Entrada, principal e sobremesa: comi um menu completo de insetos

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Entrada, principal e sobremesa: comi um menu completo de insetos

Há quem defenda que os bichinhos viscosos vão nos salvar num futuro em que a carne será cada vez mais escassa.

Desde criança, observava os adultos matando insetos com a naturalidade de se piscar os olhos. Achava normal esmagar com meu chinelo, sapato, ou qualquer objeto disponível as pequenas criaturas. O tempo passou e, a partir de experiências de leitura e de vida, comecei a respeitar os bichinhos. Atualmente costumo, inclusive, desviar de formigas que estão em meu caminho. Minha única exceção são as baratas. Quando vejo uma, sinto uma quase ira. Este sentimento me faz bater na bicha até fragmentá-la.

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A ideia que tenho, ou melhor que tinha, sobre essas criaturas mudou depois de um almoço no Kot Café, restaurante localizado no bairro do Ipiranga, Zona Sul de São Paulo, para onde fui à convite do biólogo Casé Oliveira. Além de entusiasta da alimentação com insetos, ele come este tipo de bicho quase todos os dias na hora do almoço — e conta que o ciclo para um inseto ser abatido é de 40 a 60 dias.

Mas antes de você começar a fazer cara de nojo saiba que, de acordo com o estudo da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e para a Agricultura (FAO, sigla em inglês) sobre a segurança alimentar no planeta, a produção e o consumo de alimentos na Terra estão ameaçados. "Não precisa ser estudioso para perceber que os recursos naturais estão sendo cada vez mais esgotados. Tivemos (recentemente) problemas com a distribuição de água e todos os alimentos precisam de água para serem produzidos", afirmou o biólogo. E com essa escassez no horizonte, o estudo da FAO propõe justamente os insetos como uma alternativa alimentar para o planeta.

Casé, o anfitrião. Foto por Larissa Zaidan

Casé teve acesso a esse universo depois de entrar em contato com os trabalhos do professor Eraldo Medeiros Costa Neto, da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), na Bahia. Depois de falar com o pesquisador, ler o relatório da FAO e conhecer o zootecnista Gilberto Schickle, que fundou uma das primeiras biofábricas de insetos no País, a Nutrinsecta, em Betim (MG), o biólogo iniciou uma pesquisa que resultou em um trabalho de conclusão de curso sobre insetos comestíveis. Na sequência, em março de 2015, acabou fundando a Associação Brasileira dos Criadores de Insetos (ABCI), que conta atualmente com 30 membros em dez estados brasileiros e cuja missão é profissionalizar, normatizar e fiscalizar a produção de insetos para consumo no País.

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TENÉBRIOS DE APERITIVO: NOTA 5/10

Tenébrios e outros bichos. Foto por Larissa Zaidan

Ainda que soubesse do currículo do meu anfitrião, cheguei no Kot Café certo de que não queria comer nada do que me fosse oferecido. Perguntei se havia algo alcoólico para beber — precisava criar coragem. Uma cerveja me foi oferecida, mas desceu como água. Enquanto apreciava a cevada, o Casé me explicava que além de alimento, os insetos também são fonte de pigmento de muitas coisas do nosso dia a dia: um inofensivo iogurte de morango, refrigerantes e batons são todos coloridos com corantes produzidos a partir do besouro cochonilha, por exemplo.

E, de repente, ele sacou uma porção de tenébrios, começou a degusta-los e me ofereceu a iguaria. Com muito receio, peguei apenas um, o menor que encontrei. Senti que o bicho estava se mexendo entre meus dedos, pura sacanagem de meu inconsciente. "Nossa, olha como ele está vermelho", constatou o biólogo sobre a cor de meu rosto quando comecei a mastigar a criaturinha.

Senti muito nojo por saber que comia um bicho que já havia engolido anteriormente uma vez, e somente uma, bêbado, junto com uma dose de tequila na qual boiava uma larva deste tipo.

Lindos pirulitos de inseto. Foto por Larissa Zaidan

O sabor não foi desagradável, foi até bom. O problema é que eu precisava quebrar toda a formação cultural que norteia o que considero gostoso ou uma merda para me alimentar. Pensei "é um tira gosto, é um tira gosto" durante o início da tormenta de mastigar a larva.

Se conscientemente me deu asco comer os insetos, umas das minhas surpresas foi saber que a Agência Nacional de Segurança Alimentar (Anvisa) determinou, em 2014, quantidades máximas permitidas de insetos em alimentos industrializados. Quer dizer, a gente come inseto muitas vezes sem nem saber:

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  • 100 fragmentos de insetos para cada 50 gramas de canela em pó
  • 25 fragmentos de bichos de seis pernas para cada 100 gramas de geleia de frutas
  • 60 fragmentos de insetos para cada 25 gramas de café
  • 5 insetos inteiros para 25 gramas de chá de camomila

Passado o primeiro teste com os tenébrios, a mulher de Casé, a gastrônoma Nina Oliveira, nos intimou a subir para a cozinha do café, onde mais iguarias nos esperavam.

