A era silenciosa do isolamento compulsório de leprosos em São Paulo
Acampamento de hansenianos na Estrada de Pirapora, entre a década de 1920 e 1930. O estigma da doença era tão grande que os portadores eram afastados das cidades e montavam acampamentos na beira de estradas para sobreviver. Todas as imagens de registro foram reproduzidas pelo Felipe Larozza e concedidas pelo Museu de Saúde Pública Emílio Ribas/Instituto Butantan.

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A era silenciosa do isolamento compulsório de leprosos em São Paulo

Com o apoio da sociedade e o suporte incondicional da imprensa, o Governo do Estado de São Paulo caçava portadores da hanseníase e os jogava em asilos.

Entre 1930 e 1960, o Governo Estadual de São Paulo se dedicou intensivamente em separar a população sã dos portadores de hanseníase a qualquer custo. O Departamento de Profilaxia de Lepra caçava a laço as pessoas que manifestassem qualquer tipo de sintoma da hanseníase e jogava-os em asilos-colônias sem o aval das famílias, espaço em que era comum o paciente permanecer preso por muitos anos sem qualquer direito.

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Muito antes de se discutir a decadência do jornalismo atual, principais jornais paulistas em circulação na época prestavam apoio incondicional à política higienista do Governo Estadual, dando carta branca na persistência do isolamento compulsório durante quatro décadas sem nenhum tipo de empecilho ou críticas. O tema, agora, é fruto de uma pesquisa de dois anos do jornalista Guilherme Gorgulho, autor do livro À Margem das Páginas que mostra como a imprensa paulista da época contribuiu para o sucesso do isolamento compulsório dos hansenianos.

A dissertação do mestrado de Gorgulho trata sobre esse momento nefasto na história de São Paulo e foi publicada em 2013 sob o título "Isolamento compulsório de hansenianos: o papel dos jornais paulistas na manutenção do degredo (1933-1967)", gerando o livro que o jornalista lançou nesse segundo semestre.

A hanseníase é conhecida popularmente como Lepra ou mal de Hansen (nome atribuídos ao seu descobridor, Gerard Amauer Hansen) e é uma doença infecciosa que causa danos severos aos nervos e a pele. É uma das mazelas mais antigas na história da Medicina e era vista como uma forma de castigo divino para quem a carregava, este ficando com marcas, manchas e irritações extremas na pele ou, em casos muitos severos, chegando a levar a deterioração das extremidades do corpo.

Em São Paulo, a epidemia cresceu consideravelmente no final do século XIX e começo do século XX por conta do movimento imigratório europeu durante o ciclo do café. Com a epidemia se espalhando pelo Estado, a solução que o Governo adotou foi construir uma infraestrutura massiva, dividida entre cinco asilos-colônias (conhecidos como leprosários), para internar indiscriminadamente qualquer pessoa que portasse a doença ou que apresentasse suspeitas.

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Um dos registros sobre a doença em São Paulo. A década de 1930 foi o auge do isolamento compulsório de leprosos e era uma política muito aceita pela imprensa e pela sociedade. Foto por Felipe Larozza e registro concedido pelo Museu de Saúde Pública Emílio Ribas/Instituto Butantan.

Os cidadãos eram capturados pelo Departamento de Profilaxia da Lepra e passavam anos sem qualquer contato com exterior, sem direito a contratar um médico particular ou sequer consultar um advogado. Os asilos-colônias — Sanatório Padre Bento, em Guarulhos (1931); o Asilo-Colônia Pirapitingui, em Itu (1931); o Asilo-Colônia Cocais, em Casa Branca (1932); o Asilo-Colônia Aimorés, em Bauru (1933); e o Asilo-Colônia Santo Ângelo, em Mogi das Cruzes (1928) funcionavam como campos de concentração onde os pacientes eram abandonados pelas famílias por causa do estigma da doença, submetidos a experimentos médicos e carecidos de qualquer direito básico de um cidadão. A política de isolamento de hansenianos era tão amedrontadora que pouco conseguiu ajudar no combate efetivo da epidemia já que quem carregava a doença se escondia ou fugia para outros Estados para não ser capturado e trancafiado nos asilos-colônias.

