Como a relação entre Uber, motoristas e usuários azedou pra valer

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Como a relação entre Uber, motoristas e usuários azedou pra valer

Em menos de três anos, o romance regado à água e balinhas deu lugar a uma relação turbulenta, insegura e com inconclusivas DRs no Brasil.

O Uber chegou em São Paulo em 2014 com o seu melhor serviço, o UberBlack. O paulistano achou top poder andar em sedãs pretos com água e balinha na faixa. Os taxistas, porém, não curtiram a ideia e passaram a retaliar a empresa com violência. Foi a publicidade gratuita que a companhia bilionária do Vale do Silício precisava para que o seu serviço ganhasse uma legião de apoiadores em território nacional.

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A empresa de caronas, então, começou um processo agressivo de expansão pelo Brasil. Hoje, quase três anos depois, o aplicativo está disponível em mais de 40 cidades brasileiras, e a categoria UberX passou a aceitar "parceiros" com veículos a partir de 2008. Só na capital paulista, a prefeitura contabiliza 50 mil carros cadastrados em apps (acredita-se que o Uber seja responsável por 90% destes) contra 38 mil taxistas.

Com mais gente usando e muitos motoristas "parceiros" que só fizeram o treinamento com vídeos disponibilizados pela plataforma no YouTube, não teve jeito: a relação do Uber com passageiros e motoristas começou a mostrar sinais de desgaste.

Por parte dos passageiros, só uma olhada no site Reclame Aqui já é capaz de dar uma noção. Por lá e nas redes sociais, não faltam casos de relatos de motoristas considerados mal educados e de carros com qualidade inferior.

A expansão da categoria UberX fez que a empresa passasse de 10 mil parceiros em fevereiro de 2016 para 50 mil em setembro de 2016. Logo, quem estava acostumado a andar só de Onyx e HB20 passou a ter como opção também Celtinhas e modelos mais antigos de Palio. A ideia da empresa com esta modalidade é que este tipo de carona seja mais democrática e com carros mais populares. Já o número de usuários ativos passou de 1 milhão no fim de 2015 para 9 milhões no fim de 2016.

O padrão aguinha com balinha também ficou para trás por parte da nova leva de motoristas. Oficialmente, o Uber só recomenda esses mimos para quem quer ser cinco estrelas. Porém, é por conta do condutor bancar tudo isso.

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Sem contar as reclamações sobre o que muitos chamam de cobrança indevida — uma mudança pouco divulgada no app no início do ano fez com que as caronas fossem cobradas antes mesmo de a viagem começar; apesar disso, o Uber estorna o valor após um tempo.

"O povo todo apoiou quando eles chegaram, pois vieram com um serviço bem interessante. Tiveram apoio público na discussão contra os taxistas. Se fortaleceram bastante no país. Porém, quando precisamos do suporte deles, eles lavam as mãos", afirmou a publicitária Carla Souza, de 31 anos, cuja identidade foi escondida por motivos de segurança.

Carla tem motivo de sobra para reclamar da plataforma. Em uma noite de fevereiro, ela chamou um UberX em uma região nobre de São Paulo. Era um dia chuvoso e ela entrou no carro indicado em seu aplicativo. Quando entrou, além do motorista, havia mais duas pessoas escondidas. Foi um sequestro relâmpago.

"Como meu caso foi um sequestro, não tive nenhum apoio jurídico, psicológico ou possibilidade de ressarcimento com as minhas perdas."

Os criminosos ficaram com Carla por um bom tempo causando um prejuízo de quase R$ 5 mil, entre saques em caixas eletrônicos e tênis de marca que eles a obrigaram a comprar num shopping da zona sul de São Paulo. Graças a ajuda de uma faxineira do banheiro do estabelecimento que a vítima conseguiu se livrar dos sequestradores.

E como o Uber lidou com a situação? "Uma moça do Uber ligou para mim no dia seguinte e pediu para descrever o que ocorreu. Ela se mostrou solidária e me disse que eles contam com um seguro que contempla morte, invalidez ou despesas médicas, no caso de ferimentos graves. Como meu caso foi um sequestro, não tive nenhum apoio jurídico, psicológico ou possibilidade de ressarcimento com as minhas perdas."

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À época, a companhia disse que lamentava o caso e que o motorista parceiro deste caso ficaria suspenso até o fim das investigações. Ainda que seja suspeito, a polícia ainda não sabe se o "parceiro Uber" teve o carro roubado por criminosos para, assim, cometerem o delito.

Para melhorar o atendimento, a empresa anunciou um investimento de R$ 200 milhões em um escritório em São Paulo que será responsável pelo suporte a passageiros e motoristas de todo o Brasil

O pagamento em dinheiro coloca os motoristas em perigo

Por parte dos motoristas, as reclamações são mais agudas, ainda que todos reconheçam a importância da plataforma com fonte única de renda ou como complemento ao orçamento do mês. No entanto, a principal reclamação dos motoristas é a falta de segurança.

No início, apenas passageiros com cartão de crédito podiam usar o Uber. Com o tempo, a empresa, citando a necessidade de democratizar o serviço, passou a aceitar dinheiro como forma de pagamento em alguns locais. Primeiramente em cidades do Nordeste e, depois, em São Paulo. Além de expandir o número de passageiros, a ideia era fazer com que o motorista tivesse um fluxo de caixa — com cartão, os pagamentos são feitos após uma semana.

A estratégia não foi necessariamente ruim. O problema disso foi liberar o pagamento com dinheiro com um cadastro fraco de passageiros. Aí não teve jeito: pessoas mal-intencionadas se aproveitaram para criar armadilhas e roubar os condutores e, em algumas ocasiões, até matar os motoristas.

