Agricultores quenianos estão criando apps para lidar com 
seca devastadora

FYI.

This story is over 5 years old.

Tecnologia

Agricultores quenianos estão criando apps para lidar com seca devastadora

No país onde as soluções estrangeiras costumam falhar, desenvolvedores locais buscam implementar suas próprias tecnologias.

O Quênia enfrenta uma das piores seca em décadas. Famílias estão alojadas ao redor de poços secos, o gado emagreceu a ponto de não poder ser consumido e conflitos armados estão eclodindo entre pastores do animal. O milho, a principal safra, foi a mais atingida. Em fevereiro, o presidente Uhuru Kenyatta anunciou estado de emergência nacional. São 2,6 milhões de pessoas que necessitam de auxílio alimentar desde o início da seca, em 2014.

Publicidade

Em meu caminho para Eldoret, uma cidade a oeste do Quênia, conhecida pela produção de milho, leite e maratonistas olímpicos, é um pouco difícil de imaginar essa situação. A cidade de 290 mil habitantes escapou da seca. As colinas que flanqueiam a estrada são exuberantes, com plantações e pés de cereais se estendendo por todas as direções desde o centro da cidade. O assunto mais urgente aqui são as eleições de agosto. As ruas estão cobertas de pôsteres de campanhas e caminhões de som com slogans políticos. Como a agricultura emprega 75% da mão de obra queniana, um dos principais candidatos ao governo, um ex-magnata do leite, usou uma vaca leiteira como seu símbolo.

Fui a Eldoret para o Hack4Farming, uma maratona hackaton que atraiu cerca de 100 pessoas – incluindo os 40 competidores – de todo o Quênia. Com o aumento da seca, eles buscam revolucionar a agricultura queniana. São jovens empunhando iPads que nvestiram em equipamentos de horticultura de baixa escala, dispostos a encontrar a tecnologia mais atual para suas fazendas.

Aspirantes a desenvolvedores de tecnologia ao redor de um proprietário de agronegócio. Crédito: Rajiv Golla.

Aspirantes a desenvolvedores de tecnologia ao redor de um proprietário de agronegócio. Crédito: Rajiv Golla.

Entre eles está Patricia Lagar, ex-estudante de medicina e agora produtora de maracujás. "Não me chame de agricultora", ela me corrige. "Sou uma player na cadeia de valores da horticultura."

Lagat é rápida em apontar a distinção entre agricultores tradicionais e os proprietários de agronegócios, queabarcam todas as etapas da plantação e venda de alimentos, da produção ao marketing. O app dela, Kuza, conecta os usuários a uma faixa de players da indústria a fim de fornecer informações atualizadas sobre preço das colheitas e práticas de cultivo. Ao conectar os fazendeiros, Lagat acredita tornar o setor mais atraente e produtivo.

Publicidade

"Mais pessoas serão encorajadas a fazer parte da cadeia de valor pela acessibilidade da informação", ela me contou após receber o primeiro prêmio na conferência de hacking. "A questão da segurança dos alimentos será resolvida."

Entre os projetos enfileirados em um painel de julgadores estão uma plataforma de GPS para levar os agricultores a fertilizantes e suplementos alimentares mais próximos, uma espécie de Uber para alugar equipamentos de cultivo que outros agricultores não estejam utilizando no momento e um app com perfis individuais de gado que previne os cruzamentos consanguíneos.

A agricultura responde por 30% do PIB do Quênia, e as inovações como essas têm potencial para tornar a agricultura mais lucrativa e eficiente para as famílias que, atualmente, ganham menos de 10 dólares por dia. Arnold Bundotich, estudante de astronomia e proprietário de uma fazenda de milho de dez acres, me contou que não tem muito problema em cultivar os alimentos, mas tem muita dificuldade em vender seu produto. "O maior problema no Quênia não é a agricultura, mas a comercialização da produção", afirmou.

O governo do condado de Eldoret buscou resolver esse problema, reservando 30 milhões de xelins quenianos (300 mil dólares) para formação em gestão. Também ofereceu sementes de abacate, macadâmia e banana para encorajar os agricultores a diversificar suas safras além do milho.

"Algumas inovações não saem do papel pois fazem promessas exageradas"

Publicidade

Governos estrangeiros também estão interessados. No início deste ano, a China assinou um acordo para comprar mangas do Quênia, e a Índia ofereceu um crédito de 500 milhões de dólares para mecanizar as fazendas quenianas a fim de suprir a demanda crescente de grãos daquele país.

Entretanto, por mais que alguns apps da hackaton pareçam promissores, Ndobuisi Ekekwe, fundador da Instituição de Tecnologia Africana, afirmou que algumas inovações ficam aquém das expectativas ao fazer promessas altas. Muitas tecnologias oferecidas pelas empresas estrangeiras falharam na tentativa de se estabelecer. Mostraram-se inadequadas para fazendas pequenas e simples, que representam 70% da produção queniana.

Gados estão tão magros que não podem ser comercializados. Crédito: Rajiv Golla.

"As tecnologias para agricultura feitas lá fora não interessam aos agricultores africanos porque são muito complexas para quem controla, em média, 1,6 hectares de área cultivável", afirmou Ekekwe.

Ainda assim, as soluções criadas localmente oferecidas em Eldoret podem ter uma vantagem estrutural sobre as tecnologias estrangeiras, pois foram desenvolvidas pensando nos pequenos agricultores. O Kuza, de Lagat, foi premiado por competir diretamente com alternativas de coleta de informações, como minutos de celular e corridas de táxi ao mercado municipal. Mayer Edwin, ganhadora do segundo prêmio, criou o FarmAssist para atender as demandas de crescimento demográfico de proprietários de fazendas que vivem em cidades, como Lagat. O aplicativo de software livre mostra o status diário de produção de laticínios, acompanha a reprodução do gado e facilita a comunicação entre um proprietário de agronegócio que vive na cidade e os trabalhadores do campo, aprimorando o sistema de SMS atualmente em uso.

Os produtos propostos em Eldoret têm competidores fortes no mercado queniano. Cowsoko, um mercado de gado online, tem cerca de 10 mil usuários desde 2015 e planeja se expandir para países vizinhos. O Sokopepe faz o mesmo ao cortar intermediários na produção, ligando agricultores diretamente a compradores da produção, eliminando agentes e aumentando a quantidade de fazendeiros que recebem diretamente por suas safras. E o Kilimo Salama tornou o seguro acessível para agricultores de pequena escala com telefones celulares, permitindo que eles protejam sua produção contra as ameaças climáticas.

Até o governo queniano investiu em tecnologia na batalha contra as mudanças climáticase desenvolveu um programa de pagamento de seguro para pastores de gado movido por imagens de satélite das terras afetadas pela seca.

Apesar das inovações técnicas e da marcha acelerada do agronegócio, Bundotich rejeita o título de "player na cadeia de valores da horticultura", usado por Lagar. No fim das contas, ele disse, ainda existe um charme em trabalhar na terra: "gosto de chamá-los de agricultores".