Um dos fatores mais importantes para a política perdurar por quatro décadas foi o apoio incondicional da imprensa à política de saúde adotada pelo Governo paulistano que elogiava sem melindres o isolamento compulsório nas suas reportagens e também contribuía para a disseminação do estigma dos hansenianos. Focando na imprensa paulistana, Gorgulho baseou sua pesquisa nos quatro jornais paulistanos Estado de São Paulo, Folha da Manhã, Folha de São Paulo e Folha da Noite . Na investigação, o pesquisador reuniu cerca de 200 textos avaliando como a imprensa da época teve um papel importante para que a política higienista do Estado de São Paulo fosse bem-sucedida.

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O interesse pelo tema começou quando Gorgulho fazia um trabalho voluntário no Arquivo Público de Mogi das Cruzes, sua cidade natal, onde existiu um dos asilos-colônias mais populosos do Estado e ainda abriga alguns pacientes remanescentes do período dos campos de concentração para hansenianos. Segundo ele, a exclusão social continuava mesmo após os pacientes serem liberados dos asilos, já que muitos deles eram abandonados pela família e não conseguiam arrumar emprego por ainda serem tachados como "leprosos". Assim, os pacientes retornavam aos leprosários.

Foi somente nos anos 2000 que o Governo Federal reconheceu os danos irreparáveis da política higienista e sanitarista contra os pacientes muitos deles abandonados pela família e afastado dos seus filhos, concedendo a pensão vitalícia para as pessoas prejudicadas pelo isolamento compulsório. A parte curiosa é que mesmo com o histórico de combate à doença, o Brasil ainda é o segundo país do mundo com o maior número de portadores da doença — são trinta mil casos de Hanseníase anuais, perdendo apenas da Índia em primeiro lugar.

Além das reportagens selecionadas dos quatro jornais, Gorgulho também entrevistou personagens e testemunhas da era de isolamento compulsório no Estado como a médica Maria Augusta Tibiriçá Miranda, filha de Alice Tibiriçá, uma das principais ativistas em prol dos hansenianos, o jornalista e médico Júlio Abramczyk e também o médico André Cano Garcia, que trabalhou nos quatro leprosários e dirigiu três deles na época. Para entender melhor como tudo isso aconteceu, batemos um papo com a jornalista e autor do livro.

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VICE: Por que você se interessou pelo tema?
Guilherme Gorgulho: Fiz um trabalho voluntário no Arquivo Histórico de Mogi das Cruzes (SP) que é de onde sou. Lá foi onde surgiu o primeiro dos asilos-colônias, o Santo Ângelo. A partir desse contato que tive do Santo Ângelo, fui visitar os pacientes remanescentes que ainda moram lá e achei que era um bom gancho para uma pesquisa. Acabei juntando a questão da imprensa que já tinha visto em alguns estudos sobre a história da hanseníase em São Paulo dizendo que a imprensa teve um papel importante em tudo isso, mas vi que eram necessários alguns estudos mais a fundo para saber qual foi essa posição que a imprensa tinha tomado e o porquê isso aconteceu.

Você avaliou quantas reportagens ao todo? Foram quatro jornais diferentes que você consultou, não?
Isso, foi o Estado de São Paulo, Folha da Manhã, Folha de São Paulo e Folha da Noite . Foram duzentas reportagens, artigos, editorais e todo tipo de texto, exceto os publicitários e os que não tinham tanto interesse do ponto de vista jornalístico. A grande vantagem desses jornais que peguei foram os sistemas de busca digitalizados que você consegue selecionar algumas palavras chaves e facilmente abordar um período muito grande. Seria um trabalho descomunal se fizesse a seleção manual desse período muito grande, da década de 30 à década de 1960. A questão da tecnologia facilitou bastante.

Os pacientes que acabavam desenvolvendo a doença de uma forma mais severa chegavam também a ficar com deformidades no rosto. Acontecia mesmo perder partes do corpo em estágios avançados.