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Dados obtidos pela agência de notícias Reuters via lei de acesso à informação apontam que aumentou consideravelmente o número de ataques a motoristas do Uber em São Paulo com o início do pagamento em dinheiro em julho de 2016. Só na segunda metade do ano passado, a polícia registrou 6 mortes de motoristas; a imprensa reportou pelo menos uma dúzia.

"Cheguei até o local e entraram dois passageiros. No caminho, pediram para eu fazer um caminho e o passageiro que estava atrás me deu uma gravata, sacou uma arma e anunciou o assalto."

O parceiro do Uber Wagner Ribeiro, de 57 anos, se deu mal em um desses chamados pagos com dinheiro em novembro de 2016, o mês com o maior registro de incidentes: mais de 200. "Cheguei até o local, um endereço na região do Campo Limpo, e entraram dois passageiros. Íamos em direção ao Embu da Artes. No caminho, pediram para eu fazer um caminho e o passageiro que estava atrás me deu uma gravata, sacou uma arma e anunciou o assalto."

Os criminosos levaram o carro, seu celular e o deixaram em um estacionamento. A sorte de Wagner é que havia uma empresa por perto. Lá, um segurança deixou que ligasse para a polícia. Segundo o motorista, seu carro foi localizado em um posto de gasolina perto da avenida Rotary, no Embu das Artes.

"É muito triste, pois você fica traumatizado após uma situação dessas. Porém, o pessoal da periferia precisa muito. Táxis raramente vão para esses lugares. Muitas vezes já peguei passageiros levando filho pequeno para o hospital e eles não têm cartão de crédito para pagar. Tem que ser no dinheiro mesmo", afirmou Wagner, reconhecendo a importância da forma de pagamento.

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Marcelo Corte, de 41 anos, que também é parceiro do Uber, também passou por um apuro semelhante. O motorista marcou que iria para casa. Durante o trajeto indicado, parou em um farol e foi abordado por travestis na região da avenida Indianópolis, no Planalto Paulista, em São Paulo. Colocaram uma faca no pescoço do motorista, roubaram seu smartphone e R$ 70 que ele tinha ganhado naquele dia com corridas pagas em dinheiro.

"Cheguei à delegacia e disseram que eu tinha sido a quinta vítima da noite. Reportei o incidente para a empresa e bloquearam o app. Por um lado achei boa a medida. Mas tive de ficar 48 horas sem trabalhar. Perguntei se seria ressarcido, porém disseram que eu teria que ter um seguro dos bens", disse Marcelo. Quanto ao dinheiro, o motorista não foi ressarcido do valor roubado. "Tive sorte, pois na mesma noite fiquei sabendo que um motorista havia sido assassinado por travestis."

Antes, o cadastro para pagamento por dinheiro exigia informações básicas (como nome e e-mail) e uma validação feita por meio do envio de um SMS ao aparelho.

Recentemente, a empresa anunciou que usuários que queiram pagar em dinheiro deverão também informar a data de nascimento e o CPF (Cadastro de Pessoa Física) para poder validar melhor as informações das pessoas.

Uber tem culpa no cartório?

É inegável que existe um problema de segurança pública no Brasil. Como nota a Reuters, o pagamento em dinheiro foi um sucesso na Índia. Porém, a taxa de homicídio por aqui é dez vezes maior que a do gigante asiático. Diante dessa situação, fica a pergunta: a plataforma tem alguma culpa por esses incidentes?

Qual a parcela de culpa da dona do serviço de caronas? Crédito: Divulgação/ Uber

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A empresa diz que não é responsável por casos de violência urbana, ou seja, incidentes que poderiam acontecer a qualquer condutor e que não tem relação direta com o app. Por exemplo: ter um item roubado enquanto está no farol de vidro aberto.

Para Gisele Truzzi, que é advogada especializada em direito digital, a empresa pode ser responsabilizada por incidentes envolvendo parceiros e passageiros. Caso a companhia se negue a prestar assistência, a companhia pode ser enquadrada nos artigos 14 e 34 do CDC (Código de Defesa do Consumidor), que tratam da responsabilização, mesmo no caso de atuação de trabalhadores autônomos

"O Uber, por ser uma plataforma de intermediação, é solidariamente responsável pelos eventos que decorram dessa relação. A partir do momento que a plataforma lucra com isso, ela deverá sempre dar o respaldo à vítima, seja consumidor ou motorista, caso ocorra algum incidente envolvendo a prestação de serviço", esclareceu a advogada.

Um processo judicial em Minas Gerais está julgando a relação entre motoristas e o Uber. Um parceiro da empresa, após ser expulso, processou a companhia e, segundo o entendimento de um juiz, houve vínculo empregatício.

Em sua defesa, a companhia disse que vai recorrer e que "o motorista parceiro escolhe suas horas online, sem qualquer imposição por parte do Uber, tem a liberdade para não aceitar e cancelar viagens, além de ter uma relação não-exclusiva."

Soluções que tardam

Por ser uma empresa de tecnologia, a companhia parece seguir quase que um padrão. Primeiro, se estabelece em um país para expandir seus serviços e diferentes categorias. Após casos graves e de pressão popular, o Uber, então, começa a tomar atitudes sérias.

Na Índia, houve muitas reclamações referentes a motoristas que assediavam passageiras em 2015. Uma delas processou a empresa por achar que a companhia não estava tomando medidas de segurança suficientes. Após grande repercussão, o Uber adicionou no app um "botão de pânico" que permite o contato com a polícia em situações de emergência, e um recurso que possibilita compartilhar dados da viagem com pessoas de confiança do usuário.

Aqui, infelizmente, foi necessário vermos gente morrendo para a empresa poder tomar uma medida mais enérgica no caso de pagamentos com dinheiro.

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