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Caitlin Doughty, agente funerária e youtuber. Foto: Divulgação.
Entrevista

Conversando sobre cadáveres e ser devorada por animais com a papa-defunto e youtuber Caitlin Doughty

Agente funerária nos EUA, ela esteve no Brasil para lançar seu livro sobre ritos de morte em diversos países.

Nenhum assunto envolvendo a morte parece afetar o bom humor de Caitlin Doughty. No seu canal Ask a Mortician (Pergunte a uma papa-defunto, em tradução livre), Caitlin responde todo tipo de dúvida e aflições que envolvem desde o que acontece com pessoas que morrem no Monte Everest até qual tipo de animal doméstico seria mais inclinado a te devorar caso você morra em casa (spoiler: são os gatos). Há mais de dez anos trabalhando como agente funerária e autora de dois livros, Doughty esteve em São Paulo pela primeira vez em junho para lançar seu último livro Para Toda Eternidade (DarkSide Books) e participar de um fórum de cemitérios e crematórios.

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A profissão de Doughty está longe de ser uma carreira popular ou almejada entre jovens promissores. Aqui no Brasil, é estranhamente chamada de papa-defunto (ou agente funerária), função que consiste em cuidar de todas as etapas do ritual da morte — do embalsamento do cadáver aos detalhes do velório. Resumidamente, é ao profissional mórbido que você confia o corpo de um ente querido até ele ser enterrado ou cremado. Nos anos trabalhando em funerárias e crematórios nos Estados Unidos, Caitlin passou cada vez mais a perceber o distanciamento das pessoas da morte e a crescente fobia de se discutir o assunto. Embora a morte ser talvez a única certeza universal, o assunto passou a ser tratado como um tabu ou algo ruim de se falar especialmente no século XX e XXI pelo avanço da medicina moderna, confinando a morte em leitos de hospitais como algo particular e asséptico.

Caitlin criou seu canal no YouTube em 2011 justamente para discutir assuntos considerados mórbidos e deprimentes demais para serem tratados com naturalidade. A forma bem humorada e didática da papa-defunto de lidar com assuntos desagradáveis foi um sucesso instantâneo e mantém até hoje um número fiel de seguidores — são quase 800 mil inscritos no YouTube, acumulando mais de 84 milhões de visualizações desde sua criação.

O ativismo de Caitlin para que a sociedade ocidental lide com mais honestidade com a morte não parou só no YouTube. No mesmo ano, a agente funerária criou a Ordem da Boa Morte (“Order of the Good Death”, em inglês) que junta profissionais do ramo funerário, artistas, acadêmicos e interessados a discutir sobre a morte e criar novas formas de encarar o assunto sem fobias. Há quase dez anos, a Ordem da Boa Morte já promoveu eventos nos EUA com a missão de “tornar a morte como parte da vida”.

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As experiências e impressões de Caitlin em crematórios, uma indústria que permanece bastante conservadora e avessa à modernizações, rendeu o livro Confissões do Crematório lançado em 2014 nos Estados Unidos e em 2019 pela DarkSide Books. Seu segundo livro, Para Toda Eternidade, Caitlin viajou pelo mundo para acompanhar diferentes modos de enfrentar o luto e ritos funerários.

Entre banners de novas tecnologias de cremação e sites de compra online de jazigos em um hotel luxuoso de São Paulo, conversamos com Caitlin sobre, claro, a morte e o melhor jeito de lidar com o nosso corpo após a morte.

VICE: Quando você começou a falar publicamente sobre sua obsessão sobre o assunto morte e sua profissão, como as pessoas reagiram a isso?