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Bom, sobre a hanseníase: li que são quatro ou três tipos diferentes da doença, sendo que apenas uma delas é contagiosa. E por que então existia todo esse pânico em volta da doença?
São três tipos e só um deles é contagioso. É uma doença das mais antigas, conhecidas desde a Antiguidade. A questão da deformidade causada pela doença acabou sendo muito associada com uma praga divina, aspectos da mentalidade religiosa ou relacionada com alguma coisa meio mágica que acabou atrapalhando a contenção da doença, mesmo na fase científica do estudo dela. O bacilo da hanseníase foi só descoberto no século XIX. Inclusive, muitas doenças eram atribuídas erroneamente à hanseníase. Qualquer doença de pele já se achava que era um lepra. Isso acabou atrapalhando muito um combate mais racional da doença mesmo tendo elementos científicos para tal e também influenciou em qual tipo de política para adotar.

A primeira coisa que me vem em mente quando escuto esse termo 'leproso' são aquelas representações de pessoas perdendo os membros do corpo. Isso acontecia mesmo?
A doença ataca principalmente as extremidades. Mãos e pernas, especialmente, e também ataca a pele e nervos. Quando a doença ainda não tinha cura, existiam apenas medicamentos paliativos. Os pacientes que acabavam desenvolvendo a doença de uma forma mais severa chegavam também a ficar com deformidades no rosto. Acontecia mesmo perder partes do corpo em estágios avançados. Em meados da década de 40, foi descoberta a cura, as sulfonas, e partir de então poderia ter sido adotada uma política diferenciada do isolamento irrestrito dos pacientes, mas não foi o que aconteceu.

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Apresentação de ginástica no asilo-colônia Santo Ângelo, em Mogi das Cruzes, um dos principais locais que marcam a política de isolamento compulsório no Estado de São Paulo. Crédito: Museu de Saúde Pública Emílio Ribas/Instituto Butantan.

Por que São Paulo foi palco dessa política do isolamento compulsório?
São Paulo teve uma questão da endemia muito grande desde o final do século XIX e início do século XX por conta do movimento imigratório na época do café. Existia muito imigrante chegando e a doença começou a se proliferar pelo estado inteiro. Com isso, como São Paulo não tinha muitos recursos na época e o Governo Federal não indicava uma política centralizada para saúde, o Estado acabou adotando essa política de isolar de forma irrestrita todo tipo de manifestação da doença. Se alguém já tivesse qualquer manchinha na pele, algo que não necessitaria ser isolado, ele já era sequestrado da família e muitas vezes caçado a laço pela polícia sanitária de uma maneira completamente desumana. Acontece que outros estados brasileiros adotaram uma política mais humanitária de isolamento, principalmente pelo isolamento domiciliar. Era uma forma mais aceitável já que a pessoa poderia ser tratada em casa e não ser tirada da família de uma forma abrupta, quebrando todos os vínculos familiares e perdendo seus direitos civis. As pessoas isoladas eram privadas de votar, de ter acesso à justiça independente. Existia toda uma estrutura dentro dos asilos-colônias que impedia qualquer contato dos pacientes com o exterior. Quem estava lá dentro só podia ter acesso aos médicos do Estado, já que era proibido médicos particulares atendessem a hanseníase. Com isso, o estado conseguiu controlar de uma forma muito eficiente a opinião sobre essa política.

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Um dos registros de 1936 sobre o auge do isolamento compulsório em São Paulo, revelando a predileção do Governo do Estado pela internação de portadores da hanseníase. Crédito: Museu de Saúde Pública Emílio Ribas/Instituto Butantan.

O modo de isolamento compulsório é muito parecido também com a questão do Juquery, hospital psiquiátrico de Franco da Rocha que recebia membros indesejados da sociedade para a internação. Você acredita que eles usaram isso como referência para lidar com os hansenianos?
A questão é que o Estado de São Paulo tinha uma mentalidade de isolar qualquer parte doente da sociedade, mesmo que isso causasse problemas posteriores para elas ou se direitos não fossem respeitados. A ideia era que a população sã ficasse isolada dos doentes, não importa a que custo. Houve um custo financeiro muito alto para manter essa estrutura, mesmo sendo ineficiente, já que a endemia se expandiu apesar de toda essa política de isolar indiscriminadamente. Havia um espírito forte na questão do eugenismo chegando a ser discutido tratamentos eugênicos em portadores da hanseníase como exames nupciais (das pessoas só se casarem se houvesse um exame que comprovasse que não tinha doença), ou até cirurgias para que os pacientes não tivessem filhos.

