Na KidZania, as crianças brincam de ser adultas
Foto por Felipe Larozza/VICE.

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Na KidZania, as crianças brincam de ser adultas

Presente em 22 países, a franquia de parques infantis que recria situações da vida real tem uma versão brasileira e enfileira críticas por sua postura publicitária.

A entrada imita o check-in de aeroporto, inclusive com o logo de uma companhia aérea. Homens e mulheres de uniforme recebem as crianças num tom formal, elas são chamadas de senhoras e senhores a todo momento, pegam seu dinheiro e entram numa cidade imaginária chamada KidZania. Localizado no segundo subsolo do Shopping Eldorado, na zona oeste de São Paulo, o parque infantil, direcionado a crianças de 4 a 14 anos, se presta a recriar um município realista com profissões, tarefas e os ônus e bônus da vida adulta. "Foi muito óbvio o Shopping Eldorado por todo o histórico de 17 anos de Parque da Mônica, já era um destino que as pessoas compreendiam com facilidade para entretenimento infantil", explica o gerente de comunicação Lucio Medina Mattos.

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A diferença entre a KidZania e o mundo real, porém, é que no mesmo dia você pode fazer faculdade, ser fotógrafo, jornalista, publicitário, ator, estrela do rock, joalheiro, artista plástico e mais uma porrada de coisa. São mais de 50 opções profissionais e, segundo os organizadores, a concorrência maior é entre os médicos, bombeiros, carteiros, aviadores, pizzaiolos e policiais.

Foto: Felipe Larozza/VICE

No mundo, existem 24 KidZanias espalhadas por 22 países. Criada no México em 1999, em 2006 teve sua primeira franquia no Japão e chegou ao Brasil em dezembro de 2014 — aqui a entrada custa de 99 a 120 reais para as crianças e 50 reais para os adultos. Para evitar pedófilos e garantir que os pequenos estejam em segurança, não é permitida a entrada de adultos sem crianças. "O que facilita o sucesso da KidZania é exatamente essa pegada de trabalho em equipe com uma experiência imersiva", comenta Lucio. "A grande expertise da KidZania é passar conhecimento para a criança de uma maneira que não seja boring", complementa o gerente de conteúdo Pedro Faria.

É bem verdade que rola uma sensação de estar no cenário de O Show de Truman, principalmente pelo céu artificial, mas é inevitável também sentir, um bocadinho que seja, a euforia de se estar no Playcenter ou no Parque da Mônica (pra quem é de São Paulo e pra quem é um pouco mais velho). É a excitação de tomar as rédeas, de não ter que dar satisfação aos pais, de gastar o seu dinheiro — mesmo que imaginário — da maneira que bem entender. No caso da KidZania você ainda pode escolher seu futuro profissional.

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"A proposta, além da parte educacional, é a independência. A gente convida as crianças a explorarem, serem independentes." — Pedro Faria, KidZania

Segundo a gerência do parque, a KidZania foi homologada pela Universidade Federal do México e há uma preocupação em passar conhecimento aos pequenos. Pedro Faria explica. "A proposta, além da parte educacional, é a independência. A gente convida as crianças a explorarem mesmo, a serem independentes aqui. A gente tem a nossa economia própria, que é o Kidzo, então toda criança recebe o cheque lá no início e se acaba o dinheiro não tem jeito, a gente não vende mais, elas precisam 'trabalhar'".

Foto: Felipe Larozza/VICE

Sim, a primeira vista é um lugar muito legal para a molecada. Mas qual é a treta que tanta gente levantou a respeito deste parque? Bom, temos alguns pontos para colocar em discussão. O primeiro deles é que a grande maioria das atividades é patrocinada por marcas do mundo real. São ao todo 25 sócios comerciais. Pedro Faria explica a postura do local. "O cuidado, que pra gente é muito claro desde as primeiras conversas com as marcas, é que elas estão aqui para apoiar no realismo e é responsabilidade nossa a criação do que é passado lá dentro. O que o monitor fala é uma criação nossa e a gente tem o cuidado de passar ali como se ele fosse um diretor de fotografia ou um chocolatier de verdade. De maneira alguma temos abordagem comercial", ele explica.

Porém, esta abordagem é questionada, e muito, em alguns locais. Isabella Henriques, diretora de Advocacy do Instituto Alana — uma organização sem fins lucrativos que trabalha com projetos voltados para o bem-estar das crianças —, é uma das que se pronunciam contra a KidZania. Henriques afirma: "Achamos que pode ser muito bacana e muito interessante para o desenvolvimento infantil que haja um espaço onde a criança possa ir e tenha a representação de uma cidade, a nossa contrariedade está diretamente ligada ao fato de que existe publicidade e comunicação mercadológica voltada ao público infantil, com menos de 12 anos de idade, direta."

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Foto: Felipe Larozza/VICE

Lucio Medina Mattos rebate à crítica. "As pessoas conseguem entender que a marca está aqui pra ajudar a dar mais realismo pra coisa e pro lugar ficar mais interessante e não pra fazer nenhuma venda de produto. Eu acho que se tivesse uma situação de quando a pessoa saísse da atividade e o pai recebesse algum vaucher de desconto ou a criança comunicasse à família. 'Poxa, mas o tio lá dentro falou que se um dia você for comprar um produto é para comprar aquele'. Se isso acontecesse nós estaríamos muito prejudicados, porque aí você cai no boca a boca e as pessoas não querem seus filhos sofrendo brainwash."