Vi contrastando com a superfície branca de porcelana uma coisa que parecia castanha do Pará. "Este é um abdômen de uma barata de Madagascar", informou Casé, gerando em mim uma reação facial que proporcionou gargalhadas entre os presentes.

"Gente, na boa, preciso beber algum drink forte pra garantir o rolê", disse entregando que não teria culhão para rangar aquilo tudo careta.

Por fim, Ana Paula Wenczkoski Homem, proprietária do lugar, chegou com uma garrafa de rum e dois copos. Dois copos foram preenchidos com doses então compatíveis com minha coragem até aquele momento.

Parece um grão de café. Só parece. Foto por Larissa Zaidan

Casé abriu um pote com tenébrios preparados de forma diferenciada. Pareciam grãos de café, vistos de longe. Pegou uma porção dos bichos, como costumo fazer com amendoim em botecos, os jogou dentro da boca e mastigou com gosto. Pode parecer repulsivo, mas um dos lances que descobri apurando a matéria é que esses bichos são ricos em proteína.

Segundo o zootecnista Gilberto Schickler, os insetos oferecem mais proteína, por exemplo, do que as carnes de boi, porco e galinha, além de os bichinhos emitirem quantidades irrelevantes de gases poluentes na atmosfera se comparados aos mamíferos e aves de abate. Só pra você ter uma ideia do valor nutricional dos insetos, a cada cem gramas, o gafanhoto proporciona a ingestão de 65 gramas de proteína; baratas contam com 60 gramas; grilos com 48; tenébrios com 47; formigas saúvas com 42; bois com 20; frangos com 20 e porcos, no fim da lista, com 18 gramas.

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De repente, então, Casé propôs que o vendedor Maicon Lennon experimentasse um grilo. O mano, sem pestanejar jogou um inseto dentro da boca e o mastigou. "É a primeira vez que como insetos. Achei o grilo gostoso, salgadinho. Comeria mais vezes sem crise", disse.

"Os insetos oferecem mais proteína que as carnes de boi, porco e galinha, além de emitirem quantidades irrelevantes de gases poluentes na atmosfera se comparados aos mamíferos e aves de abate."

Bebia minha segunda dose de rum. Por isso, fiquei mais falante, fazendo muitas perguntas e, creio que por isso, fui intimado sem dó pelo Casé. "Você quer experimentar um grilo?"

Senti aquele corpo leve, parecendo uma folha seca, entre meus dedos. Não pensei, joguei o bicho em minha boca e mastiguei. Cada vez que meus dentes trituravam o corpo do inseto, meu corpo também se contorcia em uma inevitável reação de asco.

Por fim, engoli o grilo. E constatei que o Casé me observava aguardando uma manifestação de minha parte. "Cara, o gosto não é ruim. O problema é que é um inseto", afirmei com a mais total sinceridade.

Após isso, matei o segundo rum e, mais solto por causa da bebida, enchi o copo pela terceira vez. Estava quase pronto para o almoço.

SALADA COM LARVAS DE ENTRADA: NOTA 4/10

Salada de folhas, tomate cereja e proteína de soja, temperada com alho, tudo regado com larvas. Foto Larissa Zaidan

Criando coragem para almoçar, Casé me mostrou umas curiosidades do mundo dos comedores de inseto, como dois pirulitos (dentro de um havia uma larva e do outro um grilo). E ele também me contou que comer inseto não é novidade para um bom pedaço da humanidade. Desde pequeno, o biólogo comia a formiga tanajura, ou içá, muito apreciada como tira gosto no interior de São Paul, por exemplo. As fêmeas são capturadas na revoada que fazem para acasalar. Diferentemente dos insetos oferecidos à VICE para degustação, criados em cativeiro, a formiga em questão costuma ser capturada em seu habitat natural (o biólogo alerta para que nenhuma criatura de seis pernas, incluindo formiga, seja capturada na natureza para consumo, pois pode provocar aquele ruim à saúde).

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O que para mim era inédito, porém, é fonte de alimentação há muito tempo. Segundo Casé, estudos feitos em carbono 14 indicam que os primeiros hominídeos a habitar a Terra se alimentavam basicamente de insetos e frutas. E o biólogo também me mostrou um trecho na Bíblia em que o consumo de insetos é relatado. No texto religioso, o profeta João Batista costumava carregar uma bolsa cheia de gafanhotos para rangar, juntamente com mel.

Mateus 3:1-4

"E, naqueles dias, apareceu João o Batista pregando no deserto da Judéia e dizendo: Arrependei-vos, porque é chegado o reino dos céus. Porque este é o anunciado pelo profeta Isaías, que disse: Voz do que clama no deserto: preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas. E este João tinha as suas vestes de pelos de camelo, e um cinto de couro em torno de seus lombos; e alimentava-se de gafanhotos e de mel silvestre".

