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Comida

Um guia gastronômico da Coreia do Norte

Tendo viajado mais de 150 vezes ao país, o inglês Simon Cockerell manja a comida Reino Ermitão — ele indica lamen frio e dispensa ostra com gasolina.

Esta matéria foi originalmente publicada no MUNCHIES

Foto cortesia de Simon Cockerell.

"Você nunca vai ver um norte-coreano pulando uma refeição por vontade própria", diz Simon Cockerell — que neste mês fará sua 150ª visita ao Reino Ermitão, então deve saber do que está falando.

Veja também: Guia VICE para a Coreia do Norte — Parte 1

Como gerente-geral do grupo turístico norte-coreano Koryo Tours, Cockerell, que é britânico, visita regularmente o país desde 2002. Claro, como qualquer estrangeiro visitando a Coreia do Norte, as áreas que ele pode ver são bastante limitadas, e ele e seus turistas precisam estar acompanhados por guias norte-coreanos o tempo todo. Ainda assim, suas visitas permitiram que ele visse um lado fascinante da cultura e dos hábitos alimentares do país.

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A população da Coreia do Norte foi atingida por uma grande fome entre 1994 e 1998. E apesar do regime ditatorial de Kim Jong-Un manter os olhos estrangeiros longe dos pobres do país, grupos de direitos humanos estão sempre reportando a fome como um dos grandes problemas que as massas enfrentam no país mais isolado do mundo.

Simon Cockerell. Todas as fotos cortesia de Simon Cockerell.

Mesmo na capital Pyongyang, a cidade da elite norte-coreana, lembranças da fome afetaram muito a cultura gastronômica do lugar. "Qualquer pessoa com mais de 20 anos lembra de ter vivido a fome", diz Cockerell. "Sendo assim, a comida é muito importante como também a cultura é culinária. As pessoas sabem que perder uma refeição é uma extravagância que eles não costumavam ter, então eles não deixam a oportunidade passar. Não há o conceito de deixar a comida de lado", diz nosso guia.

Veja também: Chapando de comida asiática com Eddie Huang

Cockerell fez inúmeras refeições no país nos últimos 14 anos, juntando opiniões e fotos no seu perfil @simonkoryo do Instagram. Por isso, pedi que ele falasse um pouco sobre as coisas mais interessantes que ele provou na Coreia do Norte.

Lamen frio com trilha sonora

Talvez uma das refeições mais comuns de Pyongyang, este prato tem uma forte tradição cultural.

Simon: Esse é o prato mais clássico norte-coreano, o chamado naengmyeon. Ele é tão clássico que tem até uma música: "Naengmyeon, naengmyeon, Pyongyang naengmyeon!". Música é uma forma de propaganda, então mencionar a comida dá às pessoas um senso de orgulho nacional, e também mostra segurança no sabor do prato.

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A sopa de macarrão fria de Pyongyang é feita de trigo sarraceno. O macarrão em si é preto e servido num molho claro e frio, normalmente com ovo desidratado, alguns pedaços de carne e molho de pimenta. Pode parecer meio bizarro, mas é gostoso.

Longos fios de macarrão [na Coreia do Norte] são um símbolo de vida longa ou casamento longo. Eles servem naengmyeon em todo casamento, e a ideia de recusar o macarrão seria extremamente rude.

Kimchi reconhecido pela ONU

A maioria dos norte-coreanos são ligeiramente obcecados pelo kimchi, e a versão apimentada do acompanhamento já foi reconhecida como patrimônio cultural pelas Nações Unidas .

Simon: Se os norte-coreanos podem ter acesso ao kimchi, certamente eles irão comer isso em todas as refeições. O preparo dura bastante — é um prato feito de ingredientes simples e pode ser enterrado no chão: uma antiga forma de refrigeração.

O kimchi norte-coreano geralmente é mais apimentado que o kimchi da Coreia do Sul. Minha empresa já hospedou muitos coreanos na China, e se comem algumas refeições sem kimchi, eles ficam de mau humor.

Conheço alguns norte-coreanos que trabalham nas Ilhas Maurício. Um deles disse que o lugar é um paraíso, isso porque eles têm frutas e carnes baratas e o tempo é bom, mas o repolho para o kimchi é muito caro lá. É nisso que eles torram seu dinheiro. "Não coma o kimchi" é uma coisa considerada inconcebível de se dizer para um norte-coreano.

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Carne de cachorro é uma "iguaria"

Esse é um prato clichê da Coreia do Norte, mas carne de cachorro só é servida em ocasiões especiais.

Simon: Eles não chamam a carne de "carne de cachorro" na Coreia do Norte, chamam de "carne doce". Pode ser um eufemismo para que as pessoas não precisem dizer que estão comendo carne de cachorro, ainda que não haja vergonha de comer esta carne no país. É uma iguaria e as pessoas provavelmente comem isso apenas uma ou duas vezes por ano, se podem pagar por ela. Muita gente não tem essa opção e raramente come a carne.

