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Como a minha depressão fez com que os games ficassem bem mais difíceis

Algo estava errado comigo mais do que eu já sabia que estava.
LF
ilustração por Luiza Formagin
Arte: Luiza Formagin/VICE Brasil

Eu não me lembro como é viver sem depressão. Já faz tanto tempo que ela está aqui que parece até que nasceu comigo. Ficou por muito tempo camuflada, quase misturada na onda de sentimentos novos que surgem na pré-adolescência, esperando para despertar. Quando o fez, foi um baque. Mas segui em frente, me tratei, me tratei mais ainda, e estou aqui. Às vezes cambaleando e aos tropeços, mas aqui.

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Não me lembro como é viver sem depressão, mas me lembro do primeiro jogo que joguei. E do segundo, e do terceiro. Lembro do meu primeiro console. Dos memory cards perdidos. Das idas a locadoras, das fitas assopradas e dos discos arranhados. E me lembro de quando percebi que a depressão tornou toda a minha vida de amante de videogames mais difícil, de uma maneira bem diferente do que eu esperava.

'Undertale'. Imagem: Toby Fox/Reprodução.

Jogando Undertale, aos prantos em uma das últimas batalhas do jogo, percebi que havia algo de errado com a minha relação com os videogames. Ao lado de outras almas – entes caçados pelos monstros do jogo –, a Alma da Justiça surge para te ajudar na batalha, representada por um coração pixelado amarelo, mas me parecia menos simpática e brilhante que as outras. Um amarelo meio morto, sem graça. Uma cor que parecia totalmente fora do contexto heróico e ascendente daquela batalha. Algo estava errado comigo mais do que eu já sabia que estava.

Em Horizon Zero Dawn existem inimigos com partes do corpo amarelas, indicando que eles são mais sensíveis a certos ataques. Apoios em paredes e montanhas também indicam onde Alloy, a protagonista, pode se segurar para escalar, e quando uma cor torna-se quase imperceptível em um jogo em que ela é importante, tudo fica mais difícil e frustrante. Lembro de ter passado a maior parte do tempo nas áreas com neve de Horizon Zero Dawn, mesmo quando os níveis dos inimigos eram claramente mais altos que o meu. Tudo para fugir da sensação de impotência que não enxergar as cores me proporcionava. Ao menos, no fundo branco, elas eram mais perceptíveis.

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'Horizon Zero Dawn'. Imagem: Guerrilla Games/Divulgação.

O level design, que determina a interação da jogadora com o cenário, é uma parte extremamente importante na hora de criar um game. Algumas escolhas de level design são invisíveis ao olho do jogador comum, como os motivos por trás do uso de uma cor em determinado ponto da fase.

A minha dificuldade de jogar vem do efeito colateral dos remédios que não batem bem com algumas escolhas de level design.

De início eu não entendia porque de uma hora pra outra eu era tão ruim em certas situações em diversos jogos, e porque parecia tão fácil para outras pessoas compreender e ultrapassar certos puzzles ou apenas subir paredes. Era bem frustrante e a minha conclusão era sempre a mesma: eu não sei mais jogar esses jogos e devia aceitar a dificuldade fácil. Talvez as frustrações diminuíssem e a diversão voltasse. Fugi de alguns games e franquias pela dificuldade. Se era pra me frustrar, talvez fosse melhor nem chegar perto.

O uso de cor e luz é muito comum no que, segundo alguns game designers brasileiros com quem conversei, pode ser chamado de " environmental guidance": o uso de várias técnicas de level design para guiar o jogador dentro do jogo em direção ao progresso. Um exemplo muito claro de umas dessas técnicas é como o jogo Mirror Edge representa onde o jogador pode escalar: usando a cor vermelha. É vermelho então você escala e consegue progredir, simples.

'Mirror's Edge'. EA/Divulgação.

Agora imagine que esse tipo de função, que te guia para progredir, é desabilitada em todo game que você joga, mas você não sabe disso. E imagine que todo mundo consegue facilmente terminar os jogos assim, e você ainda está preso, pulando sem parar tentando achar o ponto certo para escalar uma barreira. É frustrante.

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Marquei um oftalmologista, fiz mais de dez testes de daltonismo online e volta e meia perguntava para qualquer um que me conhecesse minimamente, "De que cor você enxerga isso?". Todo o estresse causado pela frustração de não entender porque as cores do mundo pareciam cada vez mais sem saturação para mim me levaram a várias crises. E as crises levavam as minhas doses a aumentar cada vez mais, o que consequentemente transforma o mundo num lugar cada vez mais cinza. Abra um editor de fotos qualquer no celular e diminua alguns pontos na saturação de uma foto. Era assim que eu via o mundo, e principalmente qualquer videogame.

'Dark Souls'. FromSoftware/Divulgação.

Eu não posso desmerecer o bem que os remédios me fazem, mesmo que os efeitos colaterais às vezes saiam do meu controle. Poucas coisas no meu dia-a-dia são tão ruins e me deixam tão mal quanto ficar sem remédio. Um dia sem me medicar não é só um dia me sentindo triste. É um dia em que eu provavelmente vou ficar o dia todo na cama, sentindo dores psicossomáticas no corpo e pensando em coisas horríveis. E por mais que tenha sido frustrante não conseguir jogar, eu ainda faço o uso de medicação e entendo toda essa experiência como algo que me fez crescer e entender um pouco mais do meu corpo e da minha mente.

Por isso, quando descobri que a causa da minha visão acinzentada era um dos efeitos colaterais do meu remédio, além de um efeito psicossomático, não fiquei brava, nem tive crises. Diminui com minha médica minha dose até que o remédio fizesse efeito, mas as cores dessaturadas não gritassem com meus olhos. E conversei com a minha psicanalista sobre essa experiência toda, com a promessa de que aos poucos eu faria tudo voltar à sua paleta de cores original.

Estou feliz com as cores do meu mundo e comigo. Sei que não vou ser a melhor jogadora do mundo, mas qual o problema disso? Naquele dia, voltei pra casa com vontade de jogar Dark Souls.

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