Minutos depois, chegou o momento que mais temia. "Vamos almoçar."

Alfredo rapando tudo. Foto por Larissa Zaidan

O menu começou com uma salada de folhas, tomate cereja e proteína de soja, temperada com alho, tudo regado sem dó com larvas. Um molho especial de mostarda e mel completava o prato.

Certamente foi o rum, e também o fato de saber que logo menos comeria baratas, mas tracei sem problemas a salada. As larvas deram crocância ao sabor da soja com alho. Não vou mentir que repeti a salada, pois minha primeira porção foi simbólica. "Limpei" a segunda pratada me sentindo orgulhoso.

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Mais relaxado, perguntei se o biólogo acredita que os insetos serão a comida do futuro. "Os insetos são a comida do passado, do presente e no futuro serão muito importantes. É um alimento que já existe. Só que no futuro serão uma complementação da alimentação, pois os recursos (para se criar gado, porco e galinha) estarão mais escassos do que já estão hoje em dia", respondeu.

RISOTO DE BARATA DE PRATO PRINCIPAL: NOTA 1/10

O risoto e as baratas. Foto por Larissa Zaidan

Minha alegria durou pouco quando fiquei cara a cara com o risoto e as baratas. Um filme da minha vida passou diante de mim, destacando-se os momentos em que lembrei sobre as baratas que já havia fragmentado até então pelos chãos da vida. Confesso que tive vontade de tirar minha bota e bater sobre o prato.

Dei uma golada generosa no rum. Garfei risoto, sem barata, para sentir o tempero de Ana. O arroz estava perfeito. Durante alguns segundos me esqueci, de olhos fechados, que estava no local para comer insetos. Quando os abri, percebi, para minha agonia, que a realidade era bem diferente.

Tá poko de barata. Foto por Larissa Zaidan

Por obrigação profissional, garfei mais um pouco de risoto, com uma barata sobre o arroz e, sem pensar, coloquei tudo na boca. "É proteína, é proteína" pensei em vão. Inevitavelmente, meu corpo se contorceu, proporcionalmente ao meu rosto, que virou do avesso.

Senti o crec-crec da barata, o sabor, e não acreditava que estava fazendo isso. Comi mais sete insetos com o risoto, que fiz questão de não repetir.

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GRILOS DE CHOCOLATE DE SOBREMESA: NOTA 3/10

Grilos banhados no chocolate. Foto por Larissa Zaidan

Depois disso, chegaram grilos banhados no chocolate. Ao lado dos bichos, morangos. Este prato tinha um detalhe, os insetos estavam com pernas. "Mastigue na lateral dos dentes para evitar que alguma perninha enrosque entre seus dentes", me orientou Casé.

"Os insetos são a comida do passado, do presente e no futuro serão muito importantes para complementação da alimentação."

Comi cinco grilos. Não é ruim. O sabor lembra castanha e camarão. Mas meus preconceitos culturais prevaleceram e, após uma perna do inseto enroscar entre meus dentes, queria voltar para casa para desinfetar minha boca.

OS CONVERTIDOS

A proprietária do espaço em que experimentei o menu de insetos, a Ana, provou das iguarias oferecidas para a reportagem e gostou. Um casal de clientes, abertos a novidades, também consumiu o risoto de baratas — com um ingrediente que me dá arrepios só de lembrar (a barata de Madagascar).

Ana nunca tinha comido insetos.

Ana, destemida. Foto por Larissa Zaidan

"Resolvi comer primeiro por curiosidade de conhecer o desconhecido. No início estava com receio, é lógico, você olha (para os insetos) e a princípio não é muito agradável. Mas depois que você fecha o olho, esquece que está comendo um e começa a degustar, nossa, achei muito gostoso. O grilo achei excelente."

Após a experiência, ela garantiu que incluiria no cardápio de seu restaurante opções antropoentomofágicas.

Perguntei sobre os dois risotos com baratas que desceram para clientes. "Como eu gostei, tentei passar (a experiência) para as pessoas que estavam lá embaixo. O pessoal aceitou experimentar. Ficaram um pouco com receio no começo, fizeram aquela carinha (de nojo), mastigaram e, por fim, acharam gostoso e aprovaram."

BUCHADA

Depois do almoço com insetos, na volta para casa, parei em um boteco. Pedi uma cerveja e comecei a digerir toda a experiência que havia tido. De repente, fui interrompido e me ofereceram sarapatel (comida típica do nordeste feita com vísceras e sangue de porco). Neguei a oferta, afirmando não gostar do rango. Me senti um hipócrita, pois havia comida insetos horas antes.

Assim que terminei a cerveja, fui a uma lanchonete e pedi um hambúrguer. É, melhor aproveitar enquanto é fácil de conseguir um desses por aí.

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