Os soldados brasileiros torturados durante a ditadura militar
Raimundo Pereira de Melo foi um dos soldados recrutados para eliminar a Guerrilha do Araguaia. As imagens que ilustram o documentário foram cedidas pelos próprios entrevistados. Crédito: Divulgação

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Os soldados brasileiros torturados durante a ditadura militar

O documentário ‘Soldados do Araguaia’ mostra como militares que combatiam a guerrilha foram torturados pelo próprio regime.

O documentário Soldados do Araguaia tem menos de uma hora e meia, mas a impressão é de durar três, quatro, cinco horas. O trabalho do documentarista carioca Belisário Franca em conjunto com o jornalista paraense Ismael Machado conta a história de soldados de baixa patente que atuaram no sul do Pará para combater a chamada Guerrilha do Araguaia, formada por integrantes do Partido Comunista do Brasil. Hoje, os ex-soldados relatam uma vida pós-Araguaia pautada por pesadelos, medo e traumas. "Vejo fantasmas toda hora", conta um dos oito recrutas entrevistados.

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Entre os milhares de militares enviados para esmagar os guerrilheiros do PCB, entre 1967 e 1975, estava um batalhão formado por cerca de 60 ribeirinhos, selecionados por conhecerem bem a região ao longo do Rio do Araguaia. Sem receber nenhuma informação sobre a missão para qual foram designados, os recrutas foram "preparados" na base da tortura. Eram alvo de espancamentos, obrigados a tomar sangue de cobra ou de boi coagulado, colocados no pau de arara e também cobertos de açúcar para serem atacados por marimbondos e outros insetos. Alguns relatam que suas famílias foram perseguidas e torturadas no curso da missão. Os relatos são de terror. Além das torturas, os recrutas eram instruídos a usar da violência contra os ribeirinhos da região para arrancar e informações e também a cortar qualquer tipo de plantio das casas. Até a captura e morte de praticamente todos os guerrilheiros, os soldados foram obrigados a testemunhar torturas e descartar os "sacos de cocos" -- basicamente cabeças decapitadas pelas Forças Armadas.

No término da missão, os soldados foram desligados do Exército sem direito à aposentadoria e sequer um documento comprovando a passagem pelo serviço militar. Ficaram apenas com as lembranças de Araguaia, pesadelos e feridas psicológicas. Um dos entrevistados, revoltado com a negação do Exército sobre sua história, chega a desabafar: "me dá vontade de dar um tiro na cabeça".

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Parte dos recrutas já no meio da selva, no sul do Pará. Ex-militares entrevistados relatam ter passado por torturas cometidas pelo próprio Exército para "prepará-los" na guerra contra os guerrilheiros do PCB. Crédito: Divulgação.

Os testemunhos dos recrutas despertaram estranheza durante a Comissão da Verdade ao pedirem assistência psicológica aos profissionais da Clínica do Testemunho. O programa, formado por psicólogos, recebia até então civis torturados pelo Exército — as vítimas "convencionais" — e não figuras da própria repressão. Segundo Belisário, os psicólogos da clínica do testemunho tiveram que primeiro superar a desconfiança daquela história que chegou até eles. "Logo ficou claro, no entanto, que os fardos emocionais e físicos de alguns combatentes eram tão pesados quanto aqueles das vítimas civis, com o agravante de que os soldados ainda se encontravam do 'lado errado' da História", conta o diretor à VICE por e-mail.

Em 2016, Belisário lançou outro documentário sobre outra história foi varrida para baixo do tapete. O Menino 23 - Infâncias Perdidas no Brasil fez alarde ao contar sobre a infância de crianças negras sequestradas, na década de 1930, e obrigadas a trabalhar em um sítio nazista no interior de São Paulo que fabricava tijolos marcados com uma suástica. Soldados do Araguaia também expõe a pouco mencionada na história do país. "Vivemos tempos turbulentos e é importante entender como chegamos até aqui, de quem somos herdeiros", analisa o documentarista.

Em uma época em que muita gente se ocupa em revisar a história da ditadura militar e amenizar a repressão do Estado junto às torturas e perseguições, o documentário de Belisário se mostra necessário e urgente para provar de uma vez por todas que a "ditabranda" só existiu para poucos.

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Soldados do Araguaia foi exibido na 41ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e ainda não tem previsão de ser exibido nos cinemas do país. VICE: Indo um pouco além do que foi dito no documentário, como foi todo o processo de negação das Forças Armadas durante a Comissão da Verdade quando esses relatos vieram à tona?
Belisário Franca: A negação e invisibilizaçāo do que se passou dentro das Forças Armadas é um dos produtos do terror de Estado e da censura vigentes durante a ditadura. Sabemos que as Forças Armadas não são homogêneas, tal como não é a sociedade. Uma parte dela hoje entende que democracia e valores humanos são valores indissociáveis. Uma política de direitos humanos imperfeita, gera uma débil e limitada democracia. Durante o trabalho da Comissão da Verdade essa divisão apareceu com setores das Forças Armadas que buscaram abrir as informações do período e outros setores que não foram receptivos aos trabalhos da Comissão. A discussão do que foi o período da ditadura e suas consequências ainda pode e deve ser mais aprofundada. O resultado do trabalho das Comissões da Verdade em todo o país ainda não foi suficientemente discutido e apropriado pela sociedade civil.

