montandon

FYI.

This story is over 5 years old.

cinema

"Poesia sem Fim" é a arte que Jodorowsky quer fazer. Sem concessões

Realizador de culto, escritor, autor de banda-desenhada, psicomágico, poeta. Aos 87 anos, o chileno regressa aos ecrãs para contar a sua história.

A mais recente obra do chileno Alejandro Jodorowsky estreia hoje em Portugal, no Cinema Monumental, em Lisboa, num exclusivo Medeia Filmes. "Poesia sem Fim" é um filme autobiográfico, surreal e profundo e por muitos considerado o seu trabalho mais aberto. A viver em Paris há largos anos, Jodorowsky está agora em fase de pré-produção de um novo projecto, que deverá começar a filmar em Maio de 2017. 

Para assinalar a estreia, recuperamos uma rara entrevista, concedida pelo realizador de culto à VICE USApublicada originalmente em Março de 2015, numa altura em que tinha, precisamente, começado a recolher fundos no Kickstarter para a produção da obra que agora estreia. A entrevista abaixo foi editada, por razões de actualidade.

Publicidade

Alejandro Jodorowsky escreveu e realizou clássicos do cinema surrealista, como The Holy Mountain e Santa Sangre. Foi também protagonista em Jodorowsky's Dune, documentário sobre o melhor filme de ficção científica que não chegou a ser feito. É especialista em tarot, além de se apresentar como psicomágico e mimo. Escreveu peças de teatro, bandas desenhadas e musicais. Filho de judeus ucranianos, nasceu no norte do Chile, mas cedo se mudou para a capital do país, Santiago. Aos 24 anos, partiu para França em busca dos criadores do surrealismo. Um pouco mais tarde foi para o México, onde escreveu e realizou filmes como os dois acima mencionados, além de  El TopoTusk e  The Rainbow Thief -equivalentes em 35 mm a uma trip de ácido.

Jodorowsky é um profeta moderno. Mesmo hoje, aos 86 anos, faz filmes tão perturbadores como aqueles que fazia nos anos 70. O mais recente, A Dança da Realidade (2013), conta a história da sua infância no norte do Chile, com um pai que tem uma obsessão por matar o presidente e uma mãe que canta como soprano quando fala. Anões, gente desfigurada e guias espirituais vivem em harmonia à beira-mar.

Hoje em dia, Jodorowsky está envolvido em algo menos mágica e mais moderno: pede doações no Kickstarter para um filme novo, a segunda parte de A Dança da Realidade, que se chamará  Poesía Sin Fin e será baseado na época da sua vida em que chegou a Santiago, até se mudar para França, aos 24 anos. Durante esse período, o cineasta descobriu o sexo, a poesia, a adolescência, a sociedade e a Segunda Guerra Mundial.

Publicidade

Como Jodorowsky é Jodorowsky, por cada dólar que lhe derem, ele devolve em "dinheiro poético", que, garante, em breve terá muito mais valor do que tem hoje (ou seja, nada). Num período em que ainda está a escrever, conseguiu alcançar o objectivo de 350 mil dólares, cerca de 10 por cento do custo previsto para a obra. O projecto no Kickstarter, afirma, é uma luta contra a indústria cinematográfica.

De Paris, Jodorowsky conversou comigo por Skype, instalado no seu apartamento cheio de livros e figuras místicas.

VICE: Como é que Paris te tem tratado?

Alejandro Jodorowsky: Bem, Paris não trata ninguém. Moras nela. Paris é muito tranquila, no sentido em que te permite viver tranquilamente. Não há ninguém a chatear-te continuamente. Estás tranquilo. Ao mesmo tempo, vives no Mundo – não em Paris, no Mundo. Mais do que no Mundo, vives no Cosmos.

Como é que viveste o período do ataque ao  Charlie Hebdo?

Bem, é uma idiotice. Uma coisa idiota que não tem razão de ser. É idiota, porque não é útil para ninguém, nem mesmo para o Islão. Estão furiosos com aquele par de idiotas. Foi um acto de fanatismo que não serve a ninguém, nem ao Islão nem ao Ocidente. É um acto imbecil de intolerância – é o que penso e o que toda a gente também pensa. Eu era amigo do Wolinski. Era uma boa pessoa. Foi assassinado. Não merecia ser morto daquela forma. Era um bom ser humano. Um intelectual com um óptimo sentido de humor. É uma idiotice matá-lo daquela forma. Muito estúpido.

Publicidade

Vamos falar sobre o filme novo,  Poesía Sin Fin.