Essas ideias fluíam muito por aqui, inclusive com muito espaço na imprensa, especialmente por causa da Segunda Guerra Mundial na Europa. Só depois do fim da guerra, com o surgimento das denúncias dos horrores dos campos de concentração depois de 1945, que isso começou a mudar. Mesmo quem tinha uma opinião favorável a eugenia começou a frear essas ideias porque viu que não havia mais um espaço na sociedade brasileira para esse tipo de coisa. Porém, é importante dizer que isso foi discutido na imprensa e foi cogitado, sim, por pessoas importantes na época.

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E mesmo com o isolamento compulsório a endemia continuou a se espalhar pelo Estado de São Paulo? As pessoas chegavam a se esconder?
As pessoas sabiam que iam ser presas e ser jogadas em um sanatório pelo resto da vida sem nenhuma perspectiva de saída. Então elas escondiam a doença. O que era muito comum eram as denúncias vindas de um parente, vizinho ou gente que de alguma forma tenham visto alguma coisa. Todas as denúncias era feitas perante o Departamento de Profilaxia da Lepra, que era o órgão do Estado de São Paulo que controlava todas essas políticas. E essas pessoas eram caçadas e presas contra sua vontade.

E os jornais que você analisou começaram a adotar essa postura em prol do governo do Estado já na década de 1930?
Sim, já na década de 1930 e, a partir das minhas pesquisas, essa postura foi se modificando um pouco na década de 1950 quando houve questionamentos nos congressos internacionais de Lepra sobre a eficiência do isolamento compulsório. Entretanto, no Brasil e, particularmente, em São Paulo, se fazia vista grossa para essas questões. Acabavam não dando o braço a torcer e o que se via na imprensa eram notícias dizendo que a política de saúde do Estado era a melhor do mundo. Muitas pessoas de outros países chegaram a visitar São Paulo porque realmente essa estrutura do isolamento era muito grande, muito cara e muito diferenciada em comparação ao resto do país. Assim, a imprensa destacava as visitas de cientistas, médicos de outros países dizendo que o isolamento era eficiente e que estava sendo a melhor política para a situação.

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Fotos das instalações do asilo-colônia de Cocais. A maioria dos asilos funcionavam como pequenas cidades, porém os benefícios só eram conferidos àqueles que tinham dinheiro para pagar. Crédito: Museu de Saúde Pública Emílio Ribas/Instituto Butantan.

Mas nesse período a imprensa não chegou a receber denúncias sobre essa situação do isolamento compulsório? A imprensa não sabia que algo estava errado em toda essa estrutura para evitar a disseminação da hanseníase?
Isso é bem interessante, porque consegui achar na minha pesquisa um relatório de 1944 de uma militante pró-hansenianos ligada à Cruz Vermelha Brasileira chamada Conceição de Costa Neves, que depois se tornaria deputada estadual por muitas gestões aqui em São Paulo. A Conceição fez um relatório para o Governo do Estado de São Paulo mostrando os problemas que ela verificou nos leprosários em 1944. E ela levou um jornalista junto, que trabalhava em vários jornais importantes da época em São Paulo, e o depoimento dele sobre tudo isso é que eles recebiam cartas nas redações, mas tamanha era a influência da política do Departamento de Profilaxia da Lepra dentro da imprensa e da sociedade paulista que eles achavam que não eram denúncias verdadeiras e não davam ouvidos para essas críticas.

As famílias os abandonavam e logo cortavam o contato porque não queriam que a sociedade soubesse que havia um paciente com hanseníase na família, tamanho era o estigma da doença.

