Visitamos a 'Universidade das Pessoas em Situação de Rua' de Berlim
Todas as fotos por Hakki Topcu.

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Projetos sociais

Visitamos a 'Universidade das Pessoas em Situação de Rua' de Berlim

O projeto oferece a qualquer pessoa em situação de rua uma chance de aprender, uma refeição barata e uma comunidade com que contar.

Dietmar segura firme seu andador enquanto caminha pelo distrito de Schöneweide em Berlim. Ele anda rápido, quase rápido demais. “Ich will nicht zu spat kommen”, ele diz, antes de fazer uma pausa como que para se corrigir. “Não quero chegar atrasado”, ele repete em inglês. E o homem de 72 anos tem que praticar mesmo; ele está a caminho de sua aula de inglês.

A aula é parte do projeto Universidade das Pessoas em Situação de Rua de Berlim, comandado pelo Instituto de Pedagogia Social de Berlim (SPI).

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Os estudantes têm principalmente entre 60 e 80 anos, e podem frequentar 14 cursos variados – de filosofia e religião a artesanato e ioga – que são dados no centro comunitário Strohalm.

Em 2001, Dietmar foi vítima de um atropelamento. O motorista fugiu e ele sofreu várias fraturas e alguns danos cerebrais. Enquanto o homem de 72 anos sobe as escadas que levam até a sala de aula, ele me conta como o acidente prejudicou sua vida. Mas ano passado ele decidiu fazer as aulas para mudar isso e “manter a mente em forma”.

A aula de inglês avançado hoje tem oito alunos. Todos têm mais de 60, mas a professora tem 17 anos. Kim Nitsche é voluntária aqui e, apesar da diferença de idade, parece ter o controle de seus estudantes. “Não vai perder como da última vez”, Nitsche avisa Dietmar enquanto empresta uma caneta. Ele concorda timidamente com a cabeça.


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Mais tarde, Nitsche explica para a classe a diferença entre “nice” e “niece”. “My nice niece!”, diz Dietmar, e a classe toda ri. Quando todo mundo se acalma, Nitsche pede que eles façam um exercício sobre verbos irregulares, e a classe cai no silêncio. Apesar de a sala contar com computadores, seus estudantes, ela explica, preferem “a opção mais analógica de papel e caneta”.

Nitsche dá aulas na universidade há nove meses, em vez de ir para suas próprias aulas. “Me formei no ensino médio aos 16 anos, e preciso de alguma experiência”, ela me conta. Desde que descobriu com essa oportunidade que ensinar dá a ela mais confiança, Nitsche decidiu se tornar professora de primário.

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Dietmar espera que as aulas de inglês mantenham sua "mente em forma".

A Universidade das Pessoas em Situação de Rua foi fundada por Maik Eimertenbrink em 2011. A ideia foi inspirada na Universidade de Graz na Áustria, que oferece aulas grátis para quem quiser frequentar. Eimertenbrink adaptou o conceito para oferecer a qualquer um a chance de dar um curso, independente de ter qualificações ou não. O objetivo, como Nitsche reitera, é “as pessoas aprenderem, não passar em provas”.

A maioria dos estudantes não está totalmente em situação de rua. Eimertenbrink explica que a muitos moram em “conjuntos habitacionais ou abrigos”, enquanto pessoas como Dietmar frequentam as aulas como um jeito de superar um trauma recente.

Depois que sua aula de inglês termina, encontro Dietmar sentado numa cadeira de madeira próxima, cercado pelos colegas de classe. Ele me conta em alemão que tem um apartamento, mas que mora sozinho. Seu tom é otimista, como se algo excitante estivesse prestes a acontecer num futuro não tão distante. “Acabei de fazer 73”, ele me diz. “E agora tenho amigos”, ela acrescenta, olhando em volta. Alguns sorriem com a declaração. “Friends”, ele repete em inglês.

Com isso, Dietmar se levanta, se despede rapidamente e vai almoçar. “É dia de frango com curry”, ele diz, uma refeição que custa só €1,20 [cerca de R$5].

O elenco local ensaiando "O Conto de Fadas Louco".

Uma vez por semana, o grupo de teatro local realiza uma oficina no centro comunitário – decorando o palco com itens criados pelo curso de artesanato da universidade. Hoje, o elenco está ensaiando O Conto de Fadas Louco, onde João e Maria, Chapeuzinho Vermelho e outros contos de fada clássicos se misturam.

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Em uma cena, vemos o lobo andando pela floresta, tentando vender coisas que ninguém quer comprar. “Sou velha e doente!”, diz a vovozinha para a oferta do lobo. “Mas é o melhor uísque, por apenas €4,99”, diz o lobo. Mas ela não quer nem saber. “Eu disse não!”, ela insiste, depois que o lobo tenta empurrar uma “poção mágica” para ela. O animal foge e Svenja, o diretor, grita “Fim de cena!”

Stolpe mostra uma de suas pinturas. Foto por Nik Afanasjew.

A vovozinha é um homem de 53 anos chamado Markus – um alcoólatra que está sóbrio há dois meses. Conheço o lobo quando ele sai do centro para fumar. Seu nome é Rainer, um velho roqueiro de cabelo comprido com vários pingentes pendurados no pescoço, um deles um falcão. Ele tem 58 anos, mas poderia passar por 70. “Passei dez anos nas ruas”, ele diz enquanto acende um cigarro enrolado à mão. “Quando está fazendo menos 20 graus e você tem que dormir ao relento, você se volta para álcool.”

Ele tem uma tatuagem caseira apagada de uma espada no antebraço, criada usando uma caneta tinteiro e três agulhas. “Um acidente da Alemanha Oriental”, ele ri, apontando para o desenho. “Só fiz isso em mim mesmo porque tatuagens eram proibidas na RDA.”

Rainer descreve sua situação atual como “estável”, apesar de, como muitas pessoas na universidade, saber que sua batalha nunca vai terminar. Ele me disse que recentemente tem feito aulas de fotografia e que está estudando para se tornar professor de teatro. “Se salve para ajudar outros – é assim que a universidade funciona.”

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De volta à universidade, entro numa classe onde dois homens estão pintando. “Geralmente ficamos só nós aqui”, diz König, professor de artes. “Tínhamos uma estudante muito talentosa também, mas ela era viciada em pílulas e parou de comparecer, o que frequentemente é o caso com aqueles lutando com algum vício”, acrescenta seu estudante e assistente de meio período, Stolpe.

Stolpe limpa seu pincel num vidro de picles cheio de água para aplicar a próxima cor em sua pintura dramática de um navio lutando contra o mar revolto. “Um tempo atrás, perdi o emprego, minha esposa e meu apartamento”, ele revela, apesar de dizer que tem “uma vida melhor” hoje e que não está mais em situação de rua.

König mostra sua versão de um retrato de Frida Kahlo, com a monocelha dominante e olhos cheios de confiança. “Só pinto com companhia, não consigo pintar sozinho”, me diz König.

“No começo, fiquei pensado em por que aprender a pintar com 60 anos”, diz Stolpe. “Mas a pintura me ajudou a me livrar do vício. Agora tenho 75 e amo meu hobby.” Para Stolpe, a melhor maneira de sair do vício é simples: “Encontre uma paixão que seja grátis”. Um resumo perfeito da Universidade das Pessoas em Situação de Rua.

Matéria originalmente publicada pela VICE Alemanha.

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