CAITLIN DOUGHTY: Bom, acho que as pessoas sempre me acharam estranha, mas acho que quando lancei meu canal vi quase imediatamente que as pessoas ficaram “sim, eu gosto disso. Continue fazendo isso.” Acredito que não me tornei uma obsessão nacional porque o assunto é difícil para as pessoas, eu não sou para todo mundo. Porém, foi interessante ver a grande quantidade de pessoas que acharam meu canal e pensaram “bom, ninguém mais vai gostar disso, mas eu gosto”. A verdade é o que todo mundo diz. Tem muita gente pensando sobre a morte e por isso que quero criar um espaço seguro para esse assunto. Você é obcecado pelas pessoas que morreram no Everest porque elas morreram e ninguém consegue remover seus corpos? Sim, é interessante pensar sobre isso, pensar sobre pessoas que arriscam suas vidas para subir uma montanha onde centenas de pessoas morreram lá tentando fazer a mesma coisa. Como elas morreram? Como os corpos delas ficam preservados no local? Tudo isso é interessante e não há nenhum motivo para ter vergonha em querer saber disso. Faz parte da vida e da morte. Eu acho que o problema é quando as pessoas ficam envergonhadas em querer saber mais sobre o assunto.

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Você abre bastante espaço para perguntas no seu canal e qual seria a pergunta mais comum feita por seus espectadores?

Estranhamente a pergunta que mais me fazem se podem ficar com o crânio da pessoa que morreu. A resposta que posso dar é: depende do país que você vive. Nos países mais desenvolvidos como Estados Unidos e Brasil, normalmente não. Não há nenhuma forma de legalmente fazer isso, ao menos que você roube. [risos] No entanto, só pelo fato de muita gente me perguntar isso me faz pensar “vocês todos são mórbidos”. O fato da pergunta número um não ser se existe uma vida após a morte ou se há um ritual bom de fazer, mas sim sobre ficar com o crânio da sua mãe e colocar sob a lareira mostra que todos nós somos mórbidos.

E pensando bem, nem parece tão mórbido assim. Afinal, você quer ter uma memória de um ente querido perto de você.

Exato. Afinal, você também pode manter sob sua lareira uma urna com cinzas, mas normalmente são fragmentos de ossos dentro dela. É uma coisa mais inorgânica. Pense nos elefantes. Tem algo que chamam de “cemitério dos elefantes” onde eles vão e passam por cima de crânios de elefantes que eles conheciam. Foi provado que os elefantes que eles iam visitar eram elefantes que eles conheciam em vida ou eram parentes. Isso prova que nós e outros animais temos esse instinto em comum em pensar “espera, essa foi a mamãe”.

Costumo pensar muito em como as pessoas vão lidar com o meu corpo após a morte. Um amigo meu disse que o sonho dele é ser enterrado pelado direto na terra e acho que esse seria meu também. Afinal, qual é a melhor forma de lidar com um cadáver?

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É um bom sonho. Acho que o jeito mais realista de pensar seria mesmo essa forma de “eu não preciso de nada, só me embrulhe em um pano e me coloque direto na terra”. Honestamente, se fosse escolher seria ser devorada por animais. Sou mais vegetariana agora, mas comi muitos animais no passado. Eu comia eles e, spoiler, sou um animal também e por isso acho que eles também deveriam ter sua vez de me devorar quando morrer.

Bom, em um dos seus vídeos você explica que entre gatos e cachorros, seriam os felinos os primeiros a comer nosso cadáver. Você gosta de gatos?

Sim, por isso gosto de gatos. [risos]. Pensei mais em abutres, mas gatos parecem ser uma boa ideia também. Afinal, muitos animais comem carcaças de outros animais que não foram caçados por eles. Até mesmo animais carismáticos como ursos e leões ainda irão comer um corpo morto. É assim que se sobrevive no reino animal, comendo animais mortos. E eu quero fazer parte disso, desse ciclo natural mostrando que nós não somos melhores que outras espécies. Uma grande causa da destruição do planeta é que nós, seres humanos, achamos que somos melhores do que os outros.

Sobre essa coisa de querer ser enterrado diretamente na terra, tem muita gente que fala que é perigoso, pois os fluídos do cadáver podem contaminar o solo e lençóis freáticos, por exemplo. Isso é algo que pode acontecer?