Chegou um momento que o volume dessas cartas aumentou muito, porque o que acontecia dentro desses asilos-colônias era tão absurdo que chegava bem próximo aos campos de concentração. O Estado fez um controle tão efetivo de tudo isso que até as cartas dos pacientes eram censuradas. As correspondências enviadas aos familiares eram todas abertas e se continha qualquer tipo de crítica ou manifestação contrária ao que estava acontecendo, ela não era enviada. Era muito difícil para o paciente que estava isolado naquele lugar poder se manifestar de alguma forma crítica. Existiam as visitas de parentes, mas eram poucos os que continuavam ao lado de um paciente diagnosticado com a doença. As famílias os abandonavam e logo cortavam o contato porque não queriam que a sociedade soubesse que havia um paciente com hanseníase na família, tamanho era o estigma da doença. Então quando havia essas raras visitas, sempre tinha um guarda circulando entre os pacientes e os parentes para ouvir as conversas e evitar qualquer denúncia. Foi sistema muito bem pensando para que essas críticas não viessem à tona. E a imprensa também fez vista grossa, ela podia ter sido mais crítica e pensando na questão humanitária da situação, mas o que concluí é que havia uma espécie de pacto entre a imprensa, a classe médica e o governo para defender o isolamento compulsório, teoricamente em defesa da população sã do Estado.

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Então existiu mesmo, digamos assim, uma aliança entre a imprensa, a classe média e o Estado para manter o isolamento compulsório?
Exatamente, ainda mais porque existiram manifestações contrárias durante essa época. O período mais rígido da internação compulsória em São Paulo foi entre 1930 e 1945, quanto houve a superlotação nos asilos-colônias, má alimentação e atendimento médico precário, porque a pessoa era internada e ficava anos sem receber um atendimento. Em 1940, houve uma Habeas Corpus impetrado na justiça pelos pacientes do Asilo Santo Ângelo que foi parar até o STF, pedindo que eles tivessem direito de constituir um advogado particular e de se tratar com um médico de sua escolha, coisa que eles não tinham direito lá dentro. O Estado impunha que somente o procurador do Departamento de Profilaxia da Lepra podia representar esses pacientes na justiça. Esse recurso foi negado pelo STF. Então, tem coisa que poderiam ter tido um destaque maior na imprensa e não tive. Existiu também a questão da Revolta de 1945, uma revolta armada que sequer teve uma cobertura completa na imprensa de São Paulo.

Nada foi divulgado sobre essa Revolta de 1945?
Nos jornais que eu pesquisei, não foi citado. O que eu achei foi o Diário da Noite com algumas reportagens denunciando, mas foi uma coisa muito específica e muito particular que não teve uma repercussão tão grande, levando em consideração do tamanho que era o problema. O que acontecia também é que depois que foi descoberta a cura da doença, com as sulfonas, em meados de 1940, os pacientes até começaram a ter alta, só que eram pacientes que tinham deformidades. Para sociedade não existia um ex-leproso, a pessoa era considerada doente pelo resto da vida, mesmo não transmitindo mais a doença. O estigma permaneceu, as pessoas não conseguiam arranjar um emprego, não conseguiam uma casa para morar, ninguém conseguia alugar um imóvel, a família já perdia contato e elas acabavam voltando para o asilo porque eles viviam como párias na sociedade já que não havia mais espaço para elas.

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[Nos sanatórios] tinha superlotação, falta de atendimento médico, haviam experimentos médicos e científicos — muitos deles contra a vontade do paciente.

Como eram as condições gerais nos cinco sanatórios de São Paulo?
A estrutura era grande, eram milhares de pessoas em alguns deles. Em termos de números de internos não dá pra dizer exatamente qual era o maior, mas o de Itu vivia superlotado. A estrutura era dividida assim: quem tinha dinheiro tinha benefícios. Eles podiam comer em um restaurante, que eram pago, mas a grande parte dos internos não tinha acesso aos benefícios porque eram pessoas sem recursos. Então, a estrutura não era boa. Tinha superlotação, falta de atendimento médico, havia experimentos médicos e científicos — muitos deles contra a vontade do paciente. De injetar azul de metileno, que é uma coisa muito comum que médicos narram na época, sendo que não tinha nenhuma eficiência nisso. Se o paciente se negava a participar de um experimento eles eram presos numa cadeia dentro do próprio sanatório. Tinha inclusive uma delegacia lá dentro. E essas pessoas eram jogadas lá e ficavam até quando o diretor do sanatório decidisse sua saída, sem qualquer direito a recurso sobre a decisão.

Foto da cadeia que existia dentro da estrutura gigante dos asilos-colônias de Pirapitingui. Os próprios pacientes eram responsáveis pelo funcionamento das instalações. Porém, sempre sob o controle autoritário do Departamento de Profilaxia da Lepra. Crédito: Museu de Saúde Pública Emílio Ribas/Instituto Butantan.

