Eu era uma jovem recém-formada em busca de um emprego e quando me dei conta tinha me tornado junior broker em uma das maiores corretoras de valores do país. Mas o que uma jovem progressista do Partido Democrata está fazendo no meio da piscina de tubarões de Wall Street?De forma muito simplificada podemos estabelecer o mercado de capitais como um grande garimpo, como a mítica Serra Pelada: a corretora tem uma licença para explorar ouro em Serra Pelada. A Corretora recruta jovens ambiciosos e lhes oferece a oportunidade de buscar ouro, além de ensinar as habilidades e oferecer as ferramentas necessárias para ser um garimpeiro. No garimpo, assim como no Mercado de Valores, persistência, consistência nos golpes de enxada e sorte são elementos essenciais para se encontrar ouro ou abrir contas de clientes milionários buscando ficar ainda mais ricos. Durante o percurso, o garimpeiro dedicado vindo de uma universidade importante, com alguns idiomas e experiência na bagagem, vai encontrar algumas pepitas, maiores ou menores, mas o que quer mesmo é encontrar um grande veio, tirar todo o ouro para pagar os rentistas e garantir comissões em dólar caindo em sua conta corrente. Parecia bastante simples e lá estava eu, junior broker na Serra Pelada do Mercado de Capitais.
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Eu não era exatamente uma hippie, mas minha visão política à esquerda, as rodas mulheristas africanas faziam de mim exatamente o oposto de um conservador ou neoliberal (me desculpem o termo) como eram ou diziam ser meus novos colegas de trabalho. Mas mesmo assim, eles viram algo em mim. Descobriram que por trás daquele coração vermelho batendo do lado esquerdo do peito existia uma jovem muito ambiciosa. E não importava se para comprar um carro de 200 mil reais ou se para fundar uma ONG para crianças carentes, todos estavam lá pelas verdes eu não era uma exceção.A possibilidade de garimpar no mercado em nome de uma grande corretora me intrigava e eu sentia que de certa forma meu valor social tinha aumentado. As pessoas agora respeitavam que eu fazia. Mesmo quando eu dizia que era uma pessoa boa, que estava lá por acaso, as palavras "investimentos internacionais" ou "produtos financeiros offshore" faziam olhos brilharem e sacavam suspiros de orgulho. Que sorte eu tinha, diziam eles, enquanto eu tentava entender um mercado imaginário onde mais da metade de todos os ativos financeiros do planeta estão investidos e não conseguia não pensar que estamos todos numa grande merda.Jesse Souza em sua obra "A Tolice da Inteligência Brasileira" explica que "O economicismo é a crença explícita ou implícita de que o comportamento humano em sociedade é explicado unicamente por estímulos econômicos." Ou seja, que todas as interações humanas são secundárias perante o Capital e seus caprichos. É nesta perspectiva que se desenvolve uma relação função-corpo entre os trabalhadores e o mercado, cuja principal conexão é o poder e o desejo humano. É a partir da vontade de ter, de pertencer que se sustenta a base do capitalismo. O desejo é a faceta mística do mercado financeiro agindo de forma intensa e misteriosa sobre as pessoas que se submetem a ele.Afirmar uma condição de mero corpo-funcional ao ser humano, tornar o corpo dócil, produtível e encantado em sua utopia alimentada pelos filmes norte-americanos é a função inicial da ideologia da economia de mercado. O céu é o limite para aqueles que trabalharem duro, dizem analistas de RH recrutando os melhores candidatos. Mais do que um perfil intelectual, para manter sua estrutura o Capital busca uma permissão do sujeito para a máquina capitalista invadir seu corpo e codificar os fluxos dos desejos e valores conduzindo o indivíduo a assumir determinadas formas de ser e pensar. A falta de empatia com outras pessoas, frieza de caráter, capacidade de manipulação são ferramentas essenciais em um ambiente onde características negativas são recompensadas. Primeira regra do jogo: quanto menos você se importar com as pessoas, mais chance tem de se dar bem nesse negócio.