O prato que eles geralmente oferecem aos turistas é a sopa de cachorro. Costuma ser um prato bem apimentado e não leva muita carne do animal. Poucos restaurantes em Pyongyang são especializados em carne de cachorro, geralmente servindo costeletas e bifes.

Não é o melhor gosto, mas quando preparado direito é um prato OK. O prato tem um cheiro bem forte e é um pouco pesado. Geralmente acho a carne bem dura.

Não há muitos cães de estimação na Coreia do Norte. Eles têm cães de guarda e nas fazendas, mas a pessoa tem que ser de classe média alta para ter um cachorro de estimação.

Koryo burger: "A pior comida do mundo"?

Geralmente descrito como "a pior coisa que já comi" por estrangeiros que visitam o país, o hambúrguer servido a bordo dos aviões da Air Koryo, as linhas aéreas nacionais norte-coreanas, ganhou uma aura cult.

Simon: A única vez que vi alguém passar mal num avião foi num voo da Air Koryo. Mas acho que foi mais porque o passageiro nunca tinha voado antes, e não porque comeu um Koryo burger.

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Dito isso, você precisa saber que, de fato, o hambúrguer não é muito bom e não fica claro que tipo de carne eles usam [para prepara-lo]. Provavelmente não é carne de cachorro. Ninguém voa com a Air Koryo por causa da comida, mas certamente já devo ter comido uns 30 desses até agora — só quando estou com muita fome.

A maioria dos norte-coreanos nunca voaram [de avisão], e os que voaram foram de Air Koryo. A opção vegetariana do cardápio da companhia aérea é "não coma o hambúrguer".

Cerveja comprada com cupons de racionamento

Em 2000, a Coreia do Norte importou uma cervejaria inteira, a Ushers of Trowbridge do Reino Unido, para a capital Pyongyang para fazer a Taedonggang: agora a cerveja mais popular do país.

Simon: Alguém já foi preso na Coreia do Sul por dizer publicamente que a cerveja norte-coreana era melhor que a cerveja sul-coreana… o que é verdade. A cerveja sul-coreana é horrível — então não é muito difícil de superar.

A Taedonggang agora é a cerveja mais conhecida na Coreia do Norte, batizada com o nome do rio que corre por Pyongyang. A cerveja é racionada — os homens recebem cupons para ter direito a bebe-la todo mês. Essa não é necessariamente a política no país todo, mas é o que acontece em Pyongyang. E lá você pode comprar mais; o "racionamento" quer dizer que você recebe certo número de cupons, não que seu consumo é limitado.

Se quer tomar uma cerveja Taedonggang, você pode ir até um bar mais chique e pagar dois ou três dólares por um pint, ou ir para um lugar mais proletário e conseguir isso por um cupom, ou cerca de 25 centavos.

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A maioria dos estabelecimentos que servem cerveja na Coreia do Norte têm mesas baixas nas quais você normalmente sentaria, mas não há cadeiras. Como no Ocidente, você bebe e conversa nos bares, então é uma coisa fácil de reconhecer. Beber, pagar rodadas, ficar de porre, cantar e ocasionalmente derrubar um pint são coisas que acontecem. Piadas podem rolar, mas sem muito humor político.

As cervejas Taedonggang têm números no lugar de seus nomes: A Um é feita de cevada, água e lúpulo, e é bem boa. A Dois é, mais comum, com cevada, água, lúpulo e um pouco de arroz. A Três é 50% cevada, 50% arroz. A Quatro é mais arroz e a Cinco é cerveja de arroz. A Cinco é repulsiva.

Uma vez, eu estava num grande bar chamado Kyonghungwan com uma equipe de TV belga. A equipe queria filmar as pessoas, então fomos para a mesa que tinha mais mulheres.

Algumas delas falavam inglês; elas eram obstetras e ginecologistas de um hospital de mulheres. Como clássicas funcionárias de hospital, elas tinham acabado de terminar um turno de 16 horas e estavam relaxando. Elas eram as pessoas mais bêbadas lá, fazendo um monte de brindes. Mas esses lugares geralmente são frequentados mais por homens. As mulheres vão aos bares, mas nunca sozinhas.

Soju e makgeolli "caipira"

O abundante e barato vinho de arroz, mais conhecido como soju é a bebida alcoólica mais popular em Pyongyang, enquanto o makgeolli, menos sofisticado, domina o interior do país.

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Simon: É difícil jantar na Coreia do Norte sem álcool, e quem se atrasa para uma refeição geralmente tem que tomar três doses de soju, tipo uma "punição".

Soju é uma água ardente com 18 a 25% de álcool feita de arroz, e é mais forte na Coreia do Norte do que na Coreia do Sul. Não é tão ruim como baijiu [a água ardente mais popular da China] , mas nada no mundo consegue ser.

Makgeolli é uma bebida feita com o mesmo processo do soju; não é tão alcoólica e parece mais leitosa. É gostosa, mas na Coreia do Norte isso é bebida de caipira: o [subproduto] de algo melhor. Em Seul, você encontra makgeolli de todos os sabores e as pessoas bebem isso em bares hipsters.

