Este artigo foi originalmente publicado no JORNAL DE LEIRIA e a sua partilha resulta de uma parceria com a VICE Portugal.A noite está fria e já pede o conforto de um sofá. Mas, antes da hora marcada, já todos se apresentam a jogo. Depois de andarem a saltitar de campo em campo, a expensas próprias, o ponto de encontro é agora a zona desportiva dos Pousos, onde a união de freguesias local lhes cedeu um espaço para jogar. É aí que todas as quintas-feiras elementos de etnia cigana residentes no Bairro Social das Cova das Faias, em Leiria, se juntam a outras pessoas fora da comunidade para um jogo de futebol muito especial.
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Aqui, não se contabilizam as vezes que a bola entra na baliza e os cartões são substituídos por pedidos de desculpa. O importante não é o resultado desportivo, mas sim os golos que se marcam contra o preconceito e contra a discriminação. E o futebol tem essa magia.A ideia começou a ganhar forma entre as "bocas" que se mandavam enquanto os técnicos da InPulsar – Associação para o Desenvolvimento Comunitário – faziam a actualização dos processos das crianças e famílias envolvidas no Gira Ó Bairro, um projecto de integração social que a associação tem em curso naquele bairro. "Os miúdos iam-nos dizendo que os pais já tinham jogado ou que jogavam futebol. E nós começámos a 'picá-los'", conta Emanuel Pestana, assistente social, que fez voluntariado e estágio no Gira Ó Bairro.Esse "picanço saudável" resultou na marcação de um jogo. Os técnicos, voluntários e amigos da InPulsar compareceram com uma equipa. Do lado da comunidade cigana, aparecem jogadores suficientes para várias formações. A experiência, que arrancou há cerca de um ano, "virou rotina". Faça chuva ou faça sol, quinta-feira é dia de jogo da comunidade cigana com o 'resto do mundo'. Se, no início, havia a tendência de uns e outros se juntarem aos seus pares, com o passar do tempo a formação de equipas mistas tornou-se "natural"."No começo cada um ficava na sua zona de conforto, mas isso esbateu-se. É a magia do futebol a funcionar", diz Emanuel Pestana, que, com um brilho nos olhos, realça o carácter "multicultural" do grupo. "Temos pessoas do Brasil, Madeira, Coimbra, Felgueiras, Figueira da Foz e de outros locais", confirma Ilídio Monteiro, morador na Cova das Faias, que chegou a jogar no GRAP (Grupo Recreativo Amigos da Paz), nos Pousos, mas que agora está afastado dos relvados. É ele que desempenha o papel de treinador.
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No decorrer do jogo, vai dando orientações para dentro do campo. "Achas que te vão passar a bola aí? Desmarca-te", pede a um dos jogadores. "Vai lá ajudar", "passa atrás" ou "segura a bola" são outras dicas dadas pelo mister, que tem também a incumbência de controlar a rotatividade das equipas, para que todos possam jogar. "Trocamos de cinco em cinco minutos ou quando se marcam dois golos", explica, afiançando, no entanto, que "o resultado não conta nada". O que importa, diz, "é o convívio".Não se pense, contudo, que não há ambição na brincadeira. O treinador já traçou o objectivo para esta época, que já começou oficialmente. A meta, revela Ilídio Monteiro, passa por preparar a equipa para participar em alguns torneios no próximo Verão. Este ano, "fizemos apenas um, mas no próximo queremos ir a mais". Mas, para isso, é preciso "pôr a equipa em forma e tirar algumas barrigas", brinca Ilídio Monteiro.Essa não é, de todo, uma indirecta a Adolfo Monteiro, que os companheiros tratam por 'Galino'. Porte esguio, atitude aguerrida, sobretudo quando o picam, como aconteceu no último jogo depois de alguém lhe ter recordado a derrota da noite anterior (3-1) do 'seu' FC Porto, Adolfo é - diz ele e confirmam os colegas - um dos mais assíduos. "Nunca falho. Nem no Inverno. Gosto muito de futebol e do convívio", afirma este nortenho de Felgueiras, que vive há oito anos no Bairro da Cova das Faias.
Futebol funciona como "desbloqueador"
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À camaradagem e à prática desportiva, Emanuel Santos, motorista, natural de Leiria, onde trabalha, mas a residir na Figueira da Foz, junta um outro motivo para participar, sempre que pode, neste encontro semanal, que o obriga a fazer muitos quilómetros: estar com o filho Alexandre, assistente social da InPulsar afecto ao projecto Gira Ó Bairro. "É também uma forma de colmatar a ausência", confessa.Com a experiência a entrar no segundo ano, Alexandre Santos explica que o principal objectivo é "trabalhar a inclusão social", através da relação que se vai criando entre pessoas do bairro onde o projecto intervém e a comunidade de Leiria, uma aproximação que se pretende que, "aos poucos, vá para lá do campo de jogo" e que ajude a quebrar preconceitos".No início havia, de parte a parte, algumas resistências, que foram sendo ultrapassadas", diz o técnico da InPulsar, revelando que, após o jogo, é habitual haver um momento de conversa, que visa "estreitar os laços" entre os participantes. "Um dia, alguém disse que andava à procura de emprego. Um deles, sabia que estavam a recrutar num determinado sítio. Foi uma porta que se abriu", exemplifica.Segundo Alexandre Santos, a iniciativa pretende também estabelecer uma "maior proximidade" entre as famílias e o Gira Ó Bairro, "nomeadamente aos homens da comunidade que, por vezes, tinham uma certa resistência em frequentar o projecto, ou até em confiar no trabalho" dos técnicos. "Aos poucos, essas barreiras têm-se vindo a esbater", diz, com um sorriso rasgado. E conta: "Nos primeiros tempos, tínhamos o futebol à quinta-feira e, na segunda, quando regressávamos ao bairro, falava-se do jogo. O futebol acabou por ser um desbloqueador". É a magia do futebol a funcionar.
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