Minhas anotações sobre correr chapado no Jogos do Quatro e Vinte

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Drogas

Minhas anotações sobre correr chapado no Jogos do Quatro e Vinte

As olimpíadas da cultura canábica foram bem normais. E talvez esse seja seu grande feito.

Foto: 420 games

O ano de 2015 serviu para aproximar a cultura da cannabis do mainstream – e essas palavras, "mainstream" e "cannabis", os leitores mais velhos devem saber, nem sempre puderam conviver na mesma frase. O muito falado 420 Games (ou Jogos do Quatro e Vinte, caso prefira), uma espécie de jogos olímpicos canábicos realizados no fim do ano passado em San Francisco, nos Estados Unidos, teve grande importância nessa história de aproximação. Atletas maconheiros, você deve desconfiar, não são fenômeno novo. Ainda que a maconha siga banida em competições profissionais e amadoras, um grande (e crescente) número de esportistas revelou consumir a erva. A campanha atual em prol da legalização total nos Estados Unidos inspirou alguns atletas a admitir uso no passado. Inclua aí nesse hall o deus do atletismo jamaicano Usain Bolt e jogador de beisebol sincerão Bill "Spaceman" Lee, do Red Sox, que diz colocar um tiquinho de maconha nas suas panquecas orgânicas antes de dar sua corridinha até o Fenway Park, em Boston, todos os dias.

O problema é que, com algumas exceções notáveis, as punições exageradas e comentários imbecis associados à maconha fazem com que boa parte dos esportistas fique calada sobre o uso. Na Califórnia, os consumidores de maconha criaramum mercado robusto em torno de um sistema médico quase legal. E muitos esportistas pegam carona nessa. Algumas empresas desenvolvem produtos voltados para atletas, como mastigáveis de cannabis para aumento de resistência. Outras descobriram que seus produtos já existentes – caramelos com altos níveis de THC e CBD no caso da Koma Konfectionz – estavam sendo reutilizados por atletas que buscavam combinar carboidratos de rápida absorção com drogas analgésicas e anti-inflamatórias.

Retrato do autor enquanto jovem, relativamente chapado e extremamente suado. Foto: Stefan Borst-Censullo

Antes de me preparar para o evento, nunca havia misturado maconha com corridas. As competições esportivas me ajudaram a escapar da dor de meu ciclo destrutivo com problemas alimentares na faculdade; de forma semelhante, a maconha se tornou um método para controlar minha ansiedade. Por mais que eu soubesse que ambos os mecanismos funcionavam comigo, combiná-los me deixava meio preocupado. Será que eu acabaria me revelando um "viciadão em maconha"? Será que eu personificaria o irritante fumante em busca de aprimoramentos? ("Você já fez fartleks … CHAPADO?"). Jim McAlpine, que fundou os 420 Games com o objetivo de acabar com o estigma em torno da maconha, meio que previa esse tipo de coisa (todos querendo chapar demais durante o esporte) e quis evitar, por meio de e-mails e materiais promocionais, que a galera entrasse nessa. Chapar no evento era proibido – por mais que alguns determinados indivíduos ficassem pelos cantinhos do Golden Gate Park levantando fumaça longe da vista dos guardinhas. O resultado: todos comemos maconha antes de chegar à linha de largada. Começada a prova, ela se provou bem difícil. O slogan do 420 Games é "Tudo em moderação, menos suor" e, para fazer jus à mensagem, os organizadores incluíram distância extra e subidas no percurso. Barracas dos patrocinadores aguardavam os corredores após a linha de chegada. Empresas menores dividiam o espaço com gigantes do setor como a Kiva e a Eaze, que se apresenta como o "Uber da maconha" e que há pouco recebeu investimentos de ninguém menos que Snoop Dogg. O pessoal do Weedmaps também estava em peso – dependendo a quem você perguntar, o Weedmaps é tipo o Yelp da erva ou a versão da Petrobrás da droga. A corrida parecia um clássico evento do tipo "só na Califórnia mesmo". De certa forma era isso daí mesmo. Mas, como tudo que envolve a droga e o estado, a realidade é bem mais complicada do que a mídia tradicional deixa transparecer. A maconha legalizada pode muito bem se dizer o "negócio que cresce mais rápido nos EUA", com um faturamento de mais de 3 bilhões de dólares anuais. Mas o fato é que, agora que seus operadores dominaram o ideal norte-americano do capitalismo sem limites, faz muito sentido que expandam o setor (e sua legitimidade) por meio do ideal norte-americano da excelência atlética individual. O clima nos Jogos do Quatro e Vinte parecia coisa do Norman Rockwell. Representantes da Eaze estavam ali para encorajar os corredores ao final do percurso – uma das responsáveis pelos pés da maconha da PureCure foi uma das primeiras a terminar a prova, talvez seja bom relatar. Funcionários da Harborside Medical, maior dispensário de San Francisco, faziam piadinhas amigáveis sobre derrotar seus rivais de Berkeley da BPG. Um lutador de MMA cruzou a linha de chegada e cumprimentou a esposa e seu filho pequeno. Era tudo animador e prosaico como qualquer corrida em qualquer outro lugar. As únicas pessoas desapontadas com a corrida, no final, pareciam ser os jornalistas. Eles foram ali atrás de uma história muito louca e se viram cobrindo uma versão mais reggae da Race for the Cure. Azar deles, mas encorajador para todos os outros. Uma corrida absurdamente normal talvez sinalize que as forças do capitalismo maconheiro abraçaram mesmo sua função: fundar um movimento social único. Essa corrida, com seu conjunto diverso de participantes em busca do seu melhor, levando carrinhos de bebê ou só felizes em terminar a corrida, representa o futuro da maconha legal. É a assimilação cultural completa. Ao cruzar a linha de chegada, eu não pensava no possível fim da guerra às drogas. Nem estava chapado. Parecia, mais que qualquer outra coisa, como qualquer corrida que havia participando. Ou seja, foi um dia legal para se estar na rua com gente bizarra que usa lycra. McAlpine, organizador dos 420 Games, parecia passar por experiência semelhante. "As pessoas certas vieram", disse via email. "Todos entenderam a missão. Foi um evento atlético com uma causa, não um evento pró-maconha." É uma coisa humildona essa de organizar uma corrida cujo único objetivo é se assemelhar às demais. E a pura normalidade dos 420 Games talvez seja seu maior feito.

Tradução: Thiago "Índio" Silva