Cheguei a ele depois de 22 anos de luta a tentar fazer filmes anti-indústria, porque é uma indústria económica. Antes de mais nada, os filmes são feitos para se ganhar dinheiro. É uma indústria económica, não artística. E [os filmes] também são feitos para passar publicidade a cigarros, vinho, ideias políticas, objectos diversos. É uma indústria necessária, como um espectáculo é necessário para libertar as energias. Quando estás preocupado, vais ver um filme. Entras um idiota, repousas a tua idiotice durante duas horas e sais um idiota. O cinema é isso.

Eu vejo a coisa de outra forma. Para fazer um filme experimental, assim como poesia ou uma obra de arte, a primeira coisa é livrarmo-nos da indústria. Isto é, fazê-la desaparecer. Pretendo perder dinheiro. Fazer arte para perder dinheiro, porque é uma vergonha que a arte seja considerada boa quando dá dinheiro. A pintura é a mesma coisa. Se ganhas dinheiro é bom, se não ganhas, é mau. Estou cansado de guerras idiotas. É tão idiota como matar ilustradores que desenham caricaturas.

A indústria da arte está a matar o espírito humano. E não somos assim. Portanto, ao longo de 22 anos, juntei o que ganhei – pouquíssimo, graças à crise económica. Só consegui levantar um milhão de dólares, não gastei e investi metade em A Dança da Realidade. E perdi. Foi um sucesso no Mundo todo, com as melhores críticas, mas não ganhei um centavo. O cinema experimental não ganha um centavo. As distribuidoras ganharam algum dinheiro, os donos dos cinemas também e só. O criador não ganha nada. Depois dessa experiência, decidi que tinha de fazer um segundo filme, a continuação, com os 500 mil dólares restantes.

Publicidade

"Isto é a prova de que a indústria não ama nem a cultura nem o ser humano e de que, se as pessoas se unirem, podem transformar-se em produtoras colectivas e fazer grandes filmes".

Procurei parceiros e disse: "Vamos fazer um filme novo para começar a perder dinheiro outra vez". Pensámos, então em fazer um Kickstarter. No Kickstarter, pedimos 10 por cento do que seria necessário para fazer o filme, mas também para mostrar que as pessoas – sobretudo os jovens – estão cansadas do que o mundo comercial e da arte lhes está a oferecer. Acho que elas querem mostrar que desejam outro cinema, outra coisa, e afirmam: "Se contribuir com dinheiro, vou ver". No Twitter tenho mais de um milhão de seguidores. Por isso, se cada um desse milhão de seguidores me desse dois dólares, teria dois milhões de dólares. Mas não… pedi 350 mil dólares para ver o que acontecia. Ainda só passaram alguns dias e já recebemos cerca de 330 mil sólares em doações.

Isto é a prova de que a indústria não ama nem a cultura nem o ser humano e de que, se as pessoas se unirem, podem transformar-se em produtoras colectivas e fazer grandes filmes. Estou a demonstrar o que um colectivo pode fazer. Vamos conseguir, agora é quase certo que vamos conseguir. É bom que todos nos unamos para fazer a arte que queremos, a cultura que queremos, para que a indústria não nos imponha uma vida que não queremos.

Estou muito velho. Já tenho 86 anos. Portanto, o que me interessa? A fama já não me interessa mais. Estou interessado em criar um trabalho artístico honesto e em demonstrar que se pode fazer isso, que o David pode lutar contra o Golias da indústria.

Publicidade

Still de "Poesia Sem Fim", por Pascale Montandon

Que período da tua vida veremos em Poesía Sin Fin? Será relativo à altura em sais de Tocopilla e chegas a Santiago, certo?  

Tinha 10 anos quando cheguei a Santiago e foi uma mudança feroz. Foi um sofrimento absoluto. O meu pai abriu uma loja em Matucana, um bairro operário cortado pela linha do comboio. Uma vez por semana, o comboio atropelava um trabalhador bêbado, o que era terrível. Comecei a minha vida ali. Fui para a escola e estava nesse bairro onde, todas as noites, havia lutas de facas. Coisas desse género. Matucana era terrível. E, nesse bairro, de repente, descobri uma máquina de escrever e comecei a escrever poemas quando tinha 17 anos. Um dia, tornei-me poeta e mudei a minha vida.

