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Eu Seria um Pirata Somali Numa Boa

A gente devia ter falado sobre como o curta dele é incrível e tal, mas acabamos desviando a conversa pra histórias sobre prostitutas quenianas, assaltos e sobre odiar pessoas brancas.

Depois de assistir ao curta Fishing Without Nets, até consegui me imaginar como um pirata somali, o que é meio ridículo considerando que sou  funcionário da VICE. Isso deve ter a ver com a perspectiva insular da narrativa, que conta a história estritamente do ponto de vista de um jovem pescador somali pobre tentando cuidar da filha doente. Conforme você assiste a progressão do personagem como pirata, o curta te leva além dos arquétipos Robin Hood versus os vilões que se perpetuou na mídia quando a epidemia de pirataria somali chegou às manchetes. Ele chega mais realista e moralmente ambíguo. E diferentemente de muitos filmes sobre a África e os africanos, não há nenhum personagem branco jogado no meio da trama pelo co-roteirista e diretor Cutter Hodierne para servir como ponto de entrada familiar para os ocidentais. Não há nenhum diálogo em inglês também. Por 17 minutos, você é imerso num videogame de tiro em primeira pessoa num mundo vívido e esquálido, onde cada escolha resume-se a sobrevivência.

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No começo do curta, um pescador bonitão chamado Abdi não consegue mais pescar no Oceano Índico, o que acredito ser resultado do despejo de lixo tóxico na região pelas superpotências da Europa. E como um habitante de um dos países mais pobres do mundo, onde as pessoas vivem praticamente em estado natural desde que o governo central entrou em colapso em 1991, ele certamente não pode esperar algum tipo de ajuda institucional. Então ele precisa resolver seus problemas sozinho s e fazer uma escolha — se tornar um pirata ou continuar vivendo sua vida de merda sem conseguir cuidar direito da filha. Eu nem pensaria duas vezes. No dia seguinte estaria em alto-mar colando como um carrapato em todo navio de empresa de carga que visse.

Liguei para o diretor Cutter Hordierne para falar um pouco sobre o Fishing Without Nets, que levou o prêmio do júri de melhor curta no festival Sundance deste ano e que logo será expandido para um longa-metragem. Isso é uma conquista e tanto para um cara de apenas 25 anos e um projeto que começou com um orçamento apertado e dois amigos, John Hibey (produtor e co-roteirista) e Raphael Swann (produtor).

Mas faz sentido que alguém como Cutter alcance esse tipo de sucesso, mesmo sendo assim tão jovem. Ele é o tipo de aventureiro fodão que te enrolaria para te fazer largar seu emprego atrás de uma mesa e mudar para Mombassa depois de ouvir uma de suas histórias muito loucas. O nome dele é Cutter, porra! Isso faz ele parecer aqueles dublês dos anos 80 que têm um furinho no queixo. E antes de fazer o Fishing, aparentemente só por diversão no Quênia, ele viajava pelo mundo filmando o Bono e o resto do U2 na turnê em que eles ganharam zilhões de dólares para tocar num palco que parece a lula gigante do final do Watchmen (os quadrinhos).

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A gente devia ter falado sobre como o curta dele é incrível e tal, mas acabamos desviando a conversa para histórias sobre prostitutas quenianas, assaltos e sobre odiar pessoas brancas. Leia abaixo o que o Cutter Hodierne tem a dizer sobre Fishing Without Nets:

VICE: E aí, cadê as pessoas brancas no Fishing Without Nets? Não é todo mundo que tem a coragem e a sabedoria para colocar atores africanos nos papéis principais em filmes sobre a África. Não consigo deixar de pensar em filmes como Diamante de Sangue. Porra, até o Tarzan — tinha que ter mais gente negra nesses filmes.
Cutter Hodierne: Bom, eu simplesmente odeio gente branca, não suporto esse pessoal (RISOS). Brincadeira. Eu amo gente branca. Só fiquei realmente intrigado pelos piratas somali.