A ciência provou que isso não é verdade, mas sempre há o fator “eca” que as pessoas têm. Sabemos que se você for enterrar um corpo diretamente na terra você precisa manter pelo menos 1 metro de profundidade, criando uma barreira para as pessoas não sentirem o cheiro na superfície e para animais não te desenterrarem, mas também ajuda a te manter em um solo rico de fungos e bactérias que irão te decompor muito rápido. Quanto a contaminação de água, imagino que se você fizer uma vala comum perto de um lençol freático talvez não seja uma boa ideia, mas você não conseguiria fazer isso porque ninguém te concederá uma autorização para tal. Quando as pessoas falam disso, especialmente na indústria funerária, normalmente usam exemplos bem extremos como “você quer enterrar o corpo da sua mãe em casa? E se ela tiver ebola?” [risos]. Ela não tem ebola, do que você tá falando? Isso não é algo que as pessoas morrem hoje em dia. Se fosse o caso, ela morreria no hospital, em um extremo isolamento e definitivamente não seria enterrada direto na terra.

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É engraçado como as coisas mudaram. Minha avó, no século passado, ainda ia para velórios onde o morto estava sendo velado na mesa de casa. Isso não só era aceito, como era algo que era preciso ser feito.

Sim, é impressionante ver como as coisas mudaram rapidamente. Em como nós rapidamente aceitamos a ideia de como é ok entregar nossa mãe morta, por exemplo, a profissionais. De ter outras pessoas cuidando dela agora, sendo que não muito tempo atrás quem cuidava eram nós mesmos.

Sempre quando penso em cemitérios penso na possibilidade deles serem tratados como locais públicos onde você pode ir para simplesmente ler, descansar ou até fazer um piquenique. Você sente que essa percepção rolou nos Estados Unidos?

Isso está rolando, pelo menos vejo que as pessoas estão fazendo um esforço para que sejam usados como espaços para eventos legais. A Necrópole de Santos, por exemplo, sei que já fizeram apresentações. Em Los Angeles tem shows, exibições de filmes, mas como você mesma disse gostaria que fosse mais visto como um parque. Um lugar para meditar, andar com seu cachorro e tratar como um espaço verde. Sei que na cidade não temos muitos locais assim e cemitérios costumam ter uma presença maior da natureza, então por que não usar isso? Só porque pessoas estão enterradas neste lugar não significa que ele não pode proporcionar um bom contato com a natureza. Uma das minhas melhores experiências com a natureza aconteceram em cemitérios. A parte de acontecer eventos públicos acho legal, até porque revive uma época em que esses espaços eram mais vivos, mas ainda sinto falta dele ser visto como algo mais comum para receber pessoas.

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Bom, você fundou a “Ordem da Boa Morte” que é um grupo que visa discutir sobre todos os assuntos que envolvem a morte. Minha pergunta é como podemos encaixar esse assunto no Brasil. Para muita gente, especialmente as que são mais pobres e moram em lugares com muita violência policial, a morte é algo diário e presente. Muitas dessas pessoas já viram cadáveres indo ao trabalho, perderam seus entes queridos para mortes violentas e assim adiante. Como falar da “boa morte” em uma realidade onde a “morte ruim” é comum?

Penso muito nisso. Eu chamo meu grupo de “Ordem da Boa Morte” e às vezes as pessoas perguntam “ok, mas nem sempre a boa morte está disponível para todos?” Mas é exatamente o que quero dizer, existem níveis absurdamente diferentes de privilégio e acesso à maneiras humanas de morrer. Se você for muito rico, existem hospice [locais onde pessoas em estado terminal podem receber tratamento paliativo para morrer com mais tranquilidade] e se você estiver em um contexto sócio-econômico completamente diferente você pode morrer na rua por causa de uma arma. Existem jeitos muitos diferentes de morrer e o ponto em pensar na “boa morte” não é só dizer que você precisa colocar óleos essenciais no corpo de uma pessoa que morreu ou tocar um instrumento durante o velório dela, mas sim para pensar como nós reconhecemos essas desigualdades e pensar no que podemos fazer para facilitar o acesso à boa morte.