Era a época da Segunda Guerra Mundial, mas o Chile não sofreria, porque estava entre as montanhas e o Oceano Pacífico. Sem televisão, longe do Mundo, com muito dinheiro do cobre e do nitrato de sódio, o Chile era uma festa sem fim todos os dias. O vinho era mais barato que o leite, e, às seis da tarde, já toda a gente estava bêbada. Embriaguez colectiva. E, sobretudo, os melhores poetas estavam lá. Dois prémios Nobel, Neruda e Mistral. Muitos poetas. Portanto, no Chile aconteceu um estranho milagre: a presença da poesia. Bêbados formavam coros e recitavam Neruda. A poesia era respeitada. No Chile, ser poeta era ter profissão: eras poeta. Não precisavas de fazer outra coisa. Era uma vida em que descobrimos a liberdade. Uma actividade intelectual, emocional e sexual intensa. Éramos jovens, no meio do paraíso. É isso que quero mostrar.

Publicidade

"Estes filmes novos são cruciais para o que fiz antes. Mas não os faço por isso. Faço como uma continuação da minha expressão".

Não vais mostrar a época em que foste para Paris e, depois, para o México? 

Vai até à minha ida para Paris. Aos 24, fui para França. Essa é a terceira parte.

Vais fazer uma terceira parte? 

A terceira parte será em Paris. A quarta – se ainda estiver vivo, porque na minha idade morre-se - será no México.

Como é que estes filmes se enquadram na tua carreira cinematográfica? É possível relacioná-los com filmes anteriores?

Sim, porque esses filmes explicam tudo que fiz anteriormente. Há anões, há pessoas mutiladas, porque havia pessoas desfiguradas na minha cidade. Nos meus filmes, transmito mais ou menos o que vivi.

Estes filmes novos são cruciais para o que fiz antes. Mas não os faço por isso. Faço como uma continuação da minha expressão. A idade interior não existe. A idade exterior pode existir. Vês gente velha burra, porque foram crianças burras e eu era um rapazinho inteligente, portanto, sou um velho inteligente. E posso criar.

O último filme e o novo são pessoais. Reúnes o jovem Alejandro com o mais velho. Aconteceu alguma coisa deste género contigo na realidade? 

Conforme vais vivendo, vês-te agarrado à vida e é por isso que sonhas, inventas e todas essas coisas. Mas, aos poucos, os teus dentes começam a cair, o teu cabelo também, aparecem hemorróidas, a pele dá-te comichão e começas a dizer: 'Bem, deste lado tenho a velhice e deste lado a morte' [ coloca uma mão em cada lado da cabeça]. Tenho estas duas senhoras [ indicando as mãos]. Tens um pé no precipício, por isso a arte que fazes torna-se muito mais pessoal, mais profunda. Desta vez, vamos falar sobre as coisas como são, sem as disfarçar.

Publicidade

O jovem Alejandro e o velho Alejandro. Foto por Pascale Montandon

Há uma cena em  The Holy Mountain na qual o herói transforma os seus excrementos em ouro, numa espécie de analogia ao dinheiro. Qual é a importância do dinheiro?

É tão importante para ti, como para mim e para toda a gente. O dinheiro não é felicidade, mas, daqui a mais 200 ou 100 anos, sem dinheiro, não haverá felicidade, porque é como o sangue da vida. Por um lado,é uma peste, um horror, porque provoca guerras. Petróleo, bancos, política, religiões. Estamos numa encruzilhada problemática. Existem indústrias que destroem o planeta para ganharem dinheiro, que nos infantilizam. Todas essas coisas. Por outro lado, o dinheiro ajuda a desenvolver o teu espírito, a ter experiências, a viver como se deve. É como tudo. A energia atómica é ou mortal, ou fornece energia para iluminar cidades. Depende de como se utilizam as coisas.

O dinheiro é uma energia, nada mais. É necessário saber como usá-lo. E estamos a usá-lo muito mal. Dois por cento das pessoas têm quase tudo, e 98 por cento têm muito pouco. Isto não é possível. Além disso, existem muitos preconceitos morais. Temos de livrar-nos disso tudo aos poucos. E esse é o trabalho do artista.

"Se me deres 20 dólares, eu dou-te uma nota de 20 inventada por mim. Dinheiro poético. Mas, se o meu filme for brilhante, esses 20 dólares falsos que te dei valerão dois mil, porque serão uma obra de arte que entrará para a cultura".

Porque é que criaste um "dinheiro poético", que faz parte das recompensas oferecidas no Kickstarter, para o filme novo? 