Como aconteceu a Revolta de 1945?
A Conceição da Costa Neves tinha um programa de rádio e de alguma forma ela conseguiu receber algumas dessas denúncias sobre os asilos-colônias. Como acontecia muitas vezes de ter fugas dos asilos, apesar de toda a estrutura rígida, muitos conseguiam fugir e procuravam ajuda, além de escrever cartas para a imprensa. A Conceição acabou organizando tudo isso através de audiências nos asilos.

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No final de contas, o governo acabou cedendo às reivindicações dos pacientes, por um período curto. Porque havia toda estrutura lá dentro possibilitando que os próprios pacientes tomassem conta da maior parte das coisas lá dentro, e então havia um prefeito em cada um desses asilos colônias. Só que esse prefeito não era eleito pelos pacientes, ele era escolhido pelo próprio diretor do sanatório para defender os interesses do governo lá dentro. Dentro dessa estrutura, quem era eleito prefeito acabava se beneficiando por ter um cargo de poder. Depois que teve a revolta, o governo decidiu autorizar que houvessem eleições para decidir esse prefeito. Lá dentro havia também uma câmara.

Nossa, eram pequenas sociedades mesmo.
Exatamente, tiveram alguns leprosários do Sul que tinham até moeda própria. Se não me engano em Santa Catarina, tamanha era a organização.

Mas em São Paulo, o governo acabou voltando atrás pouco tempo depois de ceder. Depois da Revolta de 1945 teve uma outra revolta um pouco menor que chamaram mais de uma greve, porque suspenderam os trabalhos lá dentro em protesto em 1946. Mas em geral não houve grandes avanços.

Quando que o isolamento compulsório acabou de vez?
O Governo Federal decidiu acabar com essa medida em 1962, só que São Paulo, com toda a prepotência dos paulistanos sobre essa política, acabou simplesmente ignorando essa determinação do Governo Federal e acabou mantendo o isolamento compulsório até 1967.

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A questão do isolamento compulsório de dependentes químicos é uma coisa que está em voga em São Paulo. É uma política que foi equivocada no passado, mas que pode retornar novamente com essa questão dos dependentes.

Você chegou a comentar que ainda existem pessoas recolhidas naquela época aqui em São Paulo. Isso confere?
A questão é que depois que acabou o isolamento compulsório as pessoas não conseguiram simplesmente sair de lá depois que os portões abriram. Elas não tinham para onde ir e acabaram voltando para as colônias, são os chamados de egressos. Acredito que são cerca de 100 pessoas atualmente em Mogi das Cruzes e acho que em Itu é um pouco mais. O Estado foi obrigado a acolher essas pessoas. Mas o Brasil só acabou aceitando o erro do passado em 2007 quando decidiram pela pensão vitalícia desses pacientes que acabaram isolados contra a sua vontade. Existe a ONG MORHAN que é a mais atuante nessa área dos direitos dos hansenianos criada da década de 1980, cuja luta mais atual é a questão dos filhos isolados dos pais e levados para a adoção ou instituições. E esses filhos estão se organizando para processar o Estado por alienação parental.

E para fazer uma ponte, para não parecer só que estamos discutindo sobre um passado distante que não tem muita ligação com o momento atual, essa questão do isolamento compulsório de dependentes químicos é uma coisa que está em voga em São Paulo também e o Brasil discute isso também. É uma política que foi equivocada no passado, mas que pode retornar novamente com essa questão dos dependentes.

Você comentou que apenas um tipo de hanseníase é contagioso. Na época, os jornais faziam essa distinção ou tratavam tudo como se fosse contagioso?
Em geral, não. Esse tipo de minúcia não era mencionando, era apenas informado que a lepra é uma doença altamente contagiosa, segundo o conhecimento da época, mas já se sabia na época que o contágio se dava só com o contato íntimo e prolongado do paciente. Ou seja, era mais um familiar que tinha um contato diário ou uma pessoa que trabalhasse muito próximo a pessoa. Mas não é algo que se você tocar, abraçar ou cumprimentar vai pegar assim de imediato. Porém, a imprensa não teve nenhum cuidado para tratar disso, mesmo quando a cura foi descoberta a sociedade continuava com preconceito.

