A construção de um assassino em série nos anos 20

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Crime e Castigo no Brasil

A construção de um assassino em série nos anos 20

Como a imprensa e o higienismo de São Paulo condenaram um homem negro sem julgamento.
LF
ilustração por Luiza Formagin

A repórter Marie Declercq é fascinada por histórias de crimes bizarros. Começou com os romances de detetive, mas depois ela sacou que a realidade sempre vence a ficção no quesito crueldade. A cultura da violência do Brasil infelizmente é um terreno fértil, e aqui você vai conhecer os crimes mais bizarros e brutais da história do país.


Uma garoa fina típica da capital de São Paulo espantava qualquer pedestre das ruas naquele dia 13 de fevereiro de 1926 na Praça da Concórdia, no bairro do Brás. Roque Piscillo, de 9 ou 10 anos, normalmente ficava por ali, próximo ao Teatro Colombo.

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Roque era engraxate e se chateava com o movimento fraco do dia, até que um homem alto e negro se aproximou perguntando se o menino poderia ajudá-lo a carregar uma caixa de roupas. Animado com a oportunidade de descolar um troco extra, Roque recolheu seus instrumentos de engraxate e seguiu o homem até a ponte do Rio Tamanduateí, próximo à estação Cantareira.

Quando adentrou em uma rua escura e erma, percebeu que algo estava errado. Era tarde demais. O homem atacou Roque, o segurou pelo pescoço com as mãos grandes para estrangulá-lo. Roque resistiu até o limite, porém não teve chance contra o homenzarrão que o segurava. Ao perder os sentidos, o homem rasgou suas roupas e o estuprou ali mesmo na Rua João Theodoro. Foi embora com medo de ser descoberto, acreditando que Roque estava morto.

Horas depois o menino acordou machucado, sujo e assustado. Conseguiu ajuda com duas mulheres que passavam pela região e foi levado por um taxista até sua casa. A família, com medo, preferiu não prestar queixa.

Roque passou pelo inferno e voltou. Mas a mesma sorte não aconteceu com Antônio Sanchez, José Felipe de Carvalho e Antônio Lemes nos meses seguintes – todos mortos por estrangulamento.

O homem por trás desses atos brutais foi rapidamente identificado como José Augusto “Preto” do Amaral, apelidado pela imprensa de “Monstro Negro”.

No Museu do Crime da Polícia Civil em São Paulo repousa um busto mal feito exibido ao lado de notórios bandidos, assassinos e crimes misteriosos da cidade. O rosto esculpido pertenceu a Preto do Amaral, considerado o primeiro serial killer brasileiro acusado dos três assassinos brutais em 1926.

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Os quatro crimes atribuídos a Preto eram semelhantes. Todas as vítimas eram homens –- embora de idade variadas— pobres, em busca de dinheiro ou um bico para sobreviver. Para adquirir a confiança das mesmas e leva-las até lugares ermos, o assassino as ludibriava com ofertas sedutoras de dinheiro ou emprego fácil. As mortes também eram parecidas, sempre estrangulamento sendo utilizado um cinto ou as próprias mãos. Na época também foi noticiado que o homicida praticava necrofilia com os cadáveres.

Vale mencionar que na época em que Amaral supostamente matou os meninos não havia o conceito de assassino em série para denominar um criminoso que cometia diversos assassinatos com características parecidas. Essa definição só ganhou força entre a polícia e a justiça no final dos anos 1970, quando o FBI começou a estudar e entrevistar assassinos que matavam diversas vítimas para entender e classificar esse tipo de crimes. Se você se interessa por esse tipo de história vai curtir a série Mindhunters no Netflix que conta exatamente como foi a coleta de dados da divisão de Ciência Comportamental do FBI para desenvolver o conceito que conhecemos hoje como serial killer. Inclusive, dá pra ler online o relatório atualizado do agente que começou os estudos, John E. Douglas.

O cadáver de Antônio Lemes foi o primeiro a ser encontrado e investigado pelo Departamento de Segurança Pessoal -- uma espécie de DHPP da época -- e logo foi reportado nos jornais como “O crime da estrada de S. Miguel”. A foto do corpo sem vida e nu de Antônio causou pânico nos cidadãos de São Paulo. Graças ao depoimento de um eletricista, os investigadores apreenderam um “estranho preto” que já fora visto na região almoçando com duas crianças. Ao puxarem a capivara do cidadão, descobriram que ele tinha passagem na polícia. Bingo. Assim começa a saga de José Augusto “Preto” do Amaral.

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Ao ser identificado, Amaral teve seu retrato estampado nas páginas policiais dos jornais da época. O perfil traçado nos impressos era de um homem animalesco, “vagabundo, sem profissão nem vontade para o trabalho”, como escreveu o jornal A Gazeta em janeiro de 1927. Graças à suposta identificação do menino Roque, Amaral foi preso e automaticamente condenado pela imprensa.

José Augusto nasceu em 1871 em Conquista, interior de Minas Gerais. Seus pais eram escravos do Congo e Moçambique, e José foi “beneficiado” pela Lei do Ventre Livre, promulgada no mesmo ano de seu nascimento. Assim que pôde pegar em armas lutou pela República na Guerra dos Canudos em 1897, onde, segundo ele, “colocavam a gente na frente das trincheiras, só os pretos” no interior da Bahia. Após esse evento, tentou a carreira militar em vários estados, mas foi reincidente na deserção – suspeita-se que pelo alto teor de maus tratos e violência dentro do exército contra negros. Foi preso no Rio de Janeiro por deserção e chegou em São Paulo sem emprego fixo, mas recorrendo aos bicos para sobreviver.