Qual foi o desafio em retratar a histórias destes homens 40 anos depois? Todos os personagens abordados toparam falar ou tiveram os que preferiram ficar em silêncio?
O desafio foi criar condições para o ato de romper a barreira do silêncio e deixar a fala de cada um deles fazer surgir o que ficou do passado e fica insistindo ainda no presente. Mais do que uma entrevista, o que está em jogo aqui é o dispositivo do testemunho. Quando cada soldado começa a narrar, o que emerge é o trabalho da memória. Não se é testemunha para si, nem se testemunha sozinho. É um ato em que o sujeito se implica em sua história e implica os que estão na cena do testemunho. É falar ao outro da história mais ampla e também se fazer ouvir pelo outro. Mapear onde estavam os soldados dispostos a falar e ganhar confiança de cada um deles para o filme foi a etapa mais difícil por conta dos traumas e desconfianças. Alguns deles preferiram o silêncio por medo de reviver esses traumas.

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"A guerrilha do Araguaia foi aterrorizante para todos que estiveram envolvidos. Combates entre militares guerrilheiros do Araguaia e as Forças Aramadas se deram dentro de um estado totalitário."

Nos relatos da ditadura — como uma das psicólogas fala muito bem no documentário —, é muito mais comum ver militares na posição de torturador. Por que é importante resgatar relatos do "outro lado" durante esse período?
O terror atuava fora das instituições do Estado, mas também dentro do Estado. Espero que esses relatos dos soldados de baixa patente sejam escutados com a atenção devida para a construção da verdade do que foi o terror de Estado naqueles 21 anos de ditadura militar. Um dos desdobramentos da Comissão da Verdade foi a Clínica do Testemunho. Procurados por militares, os psicólogos das Clínicas do Testemunho, acostumados a ouvir as vítimas "convencionais" do terror do Estado, precisaram superar a rejeição inicial que sentiam diante desses agentes. Logo ficou claro, no entanto, que os fardos emocionais e físicos de alguns combatentes eram tão pesados quanto aqueles das vítimas civis, com o agravante de que os soldados ainda se encontravam do "lado errado" da História e, portanto, não recebiam suporte de outros grupos dedicados ao resgate dos direitos e memórias das vítimas da ditadura. Havia também as constantes – e nem sempre veladas – ameaças das Forças Armadas para que se mantivessem calados. Conhecer essa história e entender a extensão e complexidade desse silenciamento pode servir para jogar luz em sombras do nosso passado.

Em um dos momentos do documentário, um dos ex-militares conta que os guerrilheiros capturados eram atirados de helicópteros numa cachoeira próxima. Apelidavam essas mortes de "viagem para Brasília". Crédito: Divulgação.

Você lançou outro documentário que mostra uma naturalização do silêncio da sociedade quanto às ideias eugenistas, ao nazismo e ao trabalho escravo durante uma época. Agora, com o Soldados do Araguaia, você acredita que nós, brasileiros, temos uma tendência a banalizar a violência ou minimizá-la?
Vivemos num tempo em que muitos alimentam a ideia de que "o melhor para a sociedade é dirigir o olhar para o futuro", para fazer do silêncio sobre o passado uma norma. Essa postura é ingênua e entrega nossos destinos nas mãos de quem quer fazer prevalecer versões edulcoradas da realidade brasileira. Ao examinarmos a situação do Brasil, que saiu da ditadura sem que o tempo de violações tenha sido suficientemente passado a limpo, verificamos que ele está entre os países que mantêm um alto padrão de violência. Ser a nação que prefere a negação — do racismo, da violência, do machismo, do extermínio das populações indígenas — permite a perpetuação dessas práticas.

Você conseguiu criar um clima de terror bem angustiante no documentário. Desde as imagens da selva, dos animais até a trilha sonora lenta com os barulhos dos mosquitos. Isso ajuda o espectador a criar uma empatia com os homens que estão falando de um período de trevas da vida deles?
A guerrilha do Araguaia foi aterrorizante para todos que estiveram envolvidos. Combates entre militares guerrilheiros do Araguaia e as Forças Aramadas se deram dentro de um estado totalitário. Soldados de baixa patente originários da região, população ribeirinha, indígenas e os militantes do PC do B sofreram os horrores de uma guerra suja também confirmados por relatos dos moradores da região e pelos militantes. O filme buscou trazer cinematograficamente a atmosfera sufocante em que todos os envolvidos viveram aqueles momentos.

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