Para os norte-coreanos, isso é uma coisa sem classe: uma bebida que seu primo idiota do interior bebe, não alguém urbano e sofisticado. Você até consegue makgeolli em Pyongyang, mas as pessoas acham engraçado se você compra uma garrafa. É uma coisa de fundo de quintal para eles.

KHC: batata frita de lamber os dedos

Se o Kentucky Fried Chicken fizesse salgadinho de batata em vez de frango frito, os restaurantes deles seriam mais ou menos assim.

Simon: O KHC, uma barraquinha na Coreia do Norte perto de um estande de tiro e um boliche, vende batata frita estilo chips. Mas ninguém na Coreia do Norte já viu um KFC, então por que se preocupar em copiar? As batatas lembram a Pringles, mas sem sal.

Como as pessoas não reconhecem as marcas mesmo, não há muitos desses restaurantes piratas na Coreia do Norte. Na Rússia você sempre vê os arcos dourados de cabeça para baixo e reconhece o que eles estão tentando copiar, mas na Coreia do Norte eles veriam aquele grande "W" amarelo e isso não significaria nada para eles.

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Já vi xícaras do Costa Coffee em Pyongyang, mas não era um café imitando o Costa, só um restaurante normal. Eles provavelmente compraram sem saber. Nenhum coreano ia chegar lá e pensar "Oh, eles têm Costa Coffee aqui!".

Eles têm uma produção doméstica de batata frita na Coreia do Norte, mas você não vê muita gente andando por lá comendo isso. Se você pede isso no bar, eles cortam o saco com uma tesoura na sua frente e derramam isso no seu prato para dar uma sensação de classe.

Mas como tira-gosto, as pessoas preferem lula seca. Lula seca com mostarda e shoyu desce bem com cerveja.

Comida ocidental (depois de esperar muito)

Apesar da política norte-coreana ser extremamente xenófoba, é surpreendentemente fácil achar opções de comida ocidental em Pyongyang.

Simon: Há mais restaurantes italianos que restaurantes chineses em Pyongyang: três.

O primeiro lugar a servir pizza foi o Pyolmuri Café. Aí, por volta de 2008, um restaurante italiano abriu na cidade. O nome? Restaurante Italiano. O chef coreano estudou na Itália. O lugar foi aberto com assistência internacional e era decente.

Eles também têm lanchonetes. Há demanda em Pyongyang — uma lanchonete em particular abriu uma vez, mas ninguém ia lá, então o lugar fechou. É fácil imaginar que tudo feito na Coreia do Norte é feito "pela" Coreia do Norte. Quando alguém abre uma lanchonete, todo mundo pensa "Kim Jong-Un abriu uma lanchonete!", mas o negócio é aberto por empreendedores que querem gerar lucro.

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Nesses restaurantes de "fast" food, a comida não está pronta quando você chega, eles até têm aquelas prateleiras atrás do balcão, mas nunca tem nada lá. Fazer uma refeição demorada é normal na Coreia do Norte e a maioria das pessoas de Pyongyang têm duas horas de almoço.

Você encontra hambúrguer em vários lugares de Pyongyang agora. Se tiver dinheiro, você pode abrir praticamente qualquer negócio na cidade, só não um restaurante chamado Uncle Sam's All-American Steak House. Isso já seria um pouco demais.

Sushi do nosso antigo opressor

Historicamente, os norte-coreanos deveriam odiar o Japão mais so que os EUA, mas em Pyongyang, muitos moradores adoram sushi.

Simon: Que país a Coreia do Norte deveria odiar mais do que os EUA? O Japão, claro. Apesar disso, Pyongyang tem alguns restaurantes em estilo clássico japonês, com aquelas esteiras rolantes de comida.

Todo mundo que conhece esses restaurantes sabe que isso é comida japonesa. Eles não tentam negar isso, mas os chefs não se vestem como japoneses e você não é recebido em japonês. E o nome do lugar não vai ser Restaurante Sol Nascente de Hirohito ou Ponto do Sushi.

Hoje em dia, acho que algumas dezenas de milhares de pessoas podem pagar para comer em lugares assim, então há mercado para isso. E os restaurantes são muito bons.

Ostras com um toque de gasolina

A melhor maneira de prepara ostras? Os norte-coreanos gostam de jogar gasolina em cima delas e ver o circo pegar fogo.

Simon: Na costa leste, os norte-coreanos preparam as ostras numa folha de metal. Na costa oeste eles jogam gasolina por cima das conchas e tacam fogo. E continuam jogando gasolina até acharem que está pronto.

Eles abrem as conchas batendo no chão, como os macacos no começo de 2001: Uma Odisseia no Espaço . Eles sempre deixam o motorista [do grupo turístico] cozinhar, porque ele é o único que sabe lidar com gasolina.

As ostras ficam fedendo queimado e com gosto de gasolina, e às vezes você pega uma que ficou parcialmente fechada, com gasolina não queimada ainda dentro. Mas isso é parte do jogo.

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Tradução: Marina Schnoor

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