Trecho do jornal A Gazeta veiculado em 6 de janeiro de 1927. Imagem: Arquivo Público do Estado de São Paulo.

A jornada de Amaral não era incomum aos milhões de homens negros filhos de escravos no Brasil. A entrada no exército não era algo excepcional, já que o preconceito os impedia de conseguir trabalho regular, e viver de empregos temporários era bem normal em uma cidade tão grande como São Paulo na década de 1920 (e no fim da década de 2010 também, é bom lembrar). Porém, Amaral era um negro numa época em que conceitos de eugenia e a branquificação da sociedade ainda eram fortemente defendidos pela própria medicina, polícia e imprensa brasileira.

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O historiador Paulo Fernando de Souza Campos escreveu sobre o caso em sua tese de doutorado de 2003, “Os Crimes de Preto Amaral”, explicando também o pensamento geral da época e o contexto histórico de um Brasil recém-saído de centenas de anos de escravidão.

“Em São Paulo, havia um grande interesse em determinar a bonomia negro/perigoso como verdade. O movimento eugênico promovido pela Liga Paulista de Eugenia, da qual Antônio Carlos Pacheco e Silva era membro fundador, propunha o branqueamento das pessoas negras como estratégia civilizadora e qualificadora da população nacional, influenciando no distanciamento de branco e negros e dos negros considerados da elite e aqueles que viviam nas fímbrias da sociedade, chamados ‘negros da plebe’”, escreveu.

Na década de 1920 também prevalecia a inserção da medicina higienista na vida do cidadão. Caso ele não correspondesse à lógica do trabalhador de bem, com família construída e “sem vícios” que pudessem o influenciar na prática laboral, ele era considerado um indivíduo desviante e fora da moral do trabalho – construída, vale dizer, após as greves de 1917 que tomaram diversos setores fabris na cidade.

Também era o começo de uma polícia que estava se valendo da ciência para elucidar investigações. Fotografias da cena do crime, exames cadavéricos e avaliações psiquiátricas ganhavam espaço na polícia investigativa e ainda persistem hoje em dia no que conhecemos por “Polícia Científica”.

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As ideias de Cesare Lombroso, infame criminologista, também estavam no auge no Brasil. O pensamento lombrosiano buscava relacionar características hereditárias com a capacidade de delinquir e reincidência à criminalidade se encaixava perfeitamente com a ideia das autoridades que acreditavam que o Brasil precisava se embranquecer para prosperar. Dentre os incontáveis homens e mulheres negros que viviam em situação precária, marginalizada e de abandono do Estado, José Augusto do Amaral era mais um criminoso brutal a ser eliminado das calçadas.

Imagem: Arquivo Público do Estado de São Paulo.

A imprensa da época deitou e rolou na história do suposto assassino monstruoso. Vale dizer que um homem negro na década de 1920 só aparecia em duas ocasiões na imprensa brasileira: na página de esportes e nas páginas policiais. Em reportagens e artigos de “formadores de opinião”, a história de Amaral foi construída para revelar um homem sem piedade, quase como um bicho solto na grande metrópole. Também não hesitaram em tomar a chance de usar o caso de Amaral para afirmar que todos os homens negros carregam as mesmas características violentas. Pior, conseguiram promover uma ideia mais segregacionista ainda de “avisar” aos brancos de que mais monstros negros estavam à solta pelo país.

Não demorou muito após a sua captura para que Amaral confessasse os crimes, mas não se sabe até hoje se estava falando a verdade ou cedeu ao assédio e agressões das autoridades. Na época a confissão era considerada a rainha das provas pelo processo penal e isso consolidou ainda mais a certeza de que Preto do Amaral era um assassino em série. Vale dizer que hoje a confissão não é mais elemento probatório central de uma investigação, e há inúmeros documentários e estudos provando que muitas vezes não se pode confiar no instrumento.

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Haviam sim, poucas provas que ligavam Amaral às mortes afora sua confissão. Além do depoimento do eletricista, Amaral também chegou a levar e apontar para a polícia a localização exata das vítimas no Campo de Marte e foi identificado pelo menino Roque como o autor do seu estupro e tentativa de homicídio.

Os laudos psiquiátricos constataram que Amaral seria um psicopata e necrófilo, muito embora os sinais de necrofilia tenham sido comprovados apenas em um dos cadáveres encontrado ainda fresco – os outros já estavam em estado avançado de decomposição quando foram rastreados pela polícia, tornando impossível a necropsia.

Mesmo após a captura e sua confissão, mais e mais famílias continuavam indo às delegacias para denunciar o desaparecimento de seus filhos. Após cinco meses da sua prisão, Preto do Amaral morreu de tuberculose no dia 12 de julho de 1927. Ele nunca chegou a ser julgado pelos seus crimes – inocente, portanto, de acordo com os preceitos constitucionais.

Em 2012, 85 anos após a história, foi realizado um julgamento simulado de Amaral na Faculdade do Largo São Francisco (USP) em São Paulo, contando com a participação de juristas e atores. José Augusto do Amaral foi absolvido pelo júri em 21 de setembro de 2012 por falta de provas que o liguem efetivamente às três mortes.

O busto, no entanto, permanece no Museu do Crime de São Paulo.

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