A Gororoba das Prisões Americanas
Nutraloaf servido em Vermont em 2008. Crédito: Andy Duback/ AP

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A Gororoba das Prisões Americanas

Quando as refeições são uma forma de punir.

Comida de prisão não costuma ser sinônimo de culinária cinco estrelas.

Qualquer pessoa que já tenha assistido a um episódio de Oz ou Orange Is the New Black tem ideia dos pratos abomináveis que são servidos aos detentos americanos: uma fatia de salsichão entre duas fatias de pão ressecado, carnes misteriosas que flutuam sob gosmas e tantos outros pratos insondáveis. Agora, imagine misturar todas essas refeições e empapá-las em um bolo só, acrescentar algumas uvas passas, assar e comer. Parece tortura? Bem, essa é a ideia.

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O nutraloaf (nutrapão) é servido a detentos malcomportados em determinadas prisões e cadeias ao redor dos Estados Unidos. É uma combinação de diversos tipos diferentes de comida que são triturados e assados juntos para formar um pão duro e insosso que atende todas as necessidades nutricionais diárias de uma pessoa. O nutraloaf incitou processos) em várias jurisdições. Os detentos alegam que o alimento viola a oitava emenda da declaração dos direitos da independência americana por ser um castigo cruel e incomum.

Embora esteja fora de moda, a maçaroca ainda é servida a detentos em muitas regiões do país, de prisões estuaduais em Nova York a cadeias federais no Arizona, e continua a representar um problema para detentos, grupos de defesa de direitos da população carcerária e departamentos correcionais.

A massa inócua de alimento se tornou, em grande medida, símbolo das principais questões acerca do sistema americano de justiça criminal. Espera-se que criminosos condenados abdiquem de certos direitos enquanto cumprem pena, mas será que uma necessidade básica como alimentação deve ser usada como ferramenta de punição? Mesmo se não for ilegal, será um procedimento ético?

"O nutraloaf cutuca o âmago da questão sobre o propósito de uma prisão: retribuição ou reabilitação?", disse, por telefone, Heather Ann Thompson, historiadora especializado em encarceramento em massa e pesquisadora da Universidade de Michigan, nos Estados Unidos. "Queremos que as pessoas retornem à sociedade mais saudávels, não menos. O nutraloaf é uma forma míope de lidar com castigo, para dizer o mínimo."

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Detentos recebem bandejas de refeição através de uma abertura na parede, em Jackson, Geórgia, 2001. Créditos: David Goldman/AP Photo

Thompson explicou que se discute há muito tempo a alimentação carcerária nos Estados Unidos. Não é de hoje que a alimentação carcerária costuma ser insuficiente, em termos nutricionais, além de insossa e de baixa qualidade, disse ela. Embates antigos entre detentos e instituições não questionam a comida como forma de punição, mas a própria alimentação parca. Só nos anos 60 é que o jogo começou a virar.

"Tem muito a ver com o surgimento do vale-refeição, quando passamos a quantificar, de fato, quanta comida uma família de quatro membros precisa para sobreviver", contou. "Tivemos que definir a ingestão calórica ideal por dia, por exemplo, e grupos passaram a exercer muita pressão sobre os sistemas carcerários para adotarem esses padrões."

Pão e água, a refeição punitiva quintessencial, não atendia os padrões. Logo em seguida, foram criados mais alimentos próprios para castigo com valor nutricional insuficiente, como uma gororoba semelhante ao nutraloaf que chegou a ser servida a detentos no Arkansas. A gororoba era feita com "uma massa de carne, batatas, margarina, amido, vegetais, ovos e temperos cozida na panela", segundo a audição do Supremo Tribunal americano que, em 1979, tornou a substância de mil calorias por dia ilegal.

"Muitas vezes os tumultos começam depois de uma refeição ruim."

Mas as instalações correcionais não estavam dispostas a abrir mão da rotina de comida como punição e inventaram o nutraloaf rapidinho. A comida, se é que podemos chamar assim, substituía o pão e a água com uma diferença crucial: o nutraloaf cobre todos os requerimentos diários de calorias, vitaminas e minerais, abarrotados em um pequeno pão de argila.

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As receitas variam de instituição para instituição, mas costumam incluir uma combinação de batatas, feijões, vegetais, pasta de tomate e frutas. Detentos que foram forçados a enfrentá-lo (bem como jornalistas que se voluntariaram) o descreveram como "insosso, tipo papelão" e "é como se alguém tivesse removido, fisicamente, todo o sabor."

Um prisioneiro só passa pela dieta do nutraloaf quando viola regras específicas. Atacar um carcereiro ou outro detento com talheres é um catalisador comum. Aí o nutraloaf é servido sem talheres para ser comido com a mão. Atirar urina e fezes é outra ofensa punida com "o pão", como é chamado. No entanto, regulamentos variam bastante entre cidades e regiões metropolitanas. É capaz que alguns detentos recebam o nutraloaf por atos como arrancar a bandeira dos Estados Unidos das paredes da cela.

O complexo penitenciário da Filadélfia sediou um evento em 2013 para incentivar o público a provar alimentos carcerários como o nutraloaf (à esquerda) e refeições das prisões de 1800 (carne bovina e purê indiano, à direita). Créditos: Matt Rourke/AP Photo

O caso mais recente foi obra de Joe Arpaio, xerife do distrito de Maricopa, no Arizona. Arpaio é famoso por ser um grande defensor do nutraloaf. (Ele também figurou manchetes por questionar a certidão de nascimento do presidente Obama, por trocar o cardápio de uma prisão por uma dieta completamente vegetariana para economizar dinheiro e porque seus subalternos foram declarados culpados de preconceito racial.)