Publicidade

Em primeiro lugar, o dinheiro poético dá alguma coisa. Durante muitos anos, eu dei-te. Escrevi no Twitter, fiz arte, lutei. Isso serviu-te. A psicomagia curou-te. Agora, dá alguma coisa. Responde. Não peço para dares tudo. Só peço 10 por cento. Responde. Aprende a dar, porque dar é doar e não dar é excluir. Vamos fazer alguma coisa colectiva. As pessoas pagam cinco dólares por um maço de cigarros, mas, quando peço dois dólares para fazer um filme, reclamam. As pessoas não conseguem dar. Conseguem comprar. As pessoas acham que o dinheiro é para comprar. O dinheiro também é para dar. É preciso aprender a dar.

Foi por isso que criei o dinheiro poético. Se me deres 20 dólares, eu dou-te uma nota de 20 inventada por mim. Dinheiro poético. Mas, se o meu filme for brilhante, esses 20 dólares falsos que te dei valerão dois mil, porque serão uma obra de arte que entrará para a cultura. Picasso disse: "Eu faço dinheiro". Como? "Dá-me uma nota de um dólar", respondeu. Ele, então, autografou-a e disse: "Agora vale dez". Com o dinheiro poético, estou a mostrar que não é um dinheiro sem valor, mas uma intenção criativa. E, se eu fizer um filme que rompa limites e valha a pena, quem assumir o risco ganhará muito dinheiro, porque ele vai valorizar.

Será possível adquirir coisas com o dinheiro poético? 

Mais para frente, será possível. Vais vendê-lo como uma pintura famosa. Primeiro, é preciso acreditar que não estou louco, que o filme que estou a fazer será melhor do que o último que fiz e que tudo que já fiz. E se [isso] for verdade, se torceres para que assim seja, esse dinheiro – o teu dinheiro poético – vai valorizar 100 por cento.

Publicidade

Jodorowsky durante as filmagens de "Poesia sem Fim". Foto por Pascale Montandon

Estive a ler o teu livro, no qual estes teus dois últimos filmes se baseiam. Nele falas muito sobre o poeta chileno Nicanor Parra e sobre o profundo impacto que ele teve em ti. Há pouco tempo, Parra completou 100 anos. Gostavas de chegar a essa idade e continuar a fazer filmes, bandas-desenhadas, livros? 

Cem anos é pouco. Quero chegar aos 120.

O Parra, olha… eu tive um pai jovem, dominador e competitivo, portanto tive de procurar arquétipos paternos para preencher essa lacuna em mim, porque, se não tens pai, não te conheces, não te encontras. Tens de encontrar o arquétipo paterno. E, na época, encontrámos isso no Parra, porque estávamos com o Neruda, que era o ás, mas muito político, falava do comunismo, de ego, sentimentos turvos e tantas outras coisas. Estávamos cansados e, de repente, chega o Parra, que era inteligente, um poeta com setido de humor, cómico e formidável. Ele tornou-se um guru, o nosso guia naquela época e também colaborámos com ele. Fizemos um diário. Para mim, o Parra foi muito importante. O Neruda também. Gabriela Mistral também.  Altazor [de Vicente Huidobro]. Todos esses poetas foram mestres para mim.

Estes filmes novos são um acto psicomágico pessoal?  

Totalmente. Não é nada mais que psicomágico. Disse a todos os técnicos: "Vocês vão achar que não sei nada de cinema. Tudo bem, mas sei o que quero e o que quero é curar a minha alma". Por isso, fui filmar em Tocopilla, no Chile, porque é lá que estão as ruas por onde andei, a loja do meu pai, a praça onde eu brincava quando era criança. Portanto, isso vai curar-me e vai curar os meus filhos, porque o meu filho vai interpretar o meu pai e vai ser um enorme choque psicológico entre nós. Vou fazer a minha mãe cantar, vou humanizar o meu pai, vou corrigir a minha árvore genealógica. É um trabalho terapêutico para mim e para todos.

É muito diferente fazer cinema hoje, do que era nos anos 60 e 70? 

É igual, porque, o que fiz nos anos 70, ninguém queria fazer. O primeiro,  El Topo, fiz quase como um caloteiro que assina cheques sem fundo. Estávamos a vender o filme para os Estados Unidos e eu perdia um quilo por dia, porque não o compravam. No México, quase fomos presos. Foi difícil de fazer. Agora, nesta aventura, perco um milhão de dólares. Estou disposto, tem de se investir. Tem de se ser valente. É como jogar a vida: tem de se fazer.

Segue o Camilo no Twitter.