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Nós precisamos falar muito nessas mortes ruins que acontecem toda hora e o que precisamos fazer para mudar isso. Que tipo de recursos precisamos dar à pessoas que perderam entes queridos para uma morte violenta? Nós não podemos transformar uma morte violenta em uma boa morte para a mãe dessa pessoa, mas que tipo de suporte podemos dar para ela poder velar seu filho de forma respeitosa? Ela tem ajuda financeira para isso? Ela tem uma ajuda imediata do governo e da sua comunidade para garantir que ela possa enterrar o filho de forma digna? Nós temos recursos para ajudar a família? Não há nenhum tipo de recurso que possa transformar uma pessoa que morreu de forma violenta em uma “boa morte”, mas não podemos ignorar isso. Pelo menos deveríamos pensar em formas de ajudar essas pessoas. Inclusive, trazer essa discussão para os que estão em posições mais privilegiadas e mostrar que não podemos tratar esse tipo de morte como um problema de outra pessoa.

Pensando na forma que você lida com a morte e nesses rituais, você acha que causou algum tipo de mudança do mercado funerário dos Estados Unidos? Eles gostam de você?

Eu espero que eu tenha gerado algumas mudanças. (risos) Agora quanto a gostarem de mim, depende muito. Se for uma pessoa mais nova, especialmente uma mulher na indústria funerária, provavelmente ela gosta de mim. Porém, se for uma pessoa mais velha, não. Acho que represento uma ameaça pra vida financeira dela e também para sua própria autoestima. Quando você constrói o seu negócio em torno do pensamento de que as pessoas precisam de você para pegar o corpo, cuidar dele e que ele é o profissional e tudo mais e aí aparece uma pessoa que nem eu dizendo que 50 anos atrás você simplesmente colocava a vovó na mesa da jantar para o velório, que a família cuidava de tudo isso sem precisar gastar um centavo só precisando de um caixão e levá-la até seu túmulo e que você pode fazer muita coisa sozinha, eles não gostam. Porque a identidade profissional deles é formada em torno dessa ideia e acredito que eles acham que estou tentando tirar isso deles. Eu entendo, mas ainda acredito firmemente que isso precisa mudar.

Voltando ao Brasil, nós enfrentamos uma ditadura militar muito violenta dos anos 60 aos anos 80 e ainda há muitos desaparecidos políticos e inclusive valas comuns onde os corpos de inimigos do regime eram descartados sem qualquer registro. Até hoje, muita gente enterrada nessas valas não foram identificadas. O jeito que o país lida com seu passado, especialmente seus esqueletos, diz alguma coisa sobre sua própria identidade?

Existem diversas maneiras que outros países lidaram com esse tipo de coisa, boas e ruins. Por exemplo, existe uma expedição arqueológica para desencavar as vítimas do genocídio de Ruanda. Lá também foram feitas valas comuns gigantes para enterrar as vítimas. E quando isso foi feito, muitos especialistas estavam lá para ajudar a identificar os corpos. Existe o grande memorial em homenagem às vítimas não-identificadas do 11 de setembro, onde há fragmentos de corpos misturados com o próprio prédio. Parece ruim, mas é um lugar que as famílias podem recorrer como um espaço silencioso para reflexão. Até mesmo o memorial da Guerra do Vietnã nos Estados Unidos. Afinal, os EUA não foram muito bem no Vietnã, nós matamos muita gente desnecessariamente, vietnamitas e norte americanos, mas você tem esse memorial que lista cada pessoa que morreu. Eu gosto porque ao mesmo tempo que expõe nossa vergonha, também honra a morte dessas pessoas. Pelo menos há uma demonstração em reconhecer isso, que fizemos isso e reconhecer a morte de pessoas que lutaram nessa guerra.

Para Toda Eternidade e Confissões do Crematórios foram lançados no Brasil pela DarkSide Books e estão disponíveis para comprar aqui.

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