Detentos denunciaram o uso que Arpaio faz do nutraloaf, mas o xerife venceu o desafio. Ele me disse que, contanto que a comida dos prisioneiros seja nutritiva e segura, não importa o sabor.

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"Quando os detentos atacam os carcereiros ou fazem algo errado, não deixamos mais saírem de suas celas e cortamos suas refeições habituais. Não damos mais talheres a eles depois que atacam autoridades", Arpaio me contou ao telefone. "Não vão repetir o erro caso gostem da comida cotidiana."

O complexo de Maricopa é um dos maiores sistemas carcerários dos Estados Unidos. Tem cerca de 8.300 detentos. Arpaio destaca, com orgulho, que a prisão apresenta o menor custo por detento em termos de alimentação — os presos têm duas refeições por dia, a um valor de 15 a 40 centavos por refeição, de acordo com seu site.

"Eles comem

brunch

— que costumava ser um sanduíche de salsichão, mas agora é pão com manteiga de amendoim e geleia — e fazem uma refeição vegetariana quente à noite", disse Arpaio. "É comida grátis. Por que eles deveriam se preocupar com a comida quando sequer pagam pela refeição?

A opinião da sociedade sobre o papel das prisões mudou ao longo dos anos.

Pesquisas

mostram que

os americanos acreditam que

os sistemas correcionais devem reabilitar, não apenas punir. Ninguém quer que prisões virem hotéis de luxo, mas a ideia de como devem ser ruins se aproxima cada vez mais das

penitenciárias brutas e cruéis

do século 19. Evidências de sobra indicam que o sistema

ainda não chegou lá

, mas o senso comum deseja transformar as instalações correcionais em lugares onde detentos podem evoluir, aprender, crescer e, então, retornar à sociedade.

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Aqueles que trabalham para aprimorar o sistema dão duro por esse objetivo. Eles enfrentam pressões para não desperdiçar dinheiro público nem deixar as prisões "agradáveis demais". Ela é nutricionista licenciada, responsável pela gestão do Departamento de Correções e Reabilitação da Califórnia (CDCR). As prisões estaduais da Califórnia não fazem nutraloaf, mas algumas cadeias municipais ainda servem a iguaria, incluindo as instalações de Los Angeles, embora seja cada vez menos frequente.

Maurino planeja todos os cardápios do sistema penitenciário estadual. O trabalho requer equilíbrio entre a saúde dos detentos e restrições orçamentárias — o CDCR gasta em torno de 3,25 dólares em refeições por dia para cada detento. Agora o foco dela é criar opções mais saudáveis para o coração, com menos sódio, e que os detentos tenham vontade de comer.

"Não servimos bife e lagosta, nem nada do tipo", disse Maurino. "Mas as refeições são momentos que os detentos antecipam ao longo do dia. Detentos de barriga cheia são detentos contentes e tendem a não comprar brigas. Muitas vezes, os tumultos começam depois de uma refeição ruim."

Cardápio de refeições servidas a detentos nas prisões estaduais da Califórnia. Crédito: CDCR.

Mas se você pensa que os detentos da Califórnia têm uma dieta gourmet, basta dar uma olhada na comida que eles costumam fazer para cair na real. Maurino me disse que o item mais vendido na lojinha de provisões é miojo instantâneo. Uma mistureba chamada "chi chi", feita com água quente, ramen e Cheetos (os ingredientes variam) é uma das pedidas favoritas entre os detentos. Se as refeições carcerárias fossem realmente saborosas, por que os detentos recorreriam a Cheetos empapados, servidos em sacolinhas de lixo e chamariam isso de conforto?

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Maurino contou que uma colega sua, que trabalha nas prisões municipais de Los Angeles, disse que estão usando cada vez menos o nutraloaf. Escrevi para vários departamentos correcionais sobre o uso da comida como punição, mas somente o estado de Nova York respondeu. O uso da gororoba em Nova York passou por uma queda drástica: em 2010, o estado o empurrou para detentos 991 vezes, segundo a porta-voz do sistema penitenciário Taylor Vogt. Ano passado, serviram o nutraloaf apenas 385 vezes e, até o presente momento, 2015 contabiliza apenas 198 instâncias.

O estado de Vermont inteiro costumava servir nutraloaf, mas cessou a prática depois que o grupo estadual de defesa dos direitos da população carcerária argumentou, com êxito, que o alimento era usado como castigo e que, portanto, requeria um processo equitativo antes de ser implementado.

"Fiquei estarrecido com a ideia de que uma sociedade civilizada é capaz de fazer isso com as pessoas, não importa o que tenham cometido", me contou Seth Lipschutz, advogado que assumiu o caso. "Desde que vencemos, quase nunca servem isso em Vermont. Tecnicamente, ainda está nos registros, mas requer um processo burocrático adequado. De qualquer forma, não usam mais nutraloaf porque descobriram como resolver problemas sem apelar para ele."

Seja uma violação da oitava emenda ou não, muitos departamentos correcionais buscam maneiras menos polêmicas de lidar com problemas comportamentais entre os detentos e tentam se afastar da prática medieval.

O nutraloaf como solução para prisoneiros malcriados foi moda durante um bom tempo, mas reina agora a sensação crescente de que existem maneiras mais civilizadas e humanas de tratar detentos. O refrão se repetiu em todas as conversas, exceto no caso do xerife Arpaio. Ele não planeja suprimir o nutraloaf no futuro próximo.

"Prisões nova-iorquinas? Não estou surpreso por acabarem com o pão", disse ele. "Estou surpreso por já terem servido, em primeiro lugar. Não costumam servir bife nas prisões nova-iorquinas?"

Tradução: Stephanie Fernandes

A VICE está investigando o sistema carcerário americano na semana rumo à nossa reportagem especial com o presidente Obama para a HBO.