Havia personagens brancos nas versões iniciais do roteiro que depois foram cortados?
Bom, não. No começo, a ideia era fazer uma história sobre um somali americano que voltava para a Somália para se tornar pirata. Mas chegando à África essa ideia já era, era muito mais interessante mostrar um cara da própria Somália.

Vocês filmaram no Quênia, não na Somália mesmo, por razões óbvias. Quantas vezes você foi para lá antes de começar a filmar?
Nenhuma. Nunca tinha estado lá antes.

Você decidiu fazer um filme num país onde nunca tinha pisado?
É, nunca tinha ido para nenhum lugar da África na verdade.

Então como a coisa toda aconteceu?
Convenci esse colega de produção, o John Hibey, a ir comigo no que deveria ser uma viagem de cinco semanas, mas que no final acabou sendo de três meses e meio, depois que tudo que tentamos deu horrivelmente errado. Virou uma puta bagunça.

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Como assim?
Só de começar esse projeto e ser o tipo de pessoa que não desiste quando começa uma coisa. A gente caiu numa armadilha. Os primeiros dois meses foram simplesmente um choque cultural. Em tudo que tentamos fazer topamos com alguma oposição.

Não pode ter sido tão ruim assim. Você deu um tempo para as coisas esfriarem? Como é a cena no Quênia?
É a capital do turismo sexual da África.

Sério?
É, a gente também não sabia disso. Ficou claro assim que chegamos lá. Tipo: “Meu Deus, aqui é o lugar para onde homens e mulheres vêm pra se dar bem”. E o mais louco, ficamos sabendo disso no primeiro dia lá, descobrimos que o lugar é ainda mais popular com mulheres alemãs, que vão para Mombassa para ficar com caras muito mais jovens.

Uou. Isso parece um documentário da VICE: “Mandingo Part Deux – As Pirocas Negras da África”.
Com certeza seria uma ótima história para a VICE. Tem um monte de tias lá tentando tirar o atraso.

E isso acontecia abertamente?
Sim. As mulheres saiam para andar na praia e voltavam logo depois com um cara de 19 anos. O mais louco pra nós era que em qualquer bar que a gente ia, éramos absurdamente populares. A gente ficava pensando: “OK, tem alguma coisa errada aqui. A gente não é tão legal assim”. Literalmente todas as mulheres do lugar chegavam na gente.

E essas prostitutas chegavam com tudo?
Elas eram muito agressivas. Tão agressivas que às vezes achávamos que era um assalto. Então não preciso nem falar que, nas horas de folga, a gente teve algumas noites bem doidas em Mombassa.

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Qual foi a coisa mais selvagem que uma mulher fez com vocês?
Por isso que gosto das entrevistas da VICE, são sempre as perguntas mais interessantes… O melhor exemplo foi nesse lugar chamado Club Florida, o que a gente achava hilário.

Esse lugar era conhecido por ter garotas de programa?
Sim, mas a gente não sabia. Depois descobrimos que o cara que levou a gente lá estava querendo mesmo sacanear.

Lógico.
Estávamos lá e quando olhei pro John Hibey (produtor), ele estava literalmente tentando se livrar de uma garota. Ele dizia “Desculpe. Não, muito obrigado…”. Aí outra mina apareceu e começou a puxar ele, as duas estavam puxando o John pra direções diferentes, uma segurando em cada braço dele. Ele começou a ficar realmente nervoso e a pedir ajuda, tipo: “Garçom! Alguém me ajude, socorro!”. Eu fiquei lá rindo, parecia que elas iam rasgar ele no meio.

Cutter em Washington, na estreia do Fishing Without Nets. Foto Duy Tran Photography

Vocês chegaram mesmo a ser assaltados, né?
Sim, fomos assaltados várias vezes. Um das vezes foi bem sério, na primeira noite, com outro produtor, o Raphael Swann.