"Entendemos que é consequência da publicidade dirigida ao público infantil valores materialistas, consumistas, a ideia de que para 'ser' é preciso 'ter'."— Isabella Henriques

Este tipo de publicidade, explica Isabella, pode criar laços bem mais fortes do que, por exemplo, um comercial de TV. Ele dialoga com a criança num momento de prazer e euforia. A advogada explica. "Esse formato da publicidade, em que ela promove uma experiência da marca junto à criança, é talvez um dos mais perniciosos no sentido de que a criança já é hipervulnerável nessa relação de consumo. Ela não entende que essa experiência que ele está tendo com determinada marca é uma publicidade, é uma comunicação de mercado. E, além disso, ela vai guardar essa experiência como algo positivo na vida e na memória dela de uma forma muito mais forte do que se assistir a um comercial de televisão de 30 segundos". A diretora do Instituto Alana ainda acrescenta. "A gente entende que é consequência da publicidade dirigida ao público infantil alguns 'desvalores', chamamos assim porque são valores materialistas, consumistas, a ideia de que para ser é preciso ter, de que se é o que se tem e relações afetivas mediadas pelo consumo."

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Foto: Felipe Larozza/VICE

Pedro Faria descreve um pouco da autonomia das crianças. "A gente tem uma lojinha com produtos só em KidZo, que não vende em real. E, dependendo da faixa etária, é muito comum a criança comprar algo de acordo com a quantia que ela tem. Então não é o que eu quero, é "o que você tem aí de 100 KidZos. É bem assim o approach de compra. Até aí faz parte do aprendizado que é: 'Caramba, comprei algo que eu nem vou usar, gastei tudo o que trabalhei tanto'. Elas levam a sério isso. Se ela tivesse guardado, ou passado na faculdade, em dois meses ela teria mais e conseguiria comprar aquilo que, de fato, ela quer."

Uma das principais preocupações com este tipo de propaganda é a obesidade infantil. Segundo a Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (Abeso), cerca de 15% das crianças do país estão na faixa entre o sobrepeso e a obesidade. Na região sudeste as crianças estão num quadro ainda mais alarmante. 38,8% das crianças entre 5 e 9 anos apresentam esses índices. Para os adultos, este quadro chega a metade da população. "Quando a gente fala da comunicação mercadológica, da publicidade de alimentos com alto índice de sódio, gordura saturada, gordura trans, açúcar e de baixo valor nutricional, a gente está falando da obesidade e do sobrepeso infantil como consequência. É claro que essas consequências não são causadas, única e exclusivamente, pela publicidade, ela é só mais um dos fatores que gera esses problemas sociais, mas em determinados casos é um fator muito importante", complementa Isabella.

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Foto: Felipe Larozza/VICE

As críticas à KidZania não são de hoje. Ano passado, o Instituto entrou com uma notificação pedindo respostas das 25 empresas que patrocinam o parque. Dá para ver respostas de 12 marcas e um pronunciamento duro da KidZania Brasil. Em um trecho da nota a diretoria afirma que "não compete ao Instituo Alana determinar o modelo de educação que será seguido por todos os pais e responsáveis do país" e acrescenta que "pretende-se impor um modelo de conduta, de forma arbitrária e radical". O gerente de comunicação Lucio Medina Mattos acusa o Instituto pela falta de diálogo. A diretora do Alana, por sua vez, rebate a acusação: "A gente, em nenhum momento, se negou a conversar com ninguém. Tanto é que a gente mandou uma notificação e não uma interpelação judicial."

Recentemente o Instituto Alana fez uma denúncia ao Ministério Público Federal, na Procuradoria da República do Estado do Rio de Janeiro, em relação a 15 empresas, de vários segmentos, que usam youtubers mirins com alta popularidade para veicular publicidade. E no meio desses casos, havia um envolvendo a divulgação da KidZania. Isabella é categórica em sua definição. "A marca, ao fazer este tipo de publicidade, tem três objetivos: ela quer conquistar o consumidor mirim para ele consumir a marca dele hoje. Ela tem o objetivo de conquistar esse menino ou essa menina como consumidor do futuro, porque a partir do momento que essa relação afetiva com a marca se estabelece, isso é levado para a vida adulta. E o terceiro interesse é que essa criança seja um verdadeiro promotor de vendas dentro da casa, dentro da família, porque a criança tem alto poder de influência nas compras familiares que chega a 70% de tudo o que é escolhido e comprado numa casa".

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Foto: Felipe Larozza/VICE

Alana também recorre ao artigo 37, parágrafo 2º, do Código de Defesa do Consumidor. "É abusiva, dentre outras, a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, desrespeita valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança."

Para finalizar, a advogada faz sua análise sobre o parque: "Eu olho para uma história dessa do KidZania, em que as crianças estão interagindo diretamente com as marcas num momento de profunda alegria e diversão, como uma estratégia de comunicação de mercado que se aproveita sim da 'deficiência de julgamento e experiência da criança'. Eu vejo a ilegalidade dessa ação na sua origem, na proposta, diz ao apontar também um possível caminho: "O parque poderia existir de um outro jeito, ele poderia ter a oficina de fazer sanduíches, mas que ela não fosse patrocinada ou tivessem ícones da marca e essa marca, eventualmente, poderia até patrocinar o parque, mas como um patrocinador institucional, sem estar dentro da brincadeira da criança. Os pais poderiam ver ali no ticket, no folder, todas as empresas que patrocinam, mas não a marca falando diretamente com a criança. Essa é a nossa principal crítica e infelizmente o que a gente vê é o aumento desse formato "experiência."

Foto: Felipe Larozza/VICE

Por outro lado, a KidZania, que permanece recebendo críticas, não teve diminuição no seu número de anunciantes, assim como segue expondo as crianças às marcas. A molecada, eufórica, ouve o anúncio de que as atividades do dia se encerram em 15 minutos. A tropa policial passa com os gritos de ordem. "Polícia KidZania qual é sua missão? Servir, proteger e cuidar do cidadão" e o céu do Show de Truman continua a mostrar um dia de sol.

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