Economicismo e desejo
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Always be closing
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Eu não tinha a menor chance. É preciso estômago e energia para a vida no garimpo, além de amplo esforço da minha parte para fazer parte daquela encenação. Eu era humana demais, me preocupava, temia pela segurança do dinheiro dos meus clientes, queria dormir até mais tarde no sábado de manhã e fazer aulas de mandarim depois do expediente. Mas meu dever era trabalhar de sol a sol garantindo que ricos ficassem cada vez mais ricos, dando o máximo possível pelo mínimo que a empresa quisesse pagar. Aliás, o mínimo que eu mesma pudesse me pagar, segundo a teoria da chefia da empresa. Terceira regra: você ganha pelo volume, trabalhe mais. Nunca pare de trabalhar.Que graça tem ter tanto dinheiro se eu não puder me abanar com notas de 100 no escritório na frente de todos?Num lugar onde a moralidade é limítrofe, as relações pessoais legítimas são enfraquecidas impedindo a criação de laços autênticos, tanto com clientes quanto colegas de trabalho. As relações mudavam de acordo com o leader board, a divulgação diária dos resultados de todos os brokers. Quem estivesse no topo era o líder temporário da matilha que todos respeitavam, mas não perderiam a chance de fazer o que fosse para estar no seu lugar. Essa competitividade que os defensores do capitalismo afirmam ser imprescindível do ponto de vista econômico é nefasto sob o aspecto social e humano. A corrida de ratos nunca acaba e para mim, que estava por último, era ainda pior.
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Por mais que a economicismo nos iluda com palavras como globalização, a economia não é global. O que é global é a comunicação e os serviços financeiros. Na primeira entrevista para o que seria meu emprego pelos próximos dois anos, escutei que no escritório em Londres, sede da empresa, os juniors como eu não recebem salário, apenas vale transporte, e há uma fila de jovens aguardando a oportunidade de serem explorados pelo mercado. Eu deveria agradecer, estava dentro. "Mas lembre-se", disse o chefe com seu sotaque escocês e camisa de grife incrivelmente justa: "Você deve se pagar. Tem que pagar seu salário e trazer lucro para a empresa". Confirmei com a cabeça, mas nunca entendi esse conceito, por que que eu trabalharia para outra pessoa se eu mesma pudesse me pagar? Não inverta as regras, eu trabalho, você paga!"Se você tiver outros interesses na vida, não vai ser bem-sucedida neste mercado." "Eu apenas malho, durmo e trabalho aqui." "Eu prefiro não almoçar para ter mais tempo para fazer as ligações." Foram algumas das muitas frases que ouvi daqueles cara brancos em seus paletós caros, que me fizeram questionar que tipo de pessoa se presta a essa devoção quase religiosa e se eu estava suficientemente disposta a abrir mão da minha alma para concorrer a uma viagem a Las Vegas com tudo pago pela empresa em companhia do meu gerente de negócios.Existem histórias de superação, trabalho duro, crescimento pessoal e profissional. Há trabalhadores felizes praticando a corretagem, vivendo essa cultura a fundo e aqueles que legitimamente ou não, querem um pedaço de bolo que é o maior de todos. Esses caras existem, eu conheci muitos deles. Mas junto com eles existem maníacos, egocêntricos que preenchem suas existências com bônus, spreads e o que estiver no script e for necessário para validação daquela cultura.
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Eu sabia que não tinha mais tempo lá. Apenas respondi à mensagem me chamando para a sala de reunião e já sabia o que poderia esperar.- Vou ser bastante direto: você acaba de perder uma conta e decidimos que você não tem o perfil que procuramos na empresa.
- Mas eu só perdi a conta porque o compliance não aceitou o documento do cliente! O que queria que eu fizesse, falsificasse o documento?Ele me olhou de forma muito sincera e falou:
- Eu queria que você tivesse ao menos cogitado fazer isso.Eu entendi.Peguei minha caixa com minhas coisas e voltei para o mercado de busca de um novo emprego.Siga a VICE Brasil no Facebook, Twitter e Instagram.
- Mas eu só perdi a conta porque o compliance não aceitou o documento do cliente! O que queria que eu fizesse, falsificasse o documento?Ele me olhou de forma muito sincera e falou:
- Eu queria que você tivesse ao menos cogitado fazer isso.Eu entendi.Peguei minha caixa com minhas coisas e voltei para o mercado de busca de um novo emprego.Siga a VICE Brasil no Facebook, Twitter e Instagram.