O que aconteceu?
Foi na praia, nesse resort turístico alemão, com bandas cover tocando. Estávamos andando pela praia e ouvimos essa música alta tocando lá na frente — era uma banda australiana tocando U2…

Você se sentiu em casa.
Isso, então esses caras de uniforme militar apareceram do nada com armas dizendo que a gente tinha invadido uma propriedade e que iríamos presos. Eles algemaram a gente uns nos outros e começaram a nos levar pra água. Aí começaram a brigar entre eles e a gente lá pensando: “Meu Deus, é isso. Eles vão nos matar, puta merda”. E com a música alta tocando a gente não podia gritar por ajuda e eles estavam nos levando ainda mais longe das pessoas. Tudo que a gente conseguia ouvir era “It's a beautiful dayyy!” atrás de nós.

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Que irônico. Como você trabalhava com o U2, essa música devia querer dizer uma coisa totalmente diferente pra você antes do Quênia.
Sim, na hora achei que fosse ser a trilha sonora da minha morte. Com certeza aquele não foi um belo dia.

E como vocês saíram dessa vivos?
Percebemos que os caras não eram policiais de verdade e que podíamos dar uma grana e ir embora. E eles deixaram a gente ir. Foi aí que percebemos: “Acabamos de ser capturados por piratas somali! Temos um ótimo material pro filme”.

Esses caras eram bem sérios, ou tipo os piratas que a gente vê no filme — meio atrapalhados na execução dos crimes?
Sim, é uma coisa caótica, esses caras nem sabem realmente quem está no comando. É ainda mais assustador quando você pensa “Ok, esse cara não vai me matar intencionalmente, mas não confio muito na habilidade dele com essa arma, assim ele vai acabar me matando acidentalmente”. Era assim que me sentia, então na versão estendida do filme vai ter muito mais coisas assim.

Fale um pouco mais sobre a versão em longa-metragem. Como vocês planejam fazer?
Acho que o plano basicamente é voltar lá e fazer uma versão estendida do curta do mesmo jeito que fizemos antes. Vamos usar não atores, todos moradores do lugar, refugiados somali, filmar na mesma área e simplesmente expandir a história. Inicialmente vamos ter esse moleque que apesar de não falar inglês muito bem se torna negociador dos piratas, e logo ele percebe que não está qualificado pro trabalho. Então vai ser o mesmo tipo de história: “um cara que normalmente não se envolveria com uma coisa assim, mas que acaba se envolvendo”, só que mais aprofundada. Vamos mostrar a captura dos barcos e o caos disso tudo.

O mesmo protagonista vai estar no filme?
Espero que sim. Quero chamar o mesmo cara para ser o personagem principal, o Abdi, e com certeza alguns dos outros piratas coadjuvantes.

Sei que o elenco era todo de refugiados somali, mas algum deles era ex-pirata?
Alguns dos coadjuvantes eram militares na Somália, eles tinham cicatrizes horríveis e estiveram envolvidos mesmo nas batalhas. Alguns deles diziam “Meu primo é pirata” ou “Quase virei pirata”, mas checar se isso é verdade é difícil. Acho que vários desses caras são o tipo de pessoa que, se ainda morassem na Somália e tivessem a oportunidade, com certeza fariam isso. Mas nenhum deles, pelo que eu saiba, ajudou a capturar nenhum navio.

Você já falou sobre sua percepção inicial desses piratas como “Robin Hoods”. Por que você acha que é tão fácil ver esses caras como arquétipos, ao invés de pessoas com múltiplas motivações conflitantes?
Acho que a mídia retrata esses caras desse jeito: “Eles não são realmente maus”. Mas acho que é uma coisa simplificada — porque eles estão num desacordo radical com a dicotomia do status quo. A verdade é, eles não são totalmente maus, mas também não são Robin Hoods salvando seu clã da pesca ilegal — é uma grande área cinza que vem da ideia de que quando você não tem merda nenhuma, você vai lá e rouba.

É, tenho essa mesma impressão. Obrigado, Cutter.