O Marcos Rey fez uma série de reportagens para a Folha da Manhã em 1949 sob o pseudônimo Lucas d'Ávila, reportando com um tom humanitário, algo raro de ser ver na imprensa da época, sobre as péssimas condições que as pessoas que saíam dos asilos-colônias enfrentavam com o estigma da doença. Poucos sabiam também que o escritor tinha a hanseníase e vivia em segredo com esse fato, revelado a poucas pessoas. Você quem descobriu a autoria dessas reportagens?
Sim, tive certeza quando vi um livro dele que tinha o mesmo nome que uma das reportagens dele sobre o tema, chamada "Os Cavaleiros da Praga Divina". Ele guardou a vida inteira esse livro, e nele havia até o nome de personagens citados nas reportagens. Elas, inclusive, eram muito características porque citavam escritores que eram do gosto do Marcos Rey. O irmão dele, Mário Donato, era editor-chefe na Folha e o Marcos já fazia trabalhos como jornalista para a Folha. Com isso, consegui afirmar com toda a certeza que se tratava mesmo do Marcos nessas reportagens sobre os egressos. O livro inédito do Marcos só foi publicado em 2015. Descobri esse fato em 2011 quando estava ainda fazendo essa pesquisa e a viúva dele me mostrou o livro.

Todo ano, o Brasil diagnostica cerca de 30 mil casos de hanseníase, é um absurdo o país ainda não ter conseguido erradicar a doença.

Durante sua pesquisa você sentiu alguma aproximação do tratamento dos leprosos com essa questão mais atual da dengue, zika, e chikungunya?
Olha é muito fazer complicado fazer uma ponte específica sobre isso sem fazer uma análise mais a fundo, eu realmente não sei. A questão é que a imprensa muitas vezes não dá o devido olhar para algumas doenças. Algumas coisas acabam virando notícia por conta de uma epidemia que está acontecendo no país, mas a hanseníase é uma doença que afeta até hoje o país, só perdemos da Índia. Todo ano, o Brasil diagnostica cerca de 30 mil casos de hanseníase, é um absurdo o país ainda não ter conseguido erradicar a doença.

Existe um relatório feito a pedido do Governo do Japão no início dos anos 2000 para entidade analisar os erros das políticas de isolamento compulsório no país e os problemas humanitários que isso causou aos pacientes. Uma das conclusões foi que a imprensa teve um papel fundamental ao omitir esses casos, porque se a imprensa tivesse um olhar crítico no Japão, o isolamento compulsório teria terminando antes. Esse relatório não foi feito aqui, mas com certeza ele poderia ajudar muito para entender que a imprensa teve um papel em tudo isso e que ela omitiu o papel de ser fiscalizadora do Poder Público e se eles tivessem exercido essa função as coisas seriam diferentes e nós não estaríamos pagando esse preço até hoje.

As redações tinham censuras prévias ao tratar desses casos de hanseníase?
Não, não havia esse tipo de censura, tanto é que o Marcos Rey fez essa série de reportagens em 1949. As reportagens sobre a questão ou era pra denunciar algum paciente que havia fugido ou era para falar que a estrutura asilar era fantástica e maravilhosa e o Estado estava cumprindo o seu dever. O Estado levava um grupo de jornalistas em uma visita guiada e era esse tipo de reportagem que existia na imprensa. Não havia uma censura prévia, não havia um olhar crítico e não havia um interesse pelo assunto que pudesse questionar a ação do governo.

Entrevistei um médico chamado Julio Abramczyk que foi repórter na Folha desde 1960 e ele que noticiou no Jornal o fim do isolamento compulsório, mas ele fala que não teve um olhar de jornalista na questão humanitária e não deram o devido cuidado e importância para essa questão da hanseníase como deveria.

Existiu algum tipo de retratação da imprensa?
Mais ou menos, só lá pra 1967 quando o isolamento estava acabando mesmo que começaram a sair algumas reportagens mais críticas denunciando essas medidas, mas as opiniões mais contundentes criticando o isolamento eram mais de articulistas e não de